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Entrevista com Adriana Lima

05. 2024 | Entrevista por Pedro Silveira

Revista Coletiva — Quem são as Comunidades Caiçaras, onde e como vivem?

 

Adriana Lima — As Comunidades Caiçaras são aquelas que vivem a partir da memória ancestral dos seus territórios e dos povos que antecederam a vida nesse território e que foram, ao longo de séculos, desenvolvendo adaptações para viver bem na costa litorânea. Os caiçaras aprendem a conviver com o mar, os ventos, a mata, os bichos, os rios e a compartilhar do mesmo espaço com diferentes espécies. As comunidades caiçaras são compostas por pessoas simples e humildes, mas com grande conhecimento tradicional para usar os diferentes ambientes sem super-explorá-los. As principais práticas desenvolvidas por essas comunidades são: a pesca artesanal; a roça de pousio; o manejo das plantas; os remédios caseiros; as festividades; as comidas; as construções de moradia e dos artefatos de uso comunitário. As comunidades que se autodeclaram caiçaras, estão entre os litorais dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. 

Elas têm características específicas de cada região, como o tipo de pesca e o jeito de falar (entre outras), mas têm laços que os aproximam e os fazem se reconhecer como parentes e primos. Atualmente, as comunidades caiçaras enfrentam muitos desafios para conseguir manter suas tradições, seja pela especulação imobiliária, pelo turismo desordenado, grandes empreendimentos, portos, estradas, condomínios de luxo, além da criação das Unidades de Conservação de Proteção Integral (parques, estações ecológicas, entre outras). Assim, as Comunidades Caiçaras são desafiadas dia a dia a buscar salvaguardar seus saberes e as práticas tradicionais, que muitas vezes são criminalizadas e desvalorizadas.

Revista Coletiva — Conte um pouco sobre sua trajetória de vida, onde nasceu e como sua vida se relaciona às lutas das Comunidades Caiçaras.

Adriana Lima — Sou uma mulher preta, caiçara, e vivo na Comunidade do Guaraú, em Peruíbe (SP), onde eu nasci. Tenho 51 anos, sou uma educadora popular comunitária, pesquisadora local e monitora ambiental. Sou a filha mais velha de duas irmãs. Meus pais vivem no mesmo lugar desde que eu nasci e a maioria dos meus familiares vivem aqui também. Minha mãe, Neusa, nasceu em Registro (SP), mas veio pra cá com três anos de idade, e meu pai, Ismael, é de Iguape (SP), ambos municípios do Vale do Ribeira, mas vieram pra cá quando casaram-se, Eu tenho dois sobrinhos, Guilherme e Gabriele, filhos da minha irmã e tenho vários outros agregados. Eu já morei alguns anos na capital de São Paulo, conheci um pouco do que é a periferia e um grande centro urbano, também já viajei por vários estados brasileiros e fui até a Argentina. 

Nos últimos 20 anos, eu tenho trabalhado com organização comunitária em busca de efetivação de políticas públicas básicas e direitos para as Comunidades Tradicionais Caiçaras. Minha formação inicial se deu na comunidade onde eu nasci, com meus familiares e a vizinhança; depois seguiu-se por longos anos de ensino formal até concluir o ensino médio. Já adulta, tive a oportunidade de participar de uma formação como monitora ambiental, o que abriu novas possibilidades de permanecer na região e iniciar uma trajetória na educação informal, como interlocutora entre a comunidade, visitantes/turistas e poder público local. Esse processo de formação se estendeu por aproximadamente oito anos.

Foi no ano de 2002 que, participando de pesquisas como agente local, tive a primeira entrada na psicologia e na saúde pública um pouco depois, onde eu já apresentava os resultados da participação da comunidade nas pesquisas sobre o “uso abusivo de álcool e outras drogas em comunidades anfitriãs de turismo”, coordenadas pelo Professor Alessandro Santos e Vera Paiva. Também foi nesse período que fui desafiada a viajar para Porto Alegre e apresentar e inserir a temática sobre Saúde Comunitária, num congresso internacional de turismo realizado na PUC-RS.  Também fiz diversos cursos de formação continuada para elaborar planos de trabalhos educacionais, já que estaria trabalhando com escolas e universidades que viriam visitar a região para estudos e pesquisas. 

Foi a saudosa Luiza Alonso da Silva, pedagoga, bióloga e educadora, que muito me inspirou a fortalecer os estudos, a escrever e refletir sobre a minha cultura e meu modo de vida. Nesse tempo, eu também entendi as leis ambientais e suas facetas perversas com os povos do campo, em sua política de exclusão e de expropriação territorial, marcada por violentas ações do Estado e de ONGs aliadas contra nossa gente. Além disso, passei a participar dos conselhos municipais e de unidades de conservação, buscando fiscalizar e propor diálogos que fizessem sentidos para as comunidades. Foi num desses conselhos que criamos uma aliança entre os municípios de Iguape e Peruíbe para alterar uma lei estadual que havia criado uma Reserva de Proteção Integral, que já não permitia mais as famílias viverem dignamente como há séculos viveram.

Revista Coletiva — A situação da Estação Ecológica da Jureia Itatins é um exemplo de injustiças cometidas contra comunidades tradicionais em nome da conservação ambiental. Esses conflitos no Litoral paulista se arrastam por décadas. Explique um pouco esse conflito e as formas como as comunidades se organizaram e resistiram às injustiças, ao longo do tempo.

Adriana Lima — Ainda no período da ditadura militar, o Brasil importava dos Estados Unidos modelos de áreas protegidas, que não consideravam as comunidades que viviam nessas regiões, nem seu modo de vida, que tinha garantido essas áreas estarem em bom estado de conservação. Ou seja, 90% das áreas onde foram criadas Unidades de Conservação são territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais, por isso são ricas em biodiversidade e têm seus ecossistemas conservados. 

Na região da Jureia, no Litoral Sul de São Paulo, Vale do Ribeira, não foi diferente. Nesse território havia aproximadamente 360 famílias, que viviam em 22 cm possíveis de serem acessadas pelo rio, por trilha ou pelo mar, mas todas se comunicavam e tinham relações de vizinhança e de comunidade. Faziam roças coletivas, mutirões, festividades, fandango caiçara, puxada de canoa, entre outros. No ano de 1986, tudo mudou e após a aprovação da lei estadual, nasceu a Estação Ecológica Jureia Itatins, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, que proibiu todas as atividades e modo de vida dessas famílias, que, da noite para o dia, tornaram-se clandestinas dentro da sua própria casa, pois perderam o direito de fazer roça, caça, pesca, folias e tudo mais. 

Um dos caminhos possíveis de solução dos conflitos então instaurados pela fiscalização da legislação ambiental sobre o modo de vida das Comunidades Caiçaras da Jureia era a exclusão ou recategorização da Estação Ecológica de Jureia Itatins (EEJI).  A proposta não considerava os objetivos da proteção da natureza, a qual é, aliás, base do modo de vida tradicional, mas sim mudar a categoria que garantisse a permanência e o modo de vida às famílias do local. Então, nesse período, as Comunidades organizaram-se em associações comunitárias para reivindicar o direito de permanecer nesse território e conseguiram mudar a lei estadual, criando um mosaico de unidades de conservação, onde também foram criadas as primeiras Reservas de Desenvolvimento Sustentável da Mata Atlântica, categoria de uso sustentável que permite a presença e o modo de vida tradicional. A recategorização não resolveu 100%, mas contribuiu muito na mudança para muitas famílias. 

As associações também participaram de diferentes espaços para discutir políticas públicas e inserir as comunidades caiçaras como detentoras de direitos, a exemplo do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) que, desde 2005, pelo Decreto 6.040/2007, até os dias atuais, está inserida no CNPCT. As associações também buscaram parceria com a Defensoria Pública Estadual, com o Ministério Público Federal e com  professores/pesquisadores de diferentes universidades públicas, constituindo equipes de pesquisa que atuam em coprodução de projetos de pesquisa, mas a articulação entre as comunidades também é um destaque importante.

Revista Coletiva — Como se dá a articulação entre as diferentes comunidades caiçaras do Litoral Sul e Sudeste do Brasil?

Adriana Lima — Desde sempre, as comunidades estão organizadas para suas práticas de vida, seja para pescar, para plantar, para construir e outros, mas precisaram se organizar em outros formatos,  seja em associações, núcleos, fóruns ou coletivos. Em 2007, com a Política Nacional de Desenvolvimentos Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), inicia-se uma grande mobilização das Comunidades Caiçaras e, em 2014, elas fizeram uma grande mobilização e, num encontro em Trindade, Paraty (RJ), criaram a Coordenação Nacional da Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC), envolvendo o Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Cada estado e cada município possui suas representações, constituindo pautas comuns e priorizando atuação. Também ocuparam o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) como titular e suplente, levando as experiências dos territórios caiçara. 

Revista Coletiva — Qual a avaliação que você faz sobre as iniciativas e possibilidades de articulação entre diferentes Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil?

Adriana Lima — Eu vejo como uma experiência intercomunitária muito potente, pois consegue unir esses diferentes grupos que lutam pelo reconhecimento da sua existência e do direito ao livre acesso aos territórios de uso tradicional. Eu participo de diferentes espaços, para além da organização caiçara, e um deles é composto por quatro segmentos: caiçaras, indígenas guarani mbya, caboclos e quilombolas (Vale do Ribeira/SP) e a outra é a Rede PCTS do Brasil, que envolve os 28 segmentos reconhecidos pelo Estado brasileiro. São grupos com histórias e lutas próprias, que ocupam todos os biomas brasileiros e, quando esses grupos se encontram, ocorre uma grande conexão de diferentes sistemas de manejo, de autogestão e  de protagonismo.

Revista Coletiva — Como você avalia o potencial e os limites da Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e sua implementação?

Adriana Lima — A política foi construída a muitas mãos e pelas nossas mãos, então ela é muito importante para nós, pois tem o nosso protagonismo e reflete as nossas necessidades e demandas. Porém, ela tem limites, já que é uma política pública e tem suas limitações, dado que precisa de vontade política e disputa de recursos. A elaboração do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais é uma possibilidade de organizar as demandas com metas e com recursos necessários para não precisar fazer a disputa de recurso com outros setores, precisamos que tenha recurso definido para nossas especificidades e isso deve ser compromisso político do governo.

Revista Coletiva — Vivemos um momento de profunda emergência climática, ecológica e civilizatória. Como você vê o lugar dos Povos e Comunidades Tradicionais no enfrentamento desta emergência?

Adriana Lima — Os Povos e Comunidades Tradicionais são aqueles que detêm ciências próprias que podem contribuir para propor modelos de vida, para viver bem em comunidade. Somos a última fronteira para se impor ao sistema perverso de destruição da vida. Cada vez mais, os diferentes grupos vêm mostrando caminhos para gestão dos territórios, cuidado das águas, da produção dos alimentos, das sementes, dos remédios caseiros, das relações intercomunitárias, propondo também políticas públicas mais assertivas com suas efetivas participações.

A ENTREVISTADA

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Adriana Lima é mulher caiçara, educadora popular, pedagoga, pesquisadora local e  monitora ambiental.  Atua  em organização comunitária há mais de 20 anos na defesa de direitos e efetivação de políticas públicas. Integra o Instituto Caiçara da Mata Atlântica; a Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras; o Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais do Vale do Ribeira (SP) e Rede PCTs do Brasil. Atualmente é conselheira no CNPCT e também  faz parte do Feminismo Comunitário de AbyaYala-Tecido Pindorama -Brasil.

COMO CITAR ESSE TEXTO 

 

LIMA, Adriana. Entrevista com Adriana Lima. [24 abr. 2024] Recife: Revista Coletiva. Entrevista concedida a Pedro Silveira. Disponível em: <coletiva.org/dossie-povos-e-comunidades-tradicionais-n34-entrevista-adriana-lima>. ISSN 2179-1287.

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