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E n t r e v i s t a 

Entrevista com Antônio Bispo dos Santos

04.2020 | Entrevista por Thiago Mota Cardoso.

"Nós extraímos os frutos nas árvores…

Eles expropriam as árvores dos frutos!

Nós extraímos os animais na mata…

Eles expropriam a mata dos animais!

Nós extraímos os peixes nos rios…

Eles expropriam os rios dos peixes!

Nós extraímos a brisa no vento…

Eles expropriam o vento da brisa!

Nós extraímos o calor no fogo…

Eles expropriam o fogo do calor!

 Nós extraímos a vida na terra…

Eles expropriam a terra da vida!"

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Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, habitante do Quilombo do Saco-Curtume (São João do Piauí/PI) nascido em 1959, no Vale do Rio Berlengas, antigo povoado Papagaio, hoje município de Francinópolis/PI.

 

Nêgo Bispo é habitante da caatinga, lavrador, criador de vidas e palavras, um poeta e escritor, um mestre contador de histórias e de contundentes reflexões sobre as inescapáveis questões políticas, sociais e ambientais de nosso tempo. Como costuma ele mesmo ressaltar, Bispo é a fala de um mestre da oralidade que valoriza seus mestres ancestrais que vivem com a terra e pela terra. 

 

Pensador e militante de grande expressão no movimento quilombola e nos movimentos de luta pela terra, Nêgo Bispo é membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI). Como poeta, escritor e intelectual, ou como prefere, um “tradutor do pensamento de seu povo”, é autor de inúmeros artigos e poemas, bem como dos livros "Quilombos, modos e significados" (2007) e "Colonização, Quilombos: modos e significados" (2015). Foi professor e mestre convidado do projeto "Encontro de Saberes", na Universidade de Brasília e é um semeador incansável dos encontros resolutivos e das confluências de saberes.

 

Um semeador de palavras que não perde a oportunidade de criar e recriar conceitos que traduzam o pluriverso dos mundos dos povos e comunidades tradicionais e que abalam o nosso mundo eurocristão, como os conceitos de contracolonização, ao invés de descolonização, confluência e transfluência, e saberes orgânicos e saberes sintéticos

 

Nêgo Bispo nos concedeu esta entrevista de forma virtual, onde, confinados em nossas residências, em plena pandemia da covid-19, refletimos de forma breve e leve sobre a crise ambiental e climática. 

Coletiva  Em texto publicado na revista Piseagrama, Somos da terra, o Sr. se coloca como "um tradutor do pensamento do seu povo e também como um tradutor do pensamento do colonialista". O que implica esse exercício de tradução para o entendimento da questão ambiental?

 

Antônio Bispo  Primeiro, quero agradecer pela pergunta… Pois aprendi que quem pergunta é quem ensina e quem responde é quem aprende! 

Na minha compreensão, implica em um esforço enorme para tentar entender os mais diversos modos de vidas e suas possíveis consequências, de forma resolutiva. É bom começar explicando a partir de onde a gente se posiciona para tentar compreender todos esses processos, como as devastações do ambiente e do clima. 

 

Nós temos discutido muito sobre os saberes orgânicos e os saberes sintéticos. Os primeiros são os que envolve envolvendo o ser e os sintéticos são os saberes que se desenvolvem desenvolvendo o ter.  Ou seja, a maneira que os povos e comunidades tradicionais se relacionam com a terra é de maneira biointerativa, uma maneira orgânica. Nos saberes sintéticos, a vida orgânica, a vida biointerativa, ou seja, a integração entre todos os seres, é desconectada em relação a todos os seres humanos. Esse humano sintetizador se desconecta da natureza e passa a ser ou dono da natureza ou melhor, um explorador da natureza. Isso, digo, fazem a partir de um olhar eurocristão colonialista. 

 

Busco tentar entender essa diferença entre os saberes e os modos de vida, esse é o exercício de um tradutor. Esse exercício resolutivo está acontecendo - nas universidades e nos espaços de debates tem muita gente discutido cosmologia, e isso é um dos caminhos dos mais importantes.  É exatamente através do debate das e entre as cosmologias que os pensamentos se envolvem e nos envolvem.

Coletiva  A ideia do contraste entre o saber sintético e os saberes orgânicos me faz lembrar de outro termo que o Sr. usa, que é o de cosmofobia, o qual entendo como um esforço de destruir o saber orgânico pelo saber sintético. O que o Sr. poderia nos dizer sobre cosmofobia e como isso pode estar afetando o clima do planeta?

 

Antônio Bispo –  A cosmofobia é uma doença do povo colonialista e tem como um dos seus principais sintomas o medo do sagrado. Para entender essa doença, é fundamental compreender a trajetória das suas vítimas e, para isso, podemos tomar como ponto de partida a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden, senão, vejamos!

 

Segundo a bíblia, em Gênesis, Deus proibiu que o casal comesse o fruto da árvore do conhecimento…  Eles desobedeceram e foram expulsos do paraíso, a terra foi amaldiçoada e, como castigo, tiveram que trabalhar. As ervas foram tornadas daninhas e todos esses castigos foram estendidos a seus descendentes. Logo nesse episódio, é possível constatar a obstaculização do acesso ao conhecimento orgânico, fomentando o surgimento do saber sintético, a desterritorialização, a criação do trabalho como castigo, ou seja, as condições necessárias para que fosse gerada a cosmofobia. 

 

Disto, pode surgir a seguinte questão: E o que tem a ver Gênesis com tudo isso? É simples! Basta ler a bula Romanus Pontifex, emitida pelo papa Nicolau V para o rei Afonso V de Portugal, datada de 08 de janeiro de 1455, e veremos que o colonialismo no mundo ocidental tem como uma de suas matrizes a cosmologia eurocristã monoteísta e, portanto, tem extremas dificuldades de conviver com tudo que se origina em outras cosmologias. 

 

A partir da cosmofobia, do medo do cosmo, o eurocristão que havia amaldiçoado essa terra passa a ter medo dessa terra. Como foram proibidos, lá em Gênesis, de comer o fruto proibido, eles passaram a ter medo da mata e dos seres que lá vivem, por temerem ser castigados. Como o cosmo para nós são todos os elementos do universo, então, eles têm medo, e como têm medo, eles destroem. Todo mundo que tem medo, tenta destruir aquilo que lhes assombram.

 

Então, a cosmofobia é a pior doença da sociedade eurocristã monoteísta e cabe a nós, por incrível que pareça, tentar curar as próximas gerações dessa doença, para que essas pessoas percam o medo da natureza e, perdendo o medo da natureza, percam o medo das pessoas que estão integradas com a terra. Elas têm tanto medo da natureza como das pessoas que vivem integradas com ela, por isso que eles têm medo dos povos indígenas e dos povos quilombolas, e seus saberes orgânicos e biointerativos

 

Então, nesse momento, em nossa compreensão, se inicia o desastre ambiental. Pois é a partir desse momento que a vida orgânica, a vida biointerativa, ou seja, a integração entre todos os seres, é desconectada em relação a todos os seres humanos. Esse humano sintetizador se desconecta da natureza e passa a ser ou dono da natureza, ou melhor, um explorador da natureza.

Coletiva – É possível uma confluência, usando outro de seus termos, entre os saberes orgânicos dos povos e comunidades locais e os saberes sintéticos no enfrentamento das questões climáticas?

Antônio Bispo –  Tenho dito que nem tudo que se ajunta se mistura e nem tudo que se mistura se ajunta. Assim, o saber orgânico e o sintético se encontram, porém, não confluem. Nesse caso, é o contrário, o que deve haver é uma refluência… o saber sintético deixando de atacar o orgânico, para que este não precise se defender e cada saber em si atuando a partir da sua essência. Desse modo, surgirão as condições harmoniosas e ou de compartilhamentos que o ambiente precisa.

 

Existe um debate que precisa ser feito. As pessoas têm muita tecnologia sintética acumulada que também pode ajudar a resolver algumas questões. O colonialista não abriu totalmente a mão da relação entre o sintético e o orgânico, até porque sem o orgânico, o sintético deixará de existir. No entanto, eles atam o orgânico como matriz de produção do sintético, e nós pensamos o orgânico como matriz da construção do próprio orgânico. Acreditamos, e a gente sabe que o orgânico por si só se reedita, e o sintético por si só se recicla. O sintético não reedita, ele sempre precisa do orgânico para existir. Portanto, eles ainda têm o saber orgânico, mas o usam de forma acumulativa, de forma devastadora.

 

O que acontece, e é bom reforçar esse ponto: os eurocristãos possuem para influir e nós confluímos para confluir. Nós somos praticantes da confluência e eles da influência. Nós temos que entender essa forma pensamento e não depender da influência deles e, ao mesmo tempo, lhes oferecer a confluência, a possibilidade do compartilhamento. Nesse sentido, nós temos que ajudar as próximas gerações, filhos dos colonialistas, para que eles aprendam a não mais atacar a nós e a nossa futura geração e, ao mesmo tempo, nós temos que ensinar nossas gerações a se defender, porque a gente sabe, a partir de uma técnica antiga de adestramento, que o animal predador, mesmo adestrado, quando tem fome, ataca. Não é o fato de você adestrar o animal que te faz livre, ele pode te atacar a qualquer momento. É um processo complexo que só pode avançar a partir de um debate cosmológico.

Coletiva – Você acha que os discursos dos governos e das empresas, ao afirmarem que são responsáveis e de que estão cuidando do ambiente, visam realmente criar iniciativas e políticas para uma busca por soluções e saídas para o momento em que vivemos?

Antônio Bispo – Não são os discursos dos maquinistas nem dos passageiros e tampouco as políticas de viagens que fazem os trens mudarem de rumo… Um trem só muda de rumo quando muda de trilhos. Então, o que as sociedades, através de todos os seus aparelhos, precisam mudar são os seus conceitos. Em outras palavras, ao invés de desenvolver… envolver! Ao invés de produzir políticas… rever e ou reeditar seus modos de vida. 

Coletiva – Alguns cientistas e pensadores vêm se utilizando do termo antropoceno para evidenciar o impacto dos humanos na Terra, como humanos se tornaram força modeladora das paisagens e da geologia. Este termo aponta para uma ideia, a de que todos nós somos igualmente responsáveis pelos problemas climáticos, pela contaminação e extinção das espécies. Como o Sr. enxerga isso? Todos somos responsáveis?

Antônio Bispo – Essa eu prefiro responder com uma declamação que fiz em homenagem aos caçadores quilombolas, indígenas e demais povos e comunidades tradicionais…

 

Nós extraímos os frutos nas árvores…

Eles expropriam as árvores dos frutos!

Nós extraímos os animais na mata…

Eles expropriam a mata dos animais!

Nós extraímos os peixes nos rios…

Eles expropriam os rios dos peixes!

Nós extraímos a brisa no vento…

Eles expropriam o vento da brisa!

Nós extraímos o calor no fogo…

Eles expropriam o fogo do calor!

Nós extraímos a vida na terra…

Eles expropriam a terra da vida!

Coletiva – O Sr., que vive na caatinga, que cuida e vive da terra, como percebe a degradação ambiental e como afeta a vida de sua comunidade?
 

Antônio Bispo – A caatinga, por conta de sua formação geológica, é um dos biomas mais resistentes que existe. Só a título de ilustração, podemos observar alguns exemplos: o relevo dificulta a monocultura mecanizada em grande escala, as baixas precipitações pluviométricas e o fato de que toda a vegetação nativa é excelente forrageira e ou medicinal, propicia muito mais a pecuária que a agricultura, portanto, em tese, isso significa uma aplicação menor de veneno. 

 

No entanto, existem outras práticas desastrosas, como a substituição das pastagens nativas por pastagens adotadas, que dependem de insumos químicos e provocam degradações sem precedentes, principalmente entre as abelhas os peixes e os demais animais silvestres, e consecutivamente sobre todas as espécies, sem contar que, ultimamente, a mineração e os grandes parques de energias eólica e fotovoltaica têm avançado muito sobre esse bioma e muitos dos impactos ainda são imprevisíveis.

 

Isso tudo, junto com o movimento de devastação mundial, é claro que afeta nossa vida e o clima aqui. Veja, até 1998, na região que eu moro agora, as chuvas começavam em outubro, dava uma ou duas chuvas boas; em novembro e em dezembro chegava o inverno, era assim que funcionava. Em 2011 até 2017, as chuvas começaram a chegar em janeiro e, às vezes, chegavam até em março, tínhamos até momentos de ficar sem chuva. Agora melhorou um pouco, está chovendo bem no Nordeste inteiro, na caatinga tem água acumulada. Acreditamos que vamos ter um período de mais chuvas, mas não distribuída da forma que era antes. As mudanças afetam também as chuvas em outras regiões. As grandes enchentes, como as recentes em Minas Gerais e em São Paulo, também se devem ao rio afetado pelos desmatamentos, envenenamento e pelas cidades, e preocupa. 

 

Veja bem, o debate sobre o clima, pelos cientistas famosos, está fragmentado. É preciso discutir todos os processos e não só o desmatamento. O veneno é tão pior quanto o desmatamento e precisamos ter coragem para discutir isso, de enfrentar isso, respeitando os povos que vivem na floresta, que pescam e caçam para sobreviver  esse caçador cuida dos animais, estou falando do caçador artesanal, "nativo mesmo", e não do caçador destruidor, pois o caçador artesanal escolhe os animais para sua alimentação. 

Para ter uma ideia, na nossa região quilombola, e em algumas de nossas comunidades quilombolas do Piauí, que foram atingidas por grande projetos de energia solar e eólica, grandes empreendimentos em geral, [essas comunidades] se preocuparam em fazer reservatório de água na mata para os animais silvestres. Já viu ambientalista fazer isso? Isso é o povo quilombola gastando parte de suas condições materiais para acumular água na caatinga para os animais silvestres. É isso, cuidamos dos animais, sabemos que são importantes não apenas para alimento, mas para manter o equilíbrio. 

 

Agora, veja outra coisa: Pense na caatinga. Nós achamos que, da mesma forma que existe o preconceito com os africanos, indígenas e outros povos, existe também o preconceito com o clima da caatinga. Todos falam da importância da caatinga para o Brasil, sua importância na produção de mel, de plantas medicinais, de frutas, pois permite criar de forma orgânica e resiste a monocultura e ao agronegócio, que dá a caatinga uma defesa própria, uma defesa orgânica que é seu próprio limite.

 

Nossa avaliação é que a caatinga nos oferece toda a vida, e quando você ataca a caatinga você ataca todas as pessoas que ali vivem. Há um racismo ambiental muito forte frente a caatinga no Brasil, principalmente o povo que mais sofre com o racismo é o povo da caatinga, que sempre foi criticado, as pessoas comiam umbu, comiam macambira e eram chamadas de selvagens. Agora não, agora é gourmet. Se dá muita importância para Amazônia e pouca pra caatinga, isso não é errado, mas é um desvalor aos modos de vida e a autoestima dos povos da caatinga, um ataque ao ambiente como um todo, e isso é pior que desmatar. Tem que botar a caatinga em pé de igualdade com os outros ecossistemas, pois hierarquizar os biomas é um tipo de racismo ambiental. Nenhum [bioma] é mais importante.

 

Coletiva – Em fóruns e convenções nacionais e internacionais sobre o clima vem se afirmando que os povos e comunidades tradicionais são aliados na conservação ambiental e para o combate ao aquecimento global. Como você pensa essa aliança?

 

Antônio Bispo –  É importante ressaltar que esses fóruns são realizados na lógica colonialista, ou seja, desconectados, falam dos ambientes fora dos ambientes, tratam os viventes ditos humanos como os protagonistas e entre os tais humanos não estão os povos e as comunidades tradicionais… Tanto é que nos colocam na condição de aliados, ou seja, coadjuvantes. Para nós, não existe aliança, o que existem são compartilhamentos, pois todas as vidas são de igual importância e interdependentes.

 

Nós não somos aliados, nós somos protagonistas. Eles que são aliados. Aliado é quem chega, nós somos protagonistas das relações biointerativas com a natureza, somos protagonistas da defesa da vida como um todo. Eles não compreendem isso e acham que somos aliados e eles os protagonistas. Assim, o problema vai continuar, porque eles não sabem fazer, eles sabem financiar, captar recursos, mas quem sabe fazer somos nós.

Coletiva – O Sr. afirma que "o poder quilombola sobre a terra é um poder baseado na palavra, na atitude e na ação e não na escrita". Diante disso, que recado pode dar aos outros povos e comunidades locais, diretamente da caatinga?

 

Antônio Bispo – O que tenho a nos dizer é o que já sabemos: Todas as estruturas verticais exercem uma pressão desastrosa sobre as bases, assim como todos os superiores exercem violações sobre os subordinados. Nesse sentido, não deve haver hierarquia ambiental para que não haja violações das vidas.

 

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