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Educação e 

Diferenças e...

Editores Temáticos: Alik Wunder e

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

nº23 | 24 de outubro de 2022

Reafirmando o pertencimento Guarani na educação infantil: o caso dos CECIs nas aldeias em São Paulo

Edson Kayapó

A partir da experiência de trabalho com os Guarani, na condição de coordenador geral dos Centros de Educação e Cultura Indígena - CECIs (2009/2010), situados nas aldeias Ytu, Tenondé Porã e Krukutu, no município de São Paulo, faço apontamentos descritivos e breves análises sobre as contradições e conflitos referentes à implementação do projeto de educação escolar indígena, que é diferenciado nesses espaços, dialogando com a realidade nacional.

 

Tratam-se de memórias atualizadas no tempo presente, levantando problematizações relacionadas àquela experiência, abrindo e fechando o foco para enxergarmos além dos espaços dos CECIs. Sendo assim, o presente texto dialoga com os estudos que realizei posteriormente em nível de doutorado e com minhas atuações na formação de professores indígenas, no Instituto Federal da Bahia (IFBA- Porto Seguro) e em outras instituições de ensino superior. A pretensão não é chegar a uma conclusão definitiva ou exaurir o tema, mas descrever um olhar a respeito de um momento determinado de funcionamento dos CECIs.

Sendo assim, a partir das demandas apresentadas pelos Guarani em São Paulo, os CECIs foram inaugurados em 2004, quando Marta Suplicy era prefeita do município. O site da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME) define os CECIs da seguinte forma:

Os CECIs constituem-se centros de educação e cultura essencialmente indígena, que visam valorizar e fortalecer as raízes, tradições e a autonomia do povo Guarani, bem como assegurar o direito das sociedades indígenas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue.

Imagem: Projetos Tenonde Porã

O site prossegue anunciando que o “projeto arquitetônico de cada centro respeita as condições sócio-paisagísticas-culturais de cada aldeia, e foi elaborado juntamente com as lideranças indígenas Guarani”. Ali, são atendidas crianças de 0 a 5 anos que realizam atividades educativas em regime integral, sob a responsabilidade de monitores Guarani. Os CECIs proveem alimentações regulares para as crianças matriculadas, e a comunidade mantém forte influência nas decisões político-pedagógicas e administrativas, o que não significa, necessariamente, que a comunidade Guarani seja respeitada em todas as suas demandas referentes à  educação nesses Centros. O corpo de educadores/as, identificados administrativamente pela SME como monitores, são pessoas de pertencimento Guarani, que vivem nas aldeias em que o CECIs estão instalados. Tratam-se, portanto, de pessoas selecionadas pela própria comunidade e contratadas pela prefeitura do município, por tempo determinado, independentemente da formação escolar que elas possuem.

Os CECIs foram criados no bojo dos debates pela efetivação das políticas públicas nacionais referentes à educação escolar indígena diferenciada, intercultural, bilíngue, específica e comunitária. Desde o fim da década de 1970, o nascente movimento indígena nacional contemporâneo, com apoio dos movimentos sociais progressistas, vinha delineando os parâmetros do que viria a ser chamado de direitos originários [3], os quais foram contemplados pela Constituição brasileira, promulgada em 1988. Dentre os direitos indígenas estabelecidos na nova Constituição, destaca-se o direito a uma educação diferenciada, entendida como ruptura com o passado colonizador, opressor, monolíngue e monoepistêmico. Deste modo, a nova proposta educacional não aceita a escola indígena como terra estrangeira dentro dos seus territórios, pelo contrário, a agência escolar passa a ser concebida como parceira dos projetos societários desses povos. Com isso, nos anos seguintes à promulgação da Constituição vigente, o movimento indígena e seus parceiros passaram a pressionar o Estado brasileiro pela criação do arcabouço legal e específico de amparo ao modelo de educação escola conquistado pelos indígenas, ao mesmo tempo que avançavam com ações de implementação das escolas diferenciadas nas aldeias.

O movimento indígena exigia o reconhecimento das categorias “escola indígena” e “professor(a) indígena”, à medida que estabeleciam-se debates para a construção de currículos que respeitassem os saberes originários e a presença das/os anciões nas escolas indígenas, com calendários escolares que observassem a organização do tempo de cada povo/comunidade e que considerassem os espaços da aldeia como extensão escolar. Assim, foi no bojo dessas articulações nacionais que os CECIs foram criados nas aldeias Guarani em São Paulo, buscando o respeito aos processos próprios de aprendizagem desse povo, em diálogo com as informações e conhecimento técnico-científico da sociedade não-indígena.

Durante minha experiência na coordenação geral dos CECIs, presenciei desafios e protagonizei, coletivamente, enfrentamentos provocados pelo descaso do poder público, ou por sua má vontade, em realizar a educação escolar indígena diferenciada, conquistada na legislação, a exemplo do que estabelecem os artigos 78 e 78 da Lei 9394/2006, a Resolução CNE/CEB nº. 3, de 10 de dezembro de 2009 e a Resolução nº. 5, de 22 de junho de 2012. Ressalta-se que àquela altura dos acontecimentos, os Guarani estavam suficientemente informados e decididos sobre seus direitos originários, especificamente sobre o direito a uma educação escolar indígena diferenciada. Nesse sentido, todos os esforços do poder público para se esquivar do ônus da educação escolar indígena diferenciada era constantemente questionado pelos Guarani, especialmente no que se refere aos CECIs.

Em setembro de 2009, participei de uma reunião com a equipe técnica da SME/SP, onde fui comunicado sobre as ações pedagógicas que deveríamos adotar para a implementação das diretrizes curriculares da rede municipal de ensino. Na ocasião, expus longamente sobre a necessidade de observarem os princípios da educação escolar indígena que leve em consideração os aspectos sociolinguísticos e cosmológico do povo Guarani, e finalizamos com o agendamento de outra reunião, enquanto a equipe da SME analisaria a legislação específica que rege nacionalmente a educação escolar indígena diferenciada, apresentada a eles. Ressalto que, naquele momento, os CECIs estavam sob gestão intermediária do Instituto das Tradições Indígenas - IDETI, uma Organização Não-Governamental indígena que eu fazia parte, sediada na cidade de São Paulo. Na reunião seguinte, na SME/SP, fui acompanhado pelo diretor jurídico do Instituto (advogado Baniwa) e por seu presidente (líder Xavante). Ali, travamos um longo diálogo, argumentando sobre a necessidade dos CECIs estarem sincronizados com os projetos societários Guarani e com suas formas próprias de organização e concepções de mundo.

Saímos daquela reunião com a sensação de que estávamos somente iniciando os diálogos interculturais com o poder público local, e que a tarefa de consolidar os CECIs dentro dos parâmetros dialogados com os povos indígenas seria um desafio complexo, pois o povo Guarani é autodeterminado e, mesmo diante da opressão e da violação histórica dos seus direitos, agem por dentro de uma espécie de resistência que quase sempre se apresenta como pacifista, orientados pelos Xeramõi [4], porta-vozes de Nhanderu [5]. Depois daqueles diálogos iniciais e esclarecimentos junto à SME/SP, compartilhados em assembleias com a comunidade Guarani, decidimos coletivamente fazer uma retomada educacional, reestruturando o fazer pedagógico e a gestão dos CECIs. Sendo assim, a comunidade escolheu respeitados líderes/sábios/as para ocupar as funções de coordenadores culturais e habilidosos jovens líderes para a função de coordenadores pedagógicos.

A partir daí, planejamos e realizamos reuniões formativas com os educadores e demais servidores dos CECIs, efetivadas com o protagonismo de anciãos/ãs e sábios/as das aldeias, onde foram apresentados elementos das tradições Guarani, que deveriam fazer parte da proposta curricular dos referidos Centros. Como resultado dessas reuniões, construímos um calendário de atividades tradicionais, uma lista de palavras da língua Guarani que estavam em desuso, mas que deveriam ser revitalizadas, e alinhamos  uma proposta curricular para os Centros, além de um plano para a criação de um curso superior específico para a formação do seu corpo docente, que deveria acontecer em parcerias com as instituições de ensino superior.

Todas essas ações foram acompanhadas pela equipe técnica da SME/SP, mas não sem questionamentos e oposições. Diversas vezes os técnicos/as usavam de sua condição de gestores públicos para ameaçar, intimidar e gerar discórdias entre as lideranças e entre as lideranças e a equipe do IDETI. Esses conflitos eram agravados com os sistemáticos atrasos no pagamento dos salários dos servidores e com a insuficiência da merenda escolar, além da escassez de recursos financeiros para as atividades pedagógicas planejadas.

A despeito das dificuldades criadas pelo poder público no funcionamento dos CECIs, os Guarani, em parceria com o IDETI, conseguiram avançar na implementação das pedagogias próprias no cotidiano escolar. Frequentemente, a equipe técnica da SME/SP se demonstrava insatisfeita com a realização de atividades cotidianas que aconteciam em todos os espaços da aldeia, e não somente no espaço arquitetônico dos CECIs. Ora, a concepção de ensino e aprendizagem Guarani pressupõe o contato direto com as matas, rios, córregos e com as atividades espirituais na Opy (casa de reza Guarani), lugares fundamentais para a formação do Xondaro - o guerreiro, baseado na ideia da formação integral, que envolve o aprendizado da ancestralidade vinculada aos aspectos físicos, comportamentais e espirituais, que podem ser entendidas como o nhanderekó, palavra muito citada no vocabulário Guarani, especialmente no contexto escolar.

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Imagem: Brasil de Fato/ Divulgação

Nas minhas idas e vindas nas aldeias e nos CECIs, presenciava as crianças a brincar e a aprender. Elas aprendiam a fazer artesanatos observando os mais velhos confeccionando, sentados no chão da aldeia. Frequentemente, ouvíamos os sábios falarem sobre a importância do convívio entre crianças de idades diversas, pois no processo de ensinar e aprender, os mais velhos têm uma relevante importância, daí a dificuldade deles em conceberem a organização de turmas por faixa etária de idade.  Porém, a pouca sensibilidade para entender e respeitar o jeito de ser desses povos mantinha a equipe da SME/SP ora na defensiva e ora na ofensiva, mas sempre distante dos Guarani, mesmo quando estavam na aldeia. Dessa forma, a estratégia criada pela SME/SP envolvia intimidações, criação do medo de perder o posto de trabalho dentro dos CECIs e a disseminação de discórdias entre as lideranças, buscando descredibilizar, afastar ou isolar aqueles que se opusessem aos interesses manifestos pela equipe técnica.

 

Periodicamente, as lideranças realizavam reuniões com a equipe do IDETI para tratar dos problemas enfrentados com o poder público e criar estratégias de enfrentamento para a conquista de mais autonomia dos Guarani, no que diz respeito ao funcionamento dos CECIs. Nesse contexto, era comum a realização de ações que driblavam o rigor das normas, no sentido de realizar rituais e ações originariamente Guarani dentro dos CECIS, como a festa do milho, rituais de batismo e outras cerimônias que envolvem o uso do mate, do mel, entre outros elementos da tradição local.

Concluo reconhecendo que minha experiência na coordenação dos CECIs foi de aprendizado significativo, uma verdadeira formação que me qualificou para assumir outras frentes de ações profissionais e de ativismo no movimento indígena nacional. As lideranças Guarani, os Xeramõi e educadoras/es foram pacientes e grandes mestres na minha trajetória formativa. Na experiência que aqui exponho, fica evidente a afirmativa do saudoso educador Paulo Freire: “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (p.25,1996). Foi exatamente o que ocorreu, talvez de forma mais intensa, uma corrente de ensinamentos de lá para cá. De modo complementar, percebo nitidamente a força histórica de resistência dos Guarani e a certeza que eles têm do entendimento de que a educação infantil é fundamental para a consolidação do pertencimento e da ancestralidade das novas gerações,por isso reivindicam e lutam incessantemente pelos CECIs como território indígena.

NOTAS

[1] Sob o título “A escola dos índios Karipuna da aldeia do Espírito Santo (Oiapoque) e o ritual do Turé: uma história da resistência indígena”, defendi minha tese em 2012, no EHPS/PUC-SP, sob orientação da professora Dra. Circe Bittencourt, com financiamento do CNPq.

[2] https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/noticias/centro-de-educacao-e-cultura-indigena-ceci-1/

[3] Sobre a noção de direito originário, Lázaro Moreira da Silva (2004) faz a seguinte observação: "O termo originário designa um direito anterior ao próprio Estado brasileiro, uma posse congênita, legítima por si mesma, ao contrário da posse adquirida que precisa preencher os requisitos civilistas para o reconhecimento”.

[4]  O Xeramõi é o líder espiritual, pajé e sábio da comunidade Guarani.

[5] Nhanderu é o criador do mundo, é o principal personagem da cosmologia Guarani.

 

PARA SABER MAIS

BRITO, Edson M. A escola dos índios Karipuna da aldeia do Espírito Santo (Oiapoque) e o ritual do Turé: uma história da resistência indígena. Tese (doutorado), EHPS/PUC, São Paulo, 2012.

 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 9 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

 

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (SME/SP). Centro de Educação e Cultura Indígena – CECI, São Paulo, 15/11/2015, disponível em: https://educacao.sme.prefeitura.sp.gov.br/noticias/centro-de-educacao-e-cultura-indigena-ceci-1/. Acesso em 28/09/2022.

SILVA, Lázaro Moreira da. O reconhecimento dos direitos originários dos índios sobre suas terras tradicionais na Constituição Federal de 1988 e a extensão do conceito de terras indígenas tradicionalmente ocupadas. Revista Jurídica Unigran, v. 6, n. 11, Pp. 139-152, Jan./jul. 2004.

O  AUTOR

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Edson Kayapó, pertencente ao povo Mebengokré, nascido no estado do Amapá, é ativista do movimento indígena, Doutor pelo EHPS/PUC-SP, Mestre em História Social pela mesma instituição, Graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-graduação lato sensu (especialização) em História e Historiografia da Amazônia, pela Universidade Federal do Amapá. É escritor premiado pela UNESCO e pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, membro do Parlamento Indígena do Brasil e da Comissão de Direitos Ambientais da UNICAMP. É professor de História indígena e Educação Escolar Indígena na Licenciatura Intercultural Indígena do IFBA, e docente credenciado no programa pós-graduado em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia.

COMO CITAR ESSE TEXTO

KAYAPÓ, Edson. Reafirmando o pertencimento Guarani na educação infantil: o caso dos CECIS nas aldeias em São Paulo. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e… nº 23. Publicado em 24 out. 2022. Disponível em: <https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-ceci-pertencimento-indigena-guarani-nas-aldeias-em-sao-paulo>. ISSN 2179-1287.

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