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E n t r e v i s t a 

Entrevista com Gabriel Feltran

10.2021 | Por Cláudio Roberto de Jesus e Rodrigo Figueiredo Suassuna

O entrevistado da Coletiva é o professor Gabriel Feltran. Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Carlos e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Possui uma grande experiência em pesquisas sobre violência e desigualdades, especialmente nas periferias pobres. O currículo de Gabriel é extenso e bem conhecido no meio acadêmico, no entanto, o que não aparece no lattes é sua disponibilidade e generosidade. Sempre solícito, nos recebeu virtualmente para um longo bate papo no início de julho.

 

A conversa foi longa, mas nem percebemos o tempo passar, ficou faltando o café e pão de queijo, daí seria uma entrevista sem fim. Gabriel fala de um lugar pouco comum na academia, que é acostumada a olhar para a realidade através dos números. Transita com muita tranquilidade em circuitos e lugares que conhecemos pouco. Seu olhar sistemático e rigor analítico nos leva a perceber a realidade das periferias pobres de uma outra forma, ao mesmo tempo em que não abre mão de uma análise abrangente em relação à segurança pública. Cada minuto do bate papo valeu demais, esperamos que a leitura possa ser também, motivo de prazer.

foto gabriel site cem1.jpg

Cláudio - Queria conversar com você uma coisa mais geral e entrar um pouco naquilo que é a sua especialidade, a questão da periferia, das favelas e entender um pouco, ou tentar entender um pouco essa agenda do Governo atual, que aí mistura um governo que tem um viés muito específico, principalmente nessa área da segurança pública com o contexto de pandemia. Então a gente tem uma reviravolta na questão da segurança pública. Mas queria começar te perguntando em relação a Constituição de 1988, queria resgatar um pouco uma trajetória e entender quais foram as principais mudanças na configuração da violência e insegurança especialmente no caso das periferias urbanas e nas favelas, e quais atores estavam envolvidos nesses processos de mudança.

 

Gabriel - Legal Cláudio. Primeiro obrigado pelo convite é um prazer conversar um pouco. A gente vai amadurecendo as coisas quando a gente conversa, né? Sobre a Constituição eu acho que teve uma uma característica importante dos anos 80, né? E foi a ideia de que, bom, a gente não vivia nos anos 80 um surto de violência, os homicídios eram baixos, você tinha o que a gente chamava de delinquência, né? Criminalidade local, organizada localmente, pouca 6arma de fogo, quando tinha arma de fogo era arma leve, nada comparado com o que a gente vive hoje, a gente passou de um mundo que era relativamente seguro e com muito cruzamento entre classe média, classes populares, mesmo uma elite, mais convivência do que a gente tem hoje, e muito menos sensação de insegurança. Nesse cenário e por grupos mais progressistas, com o fim da ditadura, o antimilitarismo naquele momento do fim da ditadura, a Constituição de 88 não se preocupou muito com segurança. A Constituição de 88 considerou como parte do pensamento progressista, até hoje considera, de modo anacrônico, que segurança é um subproduto, né? Que violência é um subproduto das desigualdades e que portanto o processo de democratização naturalmente sem nenhum tipo de esforço setorial específico traria mais segurança para a população. A violência que vivia era uma violência que era resquício do regime militar por natureza. Com a democratização e dando o curso de direitos humanos para polícia, a gente ia democratizar o Estado e a polícia e o problema da insegurança ia sumir.

 

Cláudio - E uma crença muito forte na questão da participação popular né ? Eu acho que foi sobrestimado nesse ponto.

 

Gabriel - É, acho que em várias políticas, mas nessa especialmente. A criação dos conselhos setoriais e políticas eram um mecanismo louvável, maravilhoso, mas num é redentor. Ele não resolve todos os problemas. Em alguns casos ainda havia fundos para os conselhos no caso da segurança pública. A tese da Ana Paula Gaudeana sobre os CONSEGs é muito interessante para esse debate. Mas o problema é que a gente não vivia um momento que tinha mercado ilegal transnacional de cocaína, mercado ilegal transnacional de arma, de veículos. O processo de globalização jogou a gente nesse mundo, das economias abertas e capitalistas, né? Porque a gente tinha uma economia bastante fechada até os anos 80 e isso nos levou também às economias ilegais, a acessar as economias ilegais transnacionais sem nenhuma estrutura para isso.

 

Cláudio - Tem um contexto aí, né? Sem cair nessa lógica muito imediata e de você ter um contexto econômico frágil e aumento da violência, mas tem um contexto de desemprego que pesa muito nesse caso também, né?

 

Gabriel - Sim, ele pesa porque você tem a chegada forte de mercados muito lucrativos, né? Como o mercado da cocaína, por exemplo, chegando no Rio de Janeiro nos anos 80. Se o rapaz estava desempregado a... sei lá essa época a gente tá falando de dez por cento de desemprego na região metropolitana de São Paulo que vai chegar no final dos noventa com vinte e pouco. E nesse período você tem uma lucratividade gigantesca nesses mercados ilegais. Você não tinha uma crise econômica severa, na economia formal, era um período com escolarização muito baixa ainda das periferias. Diferente de hoje que você tem um aumento bem significativo da escolarização das gerações mais novas. Naquele período não. Toda criança na escola é dos anos 90 do governo FHC. Então, você tinha o índices de analfabetismo, de questões de saúde muito básicas, de mortalidade infantil, muito alta, saneamento muito precário, desemprego e você tinha e ao mesmo tempo os mercados altamente lucrativos, em que o cara fazia dez salários mínimos em um mês.

 

Cláudio - Mas ainda muito incipiente. Sem grande organização assim como a gente vê hoje, né?

 

Gabriel - Não, nada comparado. Naquele momento a gente viveu em São Paulo. Com a chegada forte desses mercados, de armamento do Paraguai e de cocaína e maconha do Paraguai também, na chegada do crack, e tudo isso foi em São Paulo o que foi chamado na época das guerras dos anos 90. Quer dizer, você tinha grupos locais organizados apenas localmente, só que aquela lógica né? Da Vendeta de produção de segurança do bairro. Que é ficar ali, é... ou contratar um justiceiro. E nesse momento passa assim aquele moleque da esquina que era meu inimigo ou da rua de cima que era meu inimigo de repente se eu tomar o ponto dele eu faço cinquenta mil reais por semana, era coisa nesse nível. Isso foi o processo de aceleração das vendetas que gerou o aumento vertiginoso dos homicídios em São Paulo nos anos 90. Justamente porque você não tinha nenhuma regulação mais ampla como há hoje pelas facções.

 

Cláudio - E no caso o mercado consumidor era basicamente o mercado interno ou já tinha essa essa pretensão de buscar a Europa ou outros mercados?

 

Gabriel -   Nada, era o mercado local. A gente olha nas entrevistas que eu tenho feito assim os anos de 2012, 2013, 2014 que são anos de chegada do PCC no Porto de Santos, nos portos do Sul do Brasil e dessa chegada efetivamente ao atacado. Os anos lá pro final dos anos 2000, chegando a 2008, 2009 e 2010 é que vai começar a aparecer mais forte PCC nas fronteiras do Brasil, negociando no atacado. Então esse controle da cadeia é muito mais recente. Nesse período, os grupos populares eram clientes de grandes traficantes em geral das classes médias e altas. Sim, muito político envolvido, político local, os caras que tinham as pistas de pouso nas próprias fazendas essa faixa de fronteira nossa. 17 mil quilômetros de fronteira seca, né? No Brasil, então... Todo mundo que é proprietário nessas regiões começa a entender que esse era um grande negócio e fazia isso chegar até as favelas.

 

Cláudio - A questão da fronteira. O da fluvial é mais recente, né? Essa questão da incidência do tráfico, mas como é que nos anos 90 a questão da segurança pública se apresenta especialmente no caso das periferias urbanas? Como é que fica a configuração? Você já falou da explosão da violência, especialmente em São Paulo, mas isso se generaliza em várias partes do país, principalmente nas metrópoles. E como é que fica essa configuração entre Estado, Município, União e sociedade civil? Como é que isso se apresenta na agenda pública? Porque tem diversos atores aí que vão se mobilizar frente à Explosão da violência.

 

Gabriel - Tanta coisa, né? Nos anos 90 as taxas sobem muito. Sejam as taxas do crime contra o patrimônio, seja as taxas de homicídio elas sobem muito em São Paulo. Elas já tinham subido no Rio de Janeiro. 90 é época de subida também, por exemplo em Minas Gerais. É época de subida em geral nas áreas mais industriais do Brasil. Uma lógica de insegurança começa a ser mais generalizada com taxas efetivamente explodindo, de homicídio e tal, em outros estados só mais recentemente também quando as facções se expandem mais detidamente. Então a explosão mesmo de taxas de homicídio em outros estados no Nordeste, no Norte do Brasil, no Centro-Oeste, é a partir dos anos 2005, seis e vai subindo, subindo até 2017, onde 14, se eu não me engano, 15 estados brasileiros dos 27 tem o pico de homicídio.

 

Cláudio - É o ano do massacre de Alcaçuz.
 

Gabriel - É a época dos massacres, a ruptura CV e PCC1 e todas as mortes associadas a essa guerra. Em relação às políticas de segurança, eu vejo que a gente teve duas propostas, ambas irrealistas e ambas ainda existentes hoje no debate polarizado nesse tema. A primeira proposta era aquela que a gente vinha falando. Pegar por exemplo os autores mais clássicos da discussão dos anos 80, 90, sempre vão apontar para as causas estruturais, a nossa desigualdade, a nossa privatização dos espaços públicos, a impossibilidade das pessoas acessarem recursos. Isso produziria conflito social, que se manifestaria depois como violência policial, como reação violenta da parte do crime, contra a lei tal e a lei do crime contra patrimônio e o roubo e a revolta e as revoltas nas cadeias, etc. Se a gente expandir direitos vai resolver esse problema. Do ponto de vista setorial específico da segurança, não tem nada a ser feito, né? É só democratizar que a coisa vai resolver. E do outro lado, é assim: vamos matar, vamos meter bala, vamos oprimir, dar tapa na cara, chute, cusparada.

 

Claudio - Prender os líderes, né? Tinha muito essa ideia, né? De que havia uma liderança.
 

Gabriel - Não, depois do tapão, do pescoção, da cacetada, do assassinato, do extermínio que culmina, no caso de São Paulo, no massacre de Carandiru em 92, aí vem a segurança pública  1 Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, respectivamente. São os dois principais grupos do crime organizado no país.

 

Nós seremos técnicos, nós vamos fazer tudo... segurança ambiental, vamos equipar as polícias, fazer vigilância, mexer nas plantas das Cadeias, descentralizar os presídios, fazerem os presídios gerarem desenvolvimento nos municípios pequenos, vamos fazer trabalhos de seguir o dinheiro, inteligência, pegar a ponta, né? A ponta da pirâmide, tirar a cabeça das organizações criminais. Bom, tudo isso é anos 90 em São Paulo muito forte. Desde que o PSDB assumiu os governos  fez uma reforma no sistema de segurança muito expressivo, estrutural, saindo daquela lógica anterior dos anos 90, 91, 92, foi o pico de letalidade policial com um monte de massacres que culminaram no massacre do Carandiru. Então a primeira lógica de governo é não, vamos matar tudo que vai resolver, vai limpar. E vendo que só produzia muito sangue, mas não produzia muito resultado em segurança pública, na medida em que um morria o outro tava lá pra vender aquela droga, um morria, o outro tava lá pra roubar aquele carro e vender as peças no desmanche e assim por diante. Então começa uma outra lógica de segurança pública que vai ao mesmo tempo criminalizar a pobreza, produzir o encarceramento massivo e facilitar assim de modo muito evidente a expansão das facções criminais, especialmente do PCC, no caso de São Paulo. Se você tinha guerras nas periferias ao mesmo tempo, teria um sistema carcerário superlotado, pequeno, e muito violento. Esse sistema carcerário vira PCC, se pacifica. Nas guerras do PCC com outras facções e depois na lógica PCC de ir no ritmo de cadeias pacificadas. Então o Governo pega todo mundo que tá em guerra lá fora e joga dentro do sistema pacificado e expande o sistema só que com isso você expande junto a facção e faz com que em dez anos, de 93 até 2003 o PCC basicamente tivesse se espalhado por todo o sistema penitenciário e daí pras periferias. 2003, 2004, 2005, período de emergência do PCC na periferia e aí você tem efetivamente uma outra força. Uma outra força que não a força de Estado, organicamente representada no mais populoso estado do Brasil se fortalecendo, regulando, esses mercados ilegais fazendo muito dinheiro e se expandindo pelo Brasil inteiro para muitos outros lugares. Nós temos uma espécie de investimento público no PCC, né? Por vias indiretas e uma instrumentalização muito forte das políticas de segurança para as facções crescerem. Então se fala: não, é facção criminosa, é grupo de bandido, a gente tem que isolar as lideranças. Então vai jogando o que eles chamavam de liderança pra tudo quanto é lado do Brasil pros interiores... E levando o PCC pra tudo quanto é lado, porque o PCC funciona num regime de posições. Como a gente já vem falando há muitos anos, mas ainda sim tem muitos que não entenderam né? Acham que é uma lógica hierárquica, de mando né? E não é assim. Então isso foi também ajudando a expandir as facções. E o PCC que já tinha a sua aliança com o Comando Vermelho, Comando Vermelho já muito presente em outros estados, em algumas fronteiras. Então a expansão dessas duas facções lado a lado é muito marcante.

 

Cláudio - Quando você tá falando dos anos 90, você fala que tem dois lados, mas eles não são opostos, né? Acaba que a agenda da segurança é composta por essas duas posições e cria um grande monstro, né?

 

Gabriel - Cria um grande monstro porque de um lado mata muito. De um lado sempre tivemos polícias muito violentas e essa lógica punitivista é muito marcada. E de outro lado você joga na mão, sobretudo de policiais, a gestão da segurança pública e as polícias vão se tornando cada vez mais autônomas porque os governos não sabem fazer. Quando sabe... a gente tem, claro né, tem exceções, a gente tem Luís Eduardo Soares, tem Pronace que foi feito bem nessa primeira concepção que poderia ser muito melhor. Você tem ao longo de todos esses anos e durante mais de vinte anos a gente tem uma ausência de política de segurança pública progressista. Ausência, nunca tivemos política de segurança pública progressista. Eu estive num evento há uns dois anos atrás, não era pandemia ainda, com dois ex-ministros da Justiça, e um deles ministro da Segurança já no governo Temer. Duas pessoas progressistas de origem. O José Eduardo Cardozo e o Raul Jungmann. E ambos disseram, olha você está ali, você está num mundo que é repleto de forças de segurança fazendo pressão por todos os lados, é muita dificuldade de manejar o orçamento, tudo já carimbadinho para você fazer mais cadeia, para você fazer mais lógica punitiva e você não tem força política para barrar a força que vem das próprias polícias. De todos os níveis: Municipal com militarização de guardas civis; estadual com as polícias militares cada vez mais fortes; nas mesmas policiais civis politizadas; e Polícia Federal. Do outro lado, o judiciário com um lobby muitíssimo pesado e conservador também. Então eles falam, essa área ela foi uma área que de certa forma foi abandonada para esses grupos, porque sempre as esquerdas e os grupos progressistas acham que não tinha nada pra se ser feito em segurança pública. E foram deixando com que as polícias tomassem conta das áreas de segurança, direito da segurança, e assim é, cada vez mais se exige autonomia policial. Você imagina um país cujo executivo não pode controlar suas polícias externamente, né? Em que a sociedade não tenha nenhum controle sobre as polícias e a gente vive esse absurdo hoje as polícias querem ser institucionalmente autônomas. Como se já não fosse, na prática já agem de forma autônoma como grupos político-ideológicos cada vez mais explicitamente.

 

Cláudio - Então eu queria que você me explicasse o que seria uma agenda progressista na área da segurança pública? E também se de certa forma, essa essa ideia de que a questão da segurança pública tende a se resolver sozinha. E aí entrando um pouco nos anos 2000, eu não sei, é uma impressão minha, muito mais impressão, mas me parece que com a retomada do crescimento as coisas vão melhorar automaticamente, é quase que se fosse, né? A gente tem a inserção da população no mercado consumidor, tem um aumento do mercado de trabalho formal, a expansão ainda que a informalidade seja persistente. Mas nunca se dá a importância devida né? Eu gosto muito de estudar a questão da informalidade e a questão dos ilícitos, passo por esse universo, a gente nunca dá importância para algo que é estrutural da nossa sociedade, que não muda de forma automática. Aí eu queria que você falasse um pouco sobre isso, o que seria uma agenda progressista? E se de certa forma os movimentos mais progressistas não tendem a cair nessa armadilha de achar que a questão da segurança pública está intimamente ligada ao desenvolvimento econômico, crescimento econômico?

 

Gabriel - Não, sem dúvida, isso é uma coisa que a gente percebeu muito claramente. Durante todos esses anos de pesquisa de campo. Quando aquece a economia e aquece o consumo, as pessoas compram mais geladeira, compram mais carros, compram mais microondas, compram mais armas, compram mais drogas, fazem mais festa. Os mercados todos se aquecem, não tem uma lógica de que assim do lado do bem melhor que o lado do mal.

 

Cláudio - Eu acho que tem esse romantismo, né?

 

Gabriel -   É uma visão equivocada porque a gente acha que realmente existe uma sociedade e um submundo do crime desconectado dela. Que quanto mais essas sociedades crescerem e se expandirem, esse submundo vai diminuir pequenininho. Só que não é sociedade fora da sociedade. A nossa sociedade tem muito dinheiro ilegal, a nossa sociedade se nutre muito desses espaços criminais, a nossa ordem é promovida por atores legais e ilegais. Essas coisas já estão plenamente conectadas.

 

Cláudio - E sustentam inclusive as crises, né?

Gabriel - Claro, as crises igualmente. Agora, por exemplo, em um dos últimos artigos que eu escrevi sobre mercados ilegais e etc, ideias que são evidentes, mas que as pessoas, quando a gente fala, as pessoas ainda falam, ah é mesmo, né? É claro isso, mas bom o menino ganha quinhentos reais vendendo droga, ele vai no shopping center, e compra McDonald 's, compra Nike, certo? Então o dinheiro que era ilegal num virou legal, virou economia global no outro dia. Virou emprego, virou imposto, virou tudo porque a gente taxa consumo. Além do que, se você tem, sei lá, tô falando agora de um de um menino vapor num ponto de venda de droga. Agora se a gente tá falando de um cara que tem vinte pontos de venda de droga e que tem dois milhões na conta dele todo mês, esse cara evidentemente vai ter que fazer investimentos, né?

 

Cláudio - Mais sofisticados, mobilizar profissionais, né? E vai ter que mobilizar no mínimo algum profissional para gerenciar.

 

Gabriel - Vai. Vai abrir um hotel, vai abrir um posto de gasolina, um restaurante. Um restaurante quer dizer vocês imaginam né? Com o tamanho do tráfico de drogas no Brasil com o tamanho do mercado de roubo de carro, com o tamanho do mercado de armas, a gente imagina quantos restaurantes, hotéis, postos de gasolina, cabeleireiro, barbearia, tabacaria, etc, não são produzidos com dinheiro ilegal. Mas como a gente imagina, que tem o lado bom e o lado ruim, porque é uma imagem moral, né? Que se criou da sociedade, que não tem nada de sociologia. Aí imagina-se também que o lado bom crescendo vai diminuir o lado ruim. E não é assim que funciona porque não tem lado bom e lado ruim. O que tem são relações e conflitos sociais.

 

Claúdio - Aí tem uma ideia também que o dinheiro é tipo em El Chapo, fica tudo na parede, o dinheiro não circula.

 

Gabriel - É, né? Não, não fica tudo guardadinho ali, né? Enfiado em algum colchão. Bom, e sobre a agenda progressista. Eu acho que em primeiro lugar, vou falar de três pontos aqui, a regulação dos mercados ilegais, regulação pública dos mercados ilegais, e a expansão da justiça e sobretudo o esclarecimento de homicídios que eu acho que joga um papel fundamental aí, e ações propriamente de segurança, de policiamento e de formas de pensar a segurança pública. Eu acho que esse isso comporia três pilares do que a gente tem discutido que seriam caminhos de uma de uma agenda progressista para área de segurança como um todo. Primeiro a regulação de mercados ilegais. Tenha a regulação de toda a cadeia de produção, seja com foco no consumo seja com foco na circulação, né? Há mil formas de se fazer isso. Em São Paulo, por exemplo, houve a tentativa, bem sucedida no caso de São Paulo, não tanto de outros estados, de regulação do mercado de autopeças. De desmanches, desmontagem de veículos de autopeças. Ela vem mostrando resultados bem importantes. O roubo e o furto de veículos caíram muito nos últimos anos, depois desse esforço de regulação não se sabe se isso é imediato, se é diretamente vinculado à lei ou não, está sendo feito e estão sendo feitos estudos nessa área. Mas o fato é que depois de uma tentativa de um esforço grande de regulação os mercados reagiram, os desmanches que podiam se tornar legais se mobilizaram, se associaram, fizeram associações de desmanchador, se tornaram espaços legalizados. Os desmanches ilegais, claro, continuam existindo mas em menor quantidade. Tem um processo de abertura dessa economia. As peças roubadas vão competir com as peças chinesas. Se tem um monte de formas de regular esse negócio e o fato é que o roubo e o furto de veículos estão caindo bastante. Isso é uma coisa, né? Primeiro ponto: regular mercados, regular mercados ilegais.

 

Claúdio - No caso do mercado de drogas, como seria isso?
 

Gabriel - Ué, você tem mil alternativas que estão sendo experimentadas pelo mundo. Desde o tipo de regulação pública que o Uruguai fez da maconha, por exemplo, em que a produção e toda a cadeia pública até formas como nos Estados Unidos. Que abre-se a concorrência e empresas vão dizer, não, eu quero produzir maconha, eu quero plantar maconha, eu quero fazer e vai fazer isso legalmente. Ninguém toma tiro vendendo cerveja, certo? Que é uma droga. E outras coisas associadas à regulação são as tentativas de foco no consumidor também como no caso do tabaco. As campanhas para antitabagistas são focadas no consumidor isso vem reduzindo o consumo de cigarro no mundo inteiro. Ah mas vai acabar com o cigarro ilegal? Não, não vai acabar, mas a gente vai diminuir violência nesse mercado, a gente vai reduzir danos nesses mercados e assim por diante. Então seja uma regulação mais de mercado, seja uma regulação mais via Estado é preciso fazer isso. Você pode inclusive taxar essas empresas e dizer olha a gente vai ter, no mercado da cocaína, que é um mercado de lucratividade astronômicas, pode falar não, o preço vai ser caro pra venda, a gente pode regular esse preço na venda via estatal, você pode definir que os impostos dessa acumulação vão ser destinados para políticas sociais. Há muitas formas de fazer uma regulação de um mercado como esse, o que não dá é pra deixar a coisa como ela está. Custa um dólar uma grama de cocaína na Colômbia, isso custa três dólares no Brasil e custa cento e quinze, cento e vinte dólares na Europa, depende do país, pode chegar a cento e sessenta na Europa do Norte. Ou seja, é um um tipo de lucratividade astronômica. Que muita gente vai se matar por ela, se não tiver nenhum tipo de regulação. Então, e sobretudo os países da América Latina onde as taxas de homicídios são as mais altas do mundo, é daqui que tem que surgir isso. A gente não tem que esperar isso acontecer na Inglaterra, na Alemanha, para tomar uma posição aqui. A gente tem de cinquenta a sessenta mil homicídios por ano. Uma coisa absurda. Bom, primeira coisa eu acho que é isso, a gente tem que ter um esforço sério. De discutir regulação de mercados ilegais e há muitas experiências já. A segunda coisa eu acho que assim, tem que, teria que ter um processo de legitimação da justiça estatal. E basicamente o que as facções fizeram, pra crescer tanto? Elas ofereceram renda para uma molecada. Ofereceram pertencimento, etc, coisas simbólicas também, masculinidade, tudo isso, mas elas também ofereceram justiça. Não é a justiça democrática, mas é uma forma de justiça, né? Então, menos de 15% dos homicídios são esclarecidos no Brasil, 85% dos homicídios não são furto de celular, que a gente tá falando, nós tamo falando de homicídio. Você tem 85% dos homicídios que não são esclarecidos no país. Imaginemos que homicídios são esses.Evidentemente os homicídios que vitimizam o jovem negro periférico trabalhador baixo dos mercados ilegais. Ou seja, pode matar que não acontece nada, não vai ter nem inquérito. A estatística que veio do Rio de Janeiro agora, mas isso é geral no Brasil inteiro, 99,2% dos homicídios policiais são arquivados pelo Ministério Público. Ou seja, você não tem… é... a polícia pode matar a vontade e a molecada do crime pode se matar a vontade também que você não tem nenhum tipo de presença estatal nessa mediação. Então quando morre alguém na quebrada quem que vai falar o quê que aconteceu? Quem que vai? Como isso vai ser resolvido? Em São Paulo foi o PCC que fez isso. Não tem inquérito no Estado, mas tem um tribunal pela facção. E a apuração feita pela facção interdita o homicídio e diz, não pode ter cadeia de vingança a mais, se você matou errado, você vai ser morto, mas se você matou e você tava certo, você sai, mas acabou o conflito aqui, ninguém pode te matar de volta para vingar o morto. Acaba com essa cadeia de vendeta que o homicídio vai lá embaixo, né? São Paulo tem as taxas mais baixas de homicídio do país. Depois de ter tido as mais altas. Que as taxas de homicídios entre jovens no ano de 2000, 2001 em São Paulo bateram em quase mil por 100 mil. Taxas entre jovens de quinze a vinte e cinco anos. Tô com esses dados frescos na cabeça.

 

Cláudio - A letalidade policial também caiu?
 

Gabriel - Letalidade policial vem subindo em São Paulo. Primeiro ela tem um pico no comecinho dos anos 90 com essa política do Fleury, que era aquela política de matar a que deu no Carandiru. Depois tem uma reforma, a letalidade policial que cai muito. A gente tem uma letalidade que cai de 1400 mortos por ano pela polícia no estado, numa época que eram 30 milhões de habitantes, hoje são 44. Tinha 1500 mortos pela polícia por ano no estado, isso cai para 100, 150, 200. Cai muito e depois ela vem subindo, agora a gente tá batendo em 1000 de novo nos últimos anos. Mas o homicídio geral cai muito e especialmente o homicídio do jovem negro de entre quinze e vinte e cinco anos cai muito a ponto de cruzar é

o único estado em que cruzam as linhas. E esse homicídio de jovem vai pra baixo do do homicídio geral. Então a gente precisa entregar a justiça na periferia porque isso legitima o Estado e aí a pessoa prefere ter uma investigação via Estado do que ter uma investigação via facção. Agora se a gente não entregar a justiça na periferia a facção vai entregar e as pessoas vão preferir alguma justiça a nenhuma justiça. Então esse é um segundo ponto que eu acho que é fundamental. E o terceiro ponto é propriamente a parte técnica de segurança pública. E a parte técnica de segurança pública significa fazer um policiamento cidadão. Significa não separar as zonas da cidade que a gente vai combater e as zonas da cidade que a gente vai proteger. Significa uma polícia que efetivamente garanta direitos à segurança da população. Que não é o que acontece, né? A gente tem hoje uma polícia que ataca uma parte da população militarmente como guerra. E uma outra parte da população paga segurança privada porque também não pode contar com a polícia. Então é uma coisa totalmente disfuncional que faz das polícias atores políticos em benefício próprio. Lutando para terem cada vez mais recursos e mais autonomia para se tornarem cada vez mais poderosos e para mandarem na nação. E com uma lógica guerreira. Com uma coisa cada vez mais messiânica, cada vez mais fundamentalista, cada vez mais eu leio coisas das polícias, a coisa tá num nível assim. Somos o último bastião que separa a sociedade da barbárie. Então tá tudo errado. O que eu tenho tentado dizer é que na nossa segurança pública tomou um caminho errado e acelerou nele nos últimos vinte anos. E agora a gente tem que tentar achar um retorno. Para tentar voltar pra algum caminho que vale a pena, mas a gente não tá achando que acelerar mais vai funcionar.

 

Cláudio - Sim e nesse caso como é que surgem as milícias? Qual é a inter-relação desses processos? A da consolidação das facções a essa nova forma de agir nas periferias que vem das milícias, como é que isso se coloca atualmente?

 

Gabriel - Então Cláudio, o que eu vejo é assim, os anos 80 e 90 foram anos de muita expansão criminal que produziram as facções. Que mudaram daquele quadro inicial que a gente tava falando de delinquência, aquilo passou para o que a literatura internacional começou a chamar de crime organizado. Ou seja, você sai de uma lógica assim muito do desvio. Lembra a literatura do desvio, né? Você sai daquela literatura sobre o desvio de comportamento, de delinquência juvenil, de coisas assim. Que tem franjas na sociedade que não estão se adaptando. Você sai daquilo pra literatura de máquinas. De produzir dinheiro a partir de mercados ilegais globais, com armamento cada vez mais sofisticado, com controle territorial às vezes. Nesse processo de expansão criminal, você tem uma reorganização de todas as lógicas de manutenção de controle do crime. No caso que eu conheço bem de São Paulo, é bem exemplar a esse respeito. Você tinha o que? Justiceiros bem capilarizados nas periferias fazendo esse controle de delinquência. Um controle extra legal, assassino muitas vezes. Com justiceiro com pé de pato como chamava, grupo de extermínio, etc. Esse grupo bem capilarizado agindo ilegalmente, conectado às polícias como força estatal, por sua vez governado pelas elites. Você tem uma cadeia de transmissão. Das elites que querem manter uma ordem na cidade para os seus corpos policiais para quando é necessário agir forte na cabeça deles. E lá capilarizar o controle e matar, exercer a soberania, como Foucault diria. Bom, quando as facções ganham lá na frente esse conjunto capilarizado aqui é expulso das periferias. As facções expulsam esses caras, sejam as facções do Rio que se fecham. Em ambientes territoriais controlados armados. Seja em São Paulo a expulsão e a morte dos justiceiros dos pés de pato. Então essa área aqui das periferias ela é tomada de fato pelas facções e o controle do crime se faz muito mais presente nessas margens urbanas. Esses grupos de elite, o que eles fazem? Precisa controlar a fronteira. Então, não pode deixar eles virem pra cá. Pode ver que essa é uma fala recorrente das polícias hoje. Então é a entrevista lá depois do massacre do Jacarezinho. Ele fala, ou a gente larga a mão e deixa eles tomarem conta daqui ou a gente vai ter que fazer uma fronteira para eles não virem para cá e aí começa esse tipo de policiamento que a gente começa a ver hoje que é esse policiamento de fronteira, que as margens urbanas são separadas das outras regiões da cidade por fronteiras armadas policiais. E às vezes do próprio crime. Você subir numa favela do Rio, você vai encontrar os moleques tudo de fuzil. Porque eles estão guardando a fronteira. São soldados de fronteira. Reorganiza assim, você tem um poder do outro lado armado e você tem um poder aqui armado agora, você num tem só um poder com uma capilarização. Isso caminhando produz essa militarização dos dois lados, entendeu? Produz uma militarização muito grande e essas fronteiras deixam de ser espaços de contenção. E aí no caso do Rio de Janeiro isso é super militarizado você precisa ter caveirão pra entrar do outro lado. Mas em vários outros estados você começa a ver áreas da cidade que eram ricas se tornando áreas perigosas porque o crime tá chegando nelas. Aí o quê que a galera faz? Se fecha em condomínio, põe as próprias fronteiras efetivamente armado. Aí os antigos justiceiros agora vão trabalhar na segurança privada. Aí vai ter um empresariamento dessa lógica de proteção das fronteiras entre classes, entre grupos sociais, entre raças. E isso vai virar um outro mercado que vai se expandir por si só, aí vai ter drone, aí vai ter câmera de tudo quanto é lado, agora é a câmera com controle digital, agora é biometria do não sei do que lá, porque daí o mercado vai se sofisticando por ele mesmo. Você não precisa ter mais insegurança para ter mais segurança. O próprio mercado vai se produzir como mais segurança, mais segurança, mais segurança. As milícias é isso, só que com os pobres, né? É a reação dos grupos policiais, ou desses grupos de, jagunço, grupo de proteção privada das elites locais. Que com a aliança das polícias vão conseguir vencer o crime em vários territórios e vão passar a produzir mercados de segurança informais.

 

Cláudio - Produz o medo, depois produz a segurança né?
 

Gabriel - Você produz o medo e vende a segurança, né? E pronto. E aí, ó, se você não pode me pagar 100 reais por mês, você me paga uma taxa a mais no gás quando você comprar. Se você não pode me pagar uma taxa a mais aqui... Só que você tem as polícias aliadas com essas milícias, você considera que o crime é do outro lado. Crime é onde tem facção, e os governos com essas políticas de segurança vão protegendo as milícias e vão fortalecendo a guerra inclusive das milícias com as facções.No caso do Rio de Janeiro, mas aqui em São Paulo a gente vê também espaços em que grupos de policiais ilegalmente vão controlando mercados ilegais também, é possível imaginar pelo Brasil em vários lugares. Então acho que a lógica mais geral é essa. Quem manda no território? Quando você tinha uma hegemonia muito forte de um grupo ligado a elite, de um grupo policial ligado a elites. E esse extermínio na ponta era uma uma chave. Um grande poder armado que se capilariza ilegalmente até as periferias. Depois você tem uma reação e aí vai se expandindo uma fronteira. Porque você tem lá na periferia o crime, controlando mais, no centro as elites controlando mais e áreas de fronteira de choque. E essas áreas vão produzindo muito homicídio. Se a gente não conseguir, que o poder armado estatal seja hegemônico, mas sobretudo que ele não chegue ali matando as pessoas, que seja algo de fato, culturalmente, socialmente aí, do ponto de vista armado, vai continuar tendo guerra. E essas guerras de hoje não são guerras que parecem assim tá no seu limite, me parecem guerras que tão no seu começo.

 

Cláudio - É isso que eu ia te perguntar, se o governo Bolsonaro em alguma medida, o quê ele altera em termos da agenda? No que diz respeito à violência, a insegurança, o que que muda com o governo Bolsonaro? Ou se ele é efetivamente uma continuação desses processos, né? É resultante de todos esses processos que estamos falando e que em grande medida vai impulsionar essa coisa que você tá chamando a atenção e que é assustadora, mas é incipiente.

 

Gabriel - Eu acho que o governo Bolsonaro é uma mudança de intensidade, não é uma mudança de natureza, sabe? Nesse aspecto da segurança pública em vários outros aspectos ele é uma mudança sim de natureza, de forma de fazer política. Mas na segurança pública, é uma intensificação muito forte desse quadro guerreiro. Então é assim, a gente quer mais recursos para segurança pública porque não estamos conseguindo vencer a criminalidade. E aí faz aquilo tudo que a criminalidade instrumentaliza e se fortalece mais, como a gente tava falando antes no começo. Faz as políticas de segurança que geram facção, faz as políticas de encarceramento que produzem cada vez mais quadros para o mundo do crime. Olha as facções pelo Brasil fazendo formação. Chamam de faculdade as prisões, não é à toa. Formação no crime para todo mundo. E daí diz, não temos bons resultados ainda. Precisamos portanto de mais dinheiro pra fazer mais essa mesma política que tá dando tudo errado. A gente pega mais dinheiro pra fazer mais, mais, essa coisa... Aí não funciona, gera mais insegurança, os índices não melhoram. Aí o quê que faz? Precisamos de alguém que seja mais firme e tenha mais dinheiro. Precisamos de mão mais dura. Aí faz mais encarceramento, mais criminalização, mais opressão, mais extermínio, mais letalidade. Aí não tá dando certo, precisamos de mais. Então o Bolsonaro é mais um, né? Eu não sei o que virá o próximo, entendeu? Porque eu fico pensando, veio Fernando Henrique, depois veio o Lula, depois veio Temer, que já era um cara da segurança pública. Agora veio o Bolsonaro que é esse desastre e o que que vai vir depois? Vai vir um candidato já com a  metralhadora falando, eu vou entrar matando e todo mundo vai aplaudir porque as pessoas acham que quando, construiu-se essa fronteira, as pessoas acham efetivamente que vão conseguir matar todo mundo do outro lado e o mundo vai ficar livre desse outro lado imaginário. Que na verdade é de onde ele está tirando o sustento dele e assim por diante. Então eu sinto que na segurança pública o Bolsonaro é um fruto da nossa incapacidade de conhecer o problema e de compreender o problema.

 

Cláudio - E por que é tão difícil fazer um debate substantivo sobre todas essas questões? Você tem o grupo dos policiais antifascistas que tem aqui no Rio Grande do Norte, e é um pessoal que é bem ativo, que promove seminário, faz campanha. Mas a gente vê muito mais a ausência de debates, nem que seja aquele debate mais polarizado, enviesado, mas a ausência completa dos debates é muito preocupante. Porque os próprios políticos mais progressistas não se colocam para discutir isso. A gente teve aqui em 2017 o Massacre de Alcaçuz, eu estive lá um dia, você não vê ninguém, nenhum político. Ninguém da Comissão de Direitos Humanos, a não ser da pastoral carcerária, você não vê pessoal de movimento social, né? E isso me incomoda muito, não há discussão.

 

Gabriel - Não há discussão, não há agenda alternativa, a única agenda que existe é mais cadeia, mais repressão, mais opressão. E a gente fala, bom, mas aí você pega o menino que tá na esquina e você bota ele na cadeia, aí vai ter um vendendo na esquina e outro vendendo na cadeia se formando para ser um faccionado. Aí quando sai esse daqui, ele volta e conversa com esse daqui e eles viram facção também. Só que antes dele sair, já entraram mais dez ali. Então a gente tinha 200 mil presos no Brasil, temos 800 mil presos no Brasil. E a gente tá produzindo criminoso com uma política de segurança completamente sem criatividade, sem o mínimo de avaliação e sem o mínimo de evidência. Nenhuma política de segurança no Brasil é pensada em torno de evidências.

 

Cláudio - Diagnóstico, né? Você num tem. Diagnóstico, monitoramento.
 

Gabriel - Não se tem nada de intersetorialidade, pode reparar, o que tem é uma colonização das polícias para outros setores das políticas públicas. Então a polícia quer entrar na escola, a polícia quer ter escola militar, mas a polícia não quer fazer o contrário, não, vamos ver quais são as formas na escola de apoiar um ao outro para que seja mais seguro o ambiente escolar. Não, a polícia só acredita no militarismo. As polícias, e inclusive a civil cada vez mais militarizada. Elas só acreditam no militarismo. E portanto, os governos vão se tornando progressivamente mais militaristas. Pra não falar militares diretamente, mas militaristas. Todos eles. Inclusive os governos de esquerda, o que é muito assustador pra mim. Para nós né? Que estamos nessa área, é muito assustador. Porque você ver um governante de esquerda, um político de esquerda, falar de segurança pública, ele fala exatamente as mesmas coisas.

 

Cláudio - É isso que me incomoda, ou ele não fala nada, né? Se omite completamente. Ou finge que não é um problema porque ele não quer se expor. Como é que você tem uma coisa tão assustadora como o massacre que teve aqui e ninguém né, foi falar em nome de direitos humanos, é uma coisa que incomoda bastante mesmo.

 

Gabriel - Tem uma natureza de fratura, né? De uma fratura social, existem pessoas que merecem viver e existem pessoas que merecem morrer. E as pessoas naturalizaram isso.

 

Cláudio - Que reforça ainda mais a questão de uma cidadania que é completamente longe daquilo que a gente pensa como ideal de cidadania, ou a sua ausência completa em determinados lugares. O que me incomoda também é um pouco isso. A saída desses grupos que normalmente estão à margem deixou de ser a saída política para ser pelo campo da antipolítica. Os passos da política se reduziram a um processo eleitoral.

 

Gabriel - É, e acho pior que isso ainda, Cláudio, tem espaços da política, sobretudo na área de segurança, que passaram a ser espaço de violência. Você tem debates políticos que não são continuados como discurso, mas que são continuados como violência. Então por exemplo o jacarezinho mais recentemente. E foi muito explícito nessa medida. Teve um processo de

 

ADPF das favelas. A ADPF que segurou as operações policiais no Rio de Janeiro. Disse, ó não vai fazer operações policiais no Rio de Janeiro porque é pandemia.

 

Cláudio - Caiu bastante, né? A letalidade.
 

Gabriel - Baixou 70% a letalidade policial em quatro meses. Então, como o Daniel Hirata que tá bem envolvido nisso, estava conversando com ele, ele falou bom, não pode ser um problema tão complexo assim a letalidade policial. Para com uma canetada de um ministro, baixar 70%. Bom, baixou 70%. A polícia começou a descumprir a legislação e voltou a matar nas favelas. Aí alegando que o crime estava solto e invadindo a cidade, sendo que todos os índices de criminalidade também estavam caindo. Como mostram os dados lá do Geni, o grupo do Daniel. Aí o STF falou, bom tá sendo descumprida a medida aqui, da suprema corte do Brasil. Então vamos chamar uma audiência pública para ouvir os policiais, os pesquisadores, os movimentos, os familiares de vítimas. Chamaram. A polícia mandou representantes mínimos assim, a ideia não foi participar do processo, foi só assim, não ignorar. Chega lá no debate os policiais não conseguem argumentar nada que efetivamente mostre o que tá acontecendo, aquela matança absurda, matando criança, matando mulher grávida. Bom, aí, ou seja, vitória . Da democracia, vitória da Suprema Corte na audiência pública, vitória no controle democrático sobre as polícias. Duas semanas depois, 28 mortos no Jacarezinho e uma entrevista coletiva depois que o cara diz, “esse ativismo judicial não vai nos brecar”. Esse ativismo judicial e esses pseudo especialistas em segurança pública não vão nos barrar. Numa operação que se chama exceptis, fazendo ironia clara à ideia de excepcionalidade que o STF tinha feito em relação às políticas do Rio. Ou seja, você tem uma resposta: tem uma uma derrota política que se transforma numa matança com reivindicação de vitória política. Eles matam 28 pessoas e falam, ninguém vai nos brecar, esse ativismo policial, esse ativismo judicial não vai brecar a sociedade de bem. As forças policiais irão em qualquer CEP para defender a sociedade de bem, em um tom ameaçador. Assim, ou seja, a continuação da política pela guerra literalmente. Então é assim ó, não vamos conseguir ganhar de vocês no argumento, a gente vai matar pra caramba e vai ameaçar vocês até vocês pararem de falar. Essa é a lógica.
 

Cláudio - Isso é algo que é generalizado para todas as polícias de todos os estados?
 

Gabriel - Não, acho que não. Eu acho que entre as polícias militares é hegemônico. Na Polícia Civil do Rio é bem preciso também. Nas polícias federais acho que também é hegemônico, seja na rodoviária federal, seja na PF e em várias Polícias Civis. E mesmo que não estejam com o Bolsonaro, estão com o Witzel, entendeu? Ou com Doria ou com qualquer um do grupo que estavam ali fortalecendo esse tipo de ideia do que que significa a segurança pública. Isso é totalmente hegemônico no Brasil, é muito difícil escapar dessa chave, entendeu? E as pessoas perguntam, mas aí você vai fazer o que então? Se a gente não tiver projeto pra dizer o que a gente vai fazer eles vão continuar mandando. Se a gente não tiver nenhum projeto de segurança pública eles vão continuar fazendo.

 

Cláudio - É por isso que eu acho o silêncio tão preocupante. O silêncio é essa ausência de projeto ou a ausência de assumir um projeto, né?

 

Gabriel - E a incapacidade dos grupos progressistas de sair do discurso de que o problema é que o Brasil é desigual. É claro que é um problema o Brasil ser desigual, mas a Índia também é desigual e não tem tanta violência quanto o Brasil, a Bolívia também não. Então assim, não é simples explicar desse jeito. É claro que a desigualdade joga no nosso conflito social. Mas se não tivesse tanta arma vindo do Paraguai, vinda das próprias forças de segurança, a gente não ia ter os índices de homicídio que a gente tem. Se a gente não tivesse facções desenvolvidas desse jeito, a questão seria outra. Então, a gente tem um modelo de segurança pública que é evidentemente equivocado. Mas não existe nenhuma alternativa a ele posta no debate. A gente fica entre o idealismo, e o pragmatismo das polícias que falam: eu vou matar para defender a sua família. Exatamente. Estamos vivendo uma loucura.

 

Cláudio - Só mais uma questão aqui pra gente encerrar. Mais ligado ao momento excepcional da pandemia, como é que você enxerga isso? De que forma que a pandemia e essa questão toda dessas mudanças em termos do padrão de policiamento, como é que isso altera as políticas de segurança pública? Especialmente no caso das periferias, das favelas.

 

Gabriel - O que a gente viu em dados assim Cláudio, pelo menos os dados que eu tive acesso, houve uma ampliação muito grande da letalidade policial durante a pandemia. Mesmo que as taxas de criminalidade estivessem baixando. E como todos os mercados caíram, os mercados criminais também caíram um pouco, nesse ano de pandemia. Em alguns casos caíram mais e outros menos. Mas me dá a impressão que a ausência de controle, principalmente desse controle social, das organizações que estão trabalhando nas favelas e etc. E esses grupos mais classe média ficaram trabalhando de home office e que na favela todo mundo pegando o metrô, ônibus lotado, indo pra cá, indo pra lá, então a vida meio que continuou. A polícia acho que aproveitou essa ausência do controle que garante mais felicidade, e cometeu muitos homicídios. As taxas de letalidade subiram bastante nesse ano. Em relação a outros índices, a gente tem coisas positivas também, tem diminuição do encarceramento porque o judiciário em alguns estados foi bem sensível a ideia de que não podia ficar jogando gente de fora pra dentro do sistema penitenciário o tempo inteiro. Houve uma diminuição do encarceramento, houve uma diminuição das unidades de internação, da lotação nas unidades de internação de jovens. Pela mesma razão você não vê aumento correlato de criminalidade, o que mostra que uma grande parte de quem está encarcerado hoje não precisaria estar porque não representa nenhum tipo de perigo iminente à vida social. É um momento que ensina bastante, ver esse ano que a gente viveu é um ano de muitos ensinamentos em relação à política pública.

 

Cláudio - Esse eu acho que é um outro ponto que é muito visível mas as pessoas custam a enxergar. E que o aumento do encarceramento não diminuiu a violência, pelo contrário, fomentou ainda mais né?

 

Gabriel - As pessoas acham mesmo que você vai pegar uma pessoa e prender e você vai isolar ela da sociedade, esse é outro mito que existe. As polícias, podem ver, a narrativa delas termina na prisão, a prisão é a redenção. Uma operação policial bem sucedida prendeu tantas pessoas. Só que essa pessoa no dia seguinte tá no crime do mesmo jeito. As prisões têm comunicação de muitas maneiras com o mundo exterior, não só no Brasil. E a pessoa segue praticando crimes da mesma maneira e o lugar que ela deixou lá fora será ocupado por outra pessoa também, porque as redes criminais estão conectadas dentro e fora. Então, a narrativa da prisão não se sustenta empiricamente de jeito nenhum, mas no imaginário, mais uma vez, né? No imaginário do super-herói, acabou, porque acabou ali o ciclo policial. Pegou, entregou pra justiça. Então na cabeça deles acabou heroicamente. Aliás eles adoram essa palavra herói, é tipo MARVEL, os caras tem essa cabeça.

 

Cláudio - E no judiciário tem um um uma coisa que é muito forte também, da punição exemplar. Dessa ideia de que se eu soltar vai criar a ideia de impunidade. A gente vê isso quando acompanha a audiência de custódia, esse discurso é muito recorrente.Eu já escutei assim, Rodrigo também. Se eu te soltar aqui, você vai roubar minha Hilux ali fora. Se eu te soltar a imprensa vai falar que a polícia prende, a gente solta, a gente escuta isso recorrentemente.

 

Gabriel - Exato. E pensando que essa ligação política é dos políticos judiciários, Ministério Público, se cimentou na última década, foi se cimentando na última década e por meio de associações propriamente políticas. Comerciais ou semi comerciais, também de melhoria da comunicação entre grupos sociais. Além desses programas de televisão. Os programas policiais. Nas televisões abertas. Os caras tão agindo politicamente há muito tempo, se conectando entre eles. E a gente tá aqui falando que é a desigualdade.

 

Gabriel - Pra gente terminar com uma coisa mais esperançosa, eu acho que essa coisa é tão imatura esse jeito de pensar a vida é tão imaturo. De pensar essa coisa mágica do super-herói que vai lá e prende e joga pra um lugar onde a pessoa para sempre estará desativada, e o banco viveu um final feliz. Eu espero que isso faça água frente à realidade, sabe? Evidentemente isso não vai dar certo. O meu medo é: quanta gente vai morrer até que se perceba que isso aí não tá resolvendo nada?

 

Rodrigo - Uma outra questão também é uma coisa que você falou lá no início assim, que existe uma coisa assim, uma vida que vale mais que outras vidas. É uma coisa que tem se falado muito na pandemia, que várias vidas estão sendo perdidas por conta da doença. E as políticas públicas estão ajudando, de certa forma, essa alta mortalidade de alguma maneira. E eles falam, parece que agora ninguém mais valoriza a vida. Eu falei não, mas foi homicídios né? Violência no trânsito. E eu penso que isso tem ecos em outras políticas, nessa coisa de uma vida vale mais né? Ou em representações maiores de classe média, de opinião pública, o que você acha Gabriel?

 

Gabriel - Então, eu concordo, acho que em nenhum momento recente a gente discutiu tanto sobre a vida e a morte. E o que eu acho que de fato esse governo que a gente tem mudou de patamar, e que de fato passou a ser um governo mortal mesmo, letal. Que se diverte com a morte de seus cidadãos porque são cidadãos fracos. Aqueles cidadãos fortes não estão morrendo. É como se fosse uma naturalização total da existência. A gente vai morrer mesmo, então que sobrevivam os fortes e que esses fracos todos nos deixem pra que a gente crie uma nova humanidade aqui. É totalitário. É totalitário mesmo, é um negócio impressionante o que a gente tá vivendo. Do ponto de vista do Governo Federal, isso é uma coisa incrível. Tenho acompanhado um pouco dos debates da CPI, é uma coisa assustadora.

 

Cláudio - É assustador porque parece que falta um freio. Não tem um freio. Parece que a partir de agora pode tudo, né?

 

Gabriel - É e veja quem que tá sendo o freio. As grandes elites que compõem o STF e os grandes coronéis que compõem o mundo Renan Calheiros. É isso que está tentando frear essa loucura que vem debaixo deles. Porque esse mundo policial era o mundo intermediário entre as elites e quem deveria ser controlado. O conflito tá aqui. A gente tá vendo o conflito entre esse grosso desse mundo tacanho policial e essas elites estabelecidas que eram também tão assassinas quanto, mas tinham controle sobre eles. A impressão que dá é que tem uma sublevação aqui. A briga dos Bolsonaro com Renan Calheiros é muito isso pra mim. É muito simbólica desse universo, parece que são os jagunços se rebelando contra o coronel.
 

Cláudio - É o próprio baixo clero vendo que tem também poder de mando. Gabriel - E veja, não tem poder de argumentação, mas tem poder armado. Cláudio - Sim. Você tem poder de impor.

Gabriel - E tem poder econômico também, porque esses mercados de orçamentos de segurança cresceram alucinadamente. A gente tava fazendo uma conta esses dias aqui só no Governo Federal, são 120 bilhões por ano diretamente para segurança, só em Governo Federal, não estamos falando da segurança pública efetivamente que está nos estados. Segurança privada é um mercado no Brasil hoje de 35 bilhões. A Petrobras é 100 bilhões. Então assim, segurança privada tá na mão de quem? Tá na mão desses grupos praticamente integralmente. Muito louco tem bases materiais aí também.

 

Cláudio - É, quando você falou de um sopro de esperança... e depois a esperança vai embora, né?

 

Gabriel- O sopro de esperança é que essas coisas deem errado e que as pessoas percebam que isso dá errado, que isso não vai dar certo.

 

Cláudio- Eu não quero prolongar muito mas parece que o que tá dando errado dá certo pra esses grupos.

 

Gabriel - Não, para eles isso tá dando certo, sem dúvida.

Claudio - E quando se fala assim, aí a incompetência do Estado, do encarceramento, não, é muito competente, né, em termos de extermínio, de ampliação do gasto na área de segurança. Então assim dá muito certo para o outro lado.

 

Gabriel- É muito funcional para esses grupos, né?

 

Cláudio- Ninguém é punido. Ou seja, você destacou isso, você comete erros, vamos colocar nesses termos, você comete equívocos e ninguém é responsabilizado efetivamente. Então, assim, assusta muito nesse ponto. Quando eu falo assim de freios é se pensando na própria sociedade civil, que parece que abriu mão. É cada um se salva, cada um toma sua vacina e se vire. Me desalenta muito essa perspectiva.

 

Gabriel - Tem sido cada vez mais a perspectiva dominante. Eu me sinto progressivamente mais isolado entre os nossos. Porque se compreendem quando a gente tenta elaborar a discussão em outras bases.

 

Cláudio - Mas a gente precisa sair disso, né?
 

Gabriel - Fiz uma conversa essa semana com, sei lá, um grupo de uns quarenta adolescentes e jovens de uma favela de Salvador. E foi muito muito interessante, como sempre, mas é, assim, pra gente entender o que tá acontecendo. Mas assim, os jovens extremamente reativos e reacionários, né? E muitas dessas conversas que a gente teve hoje, eles são ativamente contrários.

 

Cláudio - É, eu vejo isso pelos alunos. Também alunos bem jovens, bem engajados em várias posições. Mas qualquer discussão que vá para área de segurança pública é mal recebida, mal recebida pela não discussão. Pela evasiva, e isso me incomoda bastante

 

Gabriel - Esse espaço em que argumentos possam circular, que a gente perdeu. Não é nem que a gente perdeu a argumentação, não é isso não. É que foi cortado pela base. Aquilo que deveria ser uma conversa, já é uma posição polarizada, clara e sempre pautada por essa lógica moral de quem merece e quem não merece viver. É, nós não temos esse governo à toa.

 

Cláudio - Gabriel, eu vou te agradecer demais, sempre muito solícito. Sempre uma conversa bem legal.

 

Gabriel - Estamos à disposição.

O ENTREVISTADO

Gabriel Feltran é Professor do Departamento de Sociologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisador do

Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Professor visitante na University of Oxford (2019), Goldsmiths College London (2019), Humboldt University (Berlim, Kosmos Fellow 2017) e CIESAS Golfo (México, 2015). Atualmente pesquisa: i) os mecanismos de reprodução de desigualdades e violência urbanas, a partir das dinâmicas sociais, políticas e de mercado transnacionais com efeitos nas periferias urbanas; ii) a dinâmica dos homicídios no Brasil e América Latina; iii) regimes normativos. Autor de "The Entangled City: crime as urban fabric" (Manchester University Press, 2020); "Irmãos: uma história do PCC (Cia das Letras, 2018)" e de "Fronteiras de Tensão: política e violência nas periferias de São Paulo (UNESP/CEM, 2011)".

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