Educação e
Diferenças e...
Editores Temáticos: Alik Wunder e
Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
nº20 | 06 de dezembro de 2021
A Unicamp de jenipapo e urucum [1]
Edilene Alves da Silva
Luiz Felipe Medina
Paulo Jeremias Aires
Somos estudantes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), somos indígenas. Buscamos, neste texto, evidenciar a importância da construção do Coletivo dos Acadêmicos Indígenas da Unicamp para a permanência estudantil a partir da criação do Vestibular Indígena em 2018.
Trazemos um breve relato de como este coletivo inseriu-se nos debates sobre as ações afirmativas, ocupando os diferentes lugares que compõem a universidade, tais como: movimento estudantil; representações discentes; participações em comissões e grupos de trabalho; organização de encontros acadêmicos; troca de artes e artesanatos indígenas; troca de saberes; aulas de línguas indígenas; lançamento de livros; filmes; pinturas corporais e pinturas de patrimônios institucionais, em parceria com as direções de institutos, apoiadores, estudantes, professores e artistas indígenas. Estas diferentes ações são uma forma de garantir a continuidade e o aprimoramento da política de ações afirmativas da Unicamp.
As primeiras reivindicações por acesso ao Ensino Superior surgiram dentro do Movimento Indígena brasileiro desde a sua institucionalização, nas décadas de 1970-1980. A busca de escolarização dos povos indígenas mobilizou a luta pela ampliação do acesso de indígenas no Ensino Superior, à medida que se fazia necessário a formação de professores indígenas para atuar nas escolas de ensino fundamental das aldeias (BANIWA, 2019).
A criação de Licenciaturas Interculturais, por meio de editais do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (Prolind), possibilitou que indígenas acessassem as universidades do país em cursos de licenciaturas específicas (RUSSO, 2016), e estas iniciativas eram complexas devido à grande diversidade étnica dos povos. Assim, a permanência de estudantes indígenas no Ensino Superior dependia da ampliação de políticas que considerassem suas especificidades.
Bebendo na fonte do Movimento Indígena, muitas lideranças indígenas viam, nas universidades, o lugar estratégico para adquirir conhecimentos considerados fundamentais do “mundo ocidental” a serem usados na defesa de direitos indígenas para a gestão de territórios, fortalecimento das organizações, formulação de políticas públicas e educação escolar indígena.
Diversos integrantes de organizações indígenas, assim como muitos indigenistas, defendem que as políticas de incentivo ao acesso ao Ensino Superior devem priorizar “a formação de indivíduos comprometidos com a defesa dos interesses coletivos desses povos, e não a promoção de projetos individuais de ascensão social” (SOUZA LIMA, 2004, p. 23). A tensão entre a ideia de “autonomia coletiva e societária dos povos indígenas” (BANIWA, 2019, p. 174) e os posicionamentos mais “individualistas” atravessam muitas discussões no Movimento Indígena e implica no embate entre desejos individuais e coletivos.
A maior parte das experiências mostra um comprometimento de estudantes indígenas tanto com sua comunidade de origem, quanto com suas famílias, no sentido de “levar conhecimentos, fazer projetos, trazer informações ou melhorias para seu povo” (SILVA, 2021, p.65). Só o fato de ocuparem os espaços universitários já significa uma manifestação coletiva.
Na Unicamp, após a greve dos estudantes ocorrida em 2016, na qual a principal pauta foi a inclusão étnico-racial e a permanência estudantil, ocorreram três audiências públicas sobre o tema e em maio de 2017, o Consu votou pelo Programa de Cotas da Unicamp (CONSU-A-008/2017). Em 2017 e 2018, formulou-se e implementou-se o primeiro Vestibular Indígena, com sua primeira realização em 2018, para ingresso em 2019. Essas ações de reinvidicação e luta foram especialmente protagonizadas pelos movimentos negros da Frente Pró-Cotas (FPC) e Núcleo de Consciência Negra da Unicamp (NCN). Esses dois movimentos surgiram na esteira dos debates sobre a Lei de Cotas em 2012, no Supremo Tribunal Federal (LISBOA, 2020).
Em 2019, chegou à Unicamp a primeira turma de estudantes indígenas com 68 aprovados em 36 cursos diferentes, pertencentes a 23 etnias e falantes de mais de 10 línguas originárias. A primeira prova do Vestibular Indígena teve aplicação em 5 cidades diferentes: Recife (PE); Manaus (AM); São Gabriel da Cachoeira (AM); Campinas e Dourados (MS).
Posteriormente, as capitais Manaus e Recife foram substituídas pelas cidades de Tabatinga e Caruaru (PE), respectivamente, e no estado de São Paulo, a cidade de Bauru foi incluída como um dos locais de prova. Em 2019, a universidade já contava com alguns estudantes indígenas que entraram por meio de autodeclaração [2], e estes se sentiram ganhadores, após a chegada dos ingressantes pelo vestibular específico.
Em 2021, somam-se três edições do Vestibular Indígena da Unicamp. Atualmente, o coletivo dos estudantes indígenas é composto por 240 estudantes indígenas, pertencentes a mais de 40 etnias diferentes. Essa diversidade étnica e cultural tem gerado grandes discussões dentro da instituição e provocado diferentes interpretações de docentes e discentes sobre a implementação do Vestibular Indígena na universidade.
Não apenas como uma forma de luta e resistência pela continuidade das ações afirmativas conquistadas nos últimos anos, nossa luta é também pela descolonização dos centros de estudos, contra o racismo e estereótipos institucionais existentes na academia. Com o Coletivo dos Acadêmicos Indígenas, buscamos uma realidade sem portas fechadas, na qual os povos originários possam colorir, ocupar e demarcar a universidade com urucum e jenipapo, sem racismo e violência, para que as diferenças possam ser respeitadas.
É importante destacar que o DCEIN partiu de demandas que surgiram na Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas (CAIAPI), criada em outubro de 2020 como parte da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp (DEDH), constituída para melhor atender as demandas específicas que foram se evidenciando desde a chegadas dos indígenas nesta universidade. As representações do DCEIN lidam também com pautas que impulsionam espaços destinados às estudantes indígenas mulheres da Unicamp, com o objetivo de fortalecer as relações entre si, discutindo suas demandas e, também, de reivindicações no contexto da universidade, relacionadas ao movimento dos indígenas LGBTQIA+.
Com essas relações de apoio mútuo, temos para onde recorrer caso aconteça alguma situação de discriminação, racismo ou abuso na cidade, portanto, isso garante maior segurança para permanecer, ocupar e nos desenvolver dentro da universidade. As redes de apoio também possibilitam as trocas de artesanatos, pinturas e arte indígena entre os estudantes indígenas, bem como o intercâmbio entre culturas, como a criação de cursos de línguas indígenas.
NOTAS
[1] Este texto é uma prévia do texto na íntegra que será publicado nas Pré-Jornadas de Antropologia John Monteiro - “Políticas de ação afirmativa e permanência: ganhos, limites e desafios nas universidades brasileiras” (Unicamp) - que o coletivo foi convidado a colaborar.
[2] Trata-se do PAAIS (Programa de Ações Afirmativas para Inclusão Social) - modalidade de ingresso adotada pela Unicamp desde 2004 para egressos de escola pública, negros e/ou indígenas.
PARA SABER MAIS
BANIWA, Gersem. Educação escolar indígena no século XXI: encantos e desencantos. Rio de Janeiro: Mórula/ Laced, 2019.
LISBOA, S. H. “Cotas sim, cortes não!” A conquista das cotas étnicoraciais na Unicamp. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) - Faculdade de Educação, Unicamp, 2020.
RUSSO, Kelly. O Observatório de Educação Escolar Indígena e a relação entre universidades e comunidades indígenas no desenvolvimento da educação intercultural: uma análise a partir do Edital 01/2009 Capes/Secadi/Inep In. SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Org. A educação superior de indígenas no Brasil [recurso eletrônico]: balanços e perspectivas. 1. ed. - Rio de Janeiro: E-papers, 2016.
SILVA, Edilene Alves da. Estudantes indígenas na Unicamp: emoções em jogo no acesso ao ensino superior. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) - Faculdade de Educação, Unicamp, 2021.
SOUZA LIMA, Antônio Carlos de; HOFFMANN, Maria Barroso. Introdução. In SOUZA LIMA, Antônio Carlos de; HOFFMANN, Maria Barroso (orgs). Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil: Políticas públicas de ação afirmativa e direitos culturais diferenciados. Rio de Janeiro: Trilhas de conhecimentos/LACED/Museu Nacional/UFRJ, p. 5-32, 2004.
OS AUTORES
Edilene Alves da Silva é indígena do povo Munduruku. Formada em Pedagogia/Unicamp. Pesquisadora associada do projeto Jovem Pesquisador/FAPESP "Estudantes indígenas na Unicamp e na UFSCar: experiências sob a lente da etnografia" de responsabilidade da Profa. Dra. Chantal Medaets (FE).
Luiz Medina é da nação Guaraní, graduando em Administração Pública na Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas. É iniciante em pesquisa científica, orientando da Profa Alik Wunder, vinculado ao grupo de pesquisa Humor Aquoso do Laboratório de Estudos Audiovisuais - OLHO da Faculdade de Educação da UNICAMP.
Paulo Jeremias Aires é indígena do povo Akroá-Gamella do Estado do Maranhão. Estudante do 2° ano da graduação em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Estadual de Campinas. É integrante do DECEIN (Diretório Central dos Estudantes Indígenas), atuando como diretor de visibilidade e orgulho LGBTQIA+.
COMO CITAR ESSE TEXTO
AIRES, Paulo Jeremias; MEDINA, Luiz Felipe; DA SILVA, Edilene Alves. A unicamp de jenipapo e urucum. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e... nº 18. Publicado em 06 dez. 2021. Disponível em https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-n20-a-unicamp-de-jenipapo-e-urucum. ISSN 2179-1287.
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