Desde a década de 1990, um número crescente de grupos sociais vêm se reconhecendo enquanto Povos e Comunidades Tradicionais. No mesmo momento em que nos aproximávamos dos 500 anos da invasão europeia, povos indígenas, quilombolas, agricultores familiares e tantos outros sujeitos reafirmaram e atualizaram suas lutas contracoloniais, em defesa de seus territórios e projetos de vida. A emergência dessas novas etnicidades está profundamente associada à constituição do socioambientalismo, do qual a Aliança dos Povos da Floresta, mobilizando seringueiros, ribeirinhos, povos indígenas e quilombolas, é uma das mais importantes expressões. Ao longo dessas últimas três décadas, povos e comunidades tradicionais ocuparam um espaço central nos debates e lutas por um projeto popular no Brasil.
O aprofundamento das políticas neoliberais neste período, com avanço dos impactos de megaprojetos nos territórios, tem levado um número crescente de grupos sociais a autorreconhecerem sua tradicionalidade. Ao habitar essa categoria, nos termos propostos por Manuela Carneiro da Cunha (2009), esses grupos também a tensionam, uma vez que os acionamentos dessas identidades implicam em negociações, conflitos e novas alianças.
A partir de dois relatos de processos de autorreconhecimento, queremos evidenciar neste texto tensionamentos e limites da categoria Povos e Comunidades Tradicionais, seu caráter cosmopolítico, bem como as formas criativas com que os grupos sociais a têm mobilizado em suas lutas por direitos, para além de perspectivas cristalizadas, idealizadas e a-históricas com que parte da produção acadêmica e juristas têm tratado a questão.
Até a promulgação da Constituição de 1998, seguida da publicação do Decreto nº 4.887/2003 [1], bem como do Decreto nº 6.040/2007[2], o acesso à terra e território se dava quase exclusivamente pelas ainda incipientes políticas de reforma agrária. Desde a década de 1990, com a criação das primeiras Reservas Extrativistas, as organizações e mobilizações dos povos e comunidades tradicionais podem ser compreendidas como parte de um cenário de mobilizações sociais mais amplo, ainda que com formas singulares de territorialização que os distinguem dos modelos de assentamentos da reforma agrária então existentes.
Cremos que a categoria Povos e Comunidades Tradicionais, enquanto uma “invenção” genuinamente brasileira, pode ser entendida como uma resposta ao projeto colonial de apagamento e controle da sociobiodiversidade. Durante o processo de redemocratização, num momento em que os movimentos indígena e quilombola já obtinham conquistas, ainda que parciais, com garantias constitucionais de direito ao território, seringueiros, caiçaras, vazanteiros, faxinalenses, geraizeiros, ribeirinhos, quebradeiras-de-coco babaçu, povos de terreiro, povos ciganos, pescadores artesanais e tantos outros grupos perceberam a necessidade e a urgência de construir caminhos próprios de garantia de suas reivindicações e interesses. Vem daí o caráter fundamentalmente político dessas identidades, acionadas em contextos de ameaça e conflitos com o Estado e o capital organizado.
Todavia, a emergência da categoria Povos e Comunidades Tradicionais se dá também na aliança com as causas ambientais. Dessa maneira, habitar a categoria requer, em alguma medida, a reafirmação e/ou estabelecimento de alianças e compromissos com a sustentabilidade ambiental dos modos de vida daquele povo ou comunidade. Assim, o autorreconhecimento da tradicionalidade é acompanhado por uma série de expectativas pré-existentes na estrutura estatal, no regramento legal e mesmo nas organizações e movimentos de apoio, muitos deles ambientalistas. Tornar-se tradicional denota, portanto, lidar e manejar essas expectativas e possíveis conflitos e tensionamentos que delas resultam.
Alguns contornos desses processos de mobilização e retomada podem ser descritos, por exemplo, a partir do contexto dos habitantes da Comunidade Tradicional Pesqueira e Vazanteira da Venda, situada na beira do rio São Francisco, no município de Pedras de Maria da Cruz, localizado no Norte de Minas Gerais. Os povos pescadores e vazanteiros são conhecidos como “gentes do rio”, considerando as relações identitárias estabelecidas no trânsito e nas interações cotidianas com as águas do Velho Chico; além disso, também são tidos como “povos das terras crescentes”, devido ao caráter fluido e móvel do território que ocupam, composto também por ilhas, lagoas e áreas de vazante do rio São Francisco[3].
Compondo uma colcha de retalhos da expropriação de ribeirinhos, desencadeada após a grande cheia de 1979, os antepassados de muitos dos atuais habitantes da Comunidade da Venda foram expropriados (mas não sem resistência), por força da atuação de um fazendeiro da região, que cercou e passou a vigiar a beira do rio, mediante jagunços armados, além de plantar roça no aberto e soltar um gado bravo para destruir os caminhos e as roças.
Esse processo de expropriação possibilitou a formação da Fazenda Rodeador, que abarcou uma área superior a 12 mil hectares, disposta desde a beira do rio São Francisco até o pé do alto da Serra do Gambá. Posteriormente, na década de 1990, essa Fazenda foi adquirida por duas empresas que, ao longo da execução de projetos de irrigação, de produção de grãos, frutos e de bovinocultura, aprimoraram a expropriação territorial e a força de trabalho dos habitantes locais, iniciada pelo fazendeiro nos anos 1970.
O período de prosperidade desse empreendimento, no entanto, foi curto. Já no início dos anos 2000, as mencionadas empresas abandonaram a Fazenda Rodeador, considerando a sua baixa lucratividade e a inadequada gestão fiscal do negócio. Apesar do abandono do imóvel pelas empresas, inclusive com o desmatamento da vegetação nativa (árvores como aroeira e cedro), que é protegida por lei e a retirada de benfeitorias, pivôs de irrigação e demais recursos de acesso à água e luz, o local continuou a ser moradia de famílias de ex-funcionários, além de pescadores e vazanteiros, que naquele momento já reivindicavam a terra para fins de regularização fundiária e de reforma agrária.
O cenário de descaso, degradação e insegurança provocado pela atuação das empresas, e vivenciado por esses habitantes, motivou, em 2015, o envio de um pedido de ajuda endereçado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e à Comissão Pastoral da Terra (CPT). Esse contato deu origem ao projeto de ocupação da Fazenda, efetivado em 2017. Naquela época, a região inundável contida na antiga Fazenda Rodeador foi restituída aos comunitários da Comunidade da Venda; e a região não inundável (mata ou gerais) foi reconhecida dentro das dimensões da reivindicação por reforma agrária de ex-funcionários das empresas e militantes sem-terra, que constituem o Acampamento Terra Prometida II. Esta linha de divisão, no entanto, é permeável, e diz respeito às questões sobre mobilidades, compartilhamentos e usos dialogados.
A Comunidade da Venda e o Acampamento Terra Prometida II estão intrinsecamente entrelaçados desde a “ocupação-retomada”, a partir da qual constituíram dinâmicas socioambientais, arranjos políticos e cooperações cotidianas. Compartilham, inclusive, uma mesma representação legal, na forma jurídica de uma Associação. Nesse contexto, o acionamento da tradicionalidade se dá em total articulação com a luta por reforma agrária dos sem-terra, por meio de um constante fluxo político e populacional entre o acampamento e a comunidade. Esse fluxo implica em (e resulta de) interações entre as diferentes formas de territorialização. O acampamento, que tem a sua origem na luta pela terra como meio de produção, é afetado pelas formas de territorialização pesqueira e vazanteira, somado a isso, a comunidade tradicional participa e se articula nas estratégias políticas e jurídicas sem-terra como tática de luta para a garantia da posse de seu território.
Outro caso exemplar de tensionamento da tradicionalidade é representado pela luta da Comunidade Carroceira de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Em meio a um processo que se repetiu nos últimos anos em diversas cidades brasileiras, desde 2014, os carroceiros e carroceiras de Belo Horizonte vivem um processo de enfrentamento da criminalização de seus modos de vida, resultante de iniciativas legislativas para a proibição do uso da tração animal no município. A proposta dessa proibição foi articulada por movimentos de ativistas da libertação animal, articulados com vereadores e outros agentes políticos que buscam capitalizar eleitoralmente essa pauta.
A Comunidade Carroceira tem seu modo de vida tradicional constituído por meio do trabalho humano e animal, que tece uma complexa e rica trama de sociabilidades, abrangendo, inclusive, outras comunidades tradicionais, como ciganos e quilombolas em contextos urbanos. Guardiã de saberes tradicionais sobre o manejo dos animais e dos ecossistemas urbanos, a comunidade carroceira, composta por centenas de famílias espalhadas por toda a região metropolitana de Belo Horizonte, é produtora de uma paisagem urbana tecida por humanos, cavalos, galinhas, porcos, cabras e uma grande diversidade de plantas e outros seres que habitam os quintais, currais, beiras de córregos e outros espaços urbanos por onde circulam.
Diante de um cenário de racismo ambiental, os carroceiros e carroceiras, em 2018, autorreconheceram-se como uma comunidade tradicional. Trata-se do primeiro caso de autorreconhecimento de uma Comunidade Tradicional Carroceira no Brasil, o que tem provocado intensas reações e questionamentos, especialmente de movimentos da libertação animal. Nesse contexto, as mobilizações da Comunidade Carroceira colocam em questão o ambientalismo liberal não apenas desses movimentos, mas também de uma parcela considerável do campo progressista e da academia. Vale destacar que, no caso de Belo Horizonte, duas vereadoras de partidos de esquerda apoiaram a iniciativa de criminalização dessa comunidade, aliando-se a vereadores da direita e extrema-direita.
Ao afirmar, em seu lema de luta, que “a cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça”, a comunidade carroceira expressa seu desejo e direito de produzir o espaço urbano a partir de seus modos de vida e formas de relação e aliança com os cavalos, burros e mulas. Reivindicando sua tradicionalidade, evidencia igualmente a sustentabilidade de caráter liberal, alinhada à modernização ecológica, que subjaz os discursos e práticas daqueles que, em tese, se declaram aliados dos povos e comunidades tradicionais. Noutro lado, por ter seu modo de vida tecido na paisagem urbana, a Comunidade Tradicional Carroceira também provoca um deslocamento nas abordagens e debates sobre território e territorialização, quase sempre assentadas nas paisagens rurais. Seria agora necessário se pensar em “povos das águas, florestas e cidades”.
Esses dois casos relatados, assim como tantos outros espalhados pelo país, são exemplos de formas singulares e diversas, em que os grupos sociais historicamente marginalizados e excluídos têm mobilizado e habitado a categoria de Povos e Comunidades Tradicionais. Sendo assim, para além das conquistas que estabelecem seus direitos, essas comunidades seguem produzindo territorializações, estratégias e táticas de luta criativas e situadas; juntamente com a reafirmação de ecologias próprias e enfrentamento das práticas de controle e colonialidade, sejam elas oriundas do Estado [incluídas aí as universidades] ou do capital organizado.
À esquerda, manifestação da Comunidade Tradicional Carroceira em Belo Horizonte (2021), contra o projeto de lei de proibição da tração animal . À direita, Comunidade Pesqueira e Vazanteira da Venda, às margens do Rio São Francisco, no encerramento das oficinas para a produção da cartografia social do território. Fonte: acervo do Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais/UEMG.
NOTAS
1 O Decreto nº 4.887/2003 é um marco legal para a garantia do direito territorial das comunidades quilombolas, eis que “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” (BRASIL, 2003).
2 O Decreto nº 6.040/2007, por sua vez, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
3 (Nova Cartografia Social, 2019).
PARA SABER MAIS
ALMADA, ED; OLIVEIRA, RAP (2021) “A cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça”: a Comunidade Tradicional Carroceira de Belo Horizonte e região metropolitana. In: Nascimento CAS, Campos AC, Souza FC, Ayres AD (Org.) Povos Originários e Comunidades Tradicionais: trabalhos de pesquisa e extensão universitária. 1ed.Porto Alegre: Editora Fi, 2021, v. 9, p. 180-196.
CUNHA, MC (2009) Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify.
GOMES, FS; ALMEIDA, AS (2023) Sentidos da demarcação das terras da União e da regularização fundiária de comunidades ribeirinhas no Norte de Minas Gerais. In: Gustavo Henrique Cepolini Ferreira. (Org.). Atlas agrário e ambiental do semiárido mineiro. 1 ed.Goiânia: Editora Alfa Comunicação, v. 1, p. 85-94.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Conheça a luta na fazenda Arapuim no norte de Minas Gerais. 2020. Disponível em: <https://mst.org.br/2020/01/03/conheca-a-luta-na-fazenda-arapuim-no-norte-de-minas-gerais/>. Acesso em 23 mai. 2024.
NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL (2019) Articulação Vazanteiros em Movimento. Disponível em: <http://novacartografiasocial.com.br/download/02-articulacao-vazanteiros-em-movimento/>. Acesso em 23 mai. 2024.
OBSERVATÓRIO DE PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS (2022) Protocolo Comunitário de Consulta Prévia, Livre, Informada, de Consentimento e de Veto da Comunidade Tradicional Carroceira de Belo Horizonte e Região Metropolitana. Disponível em: <https://observatorio.direitosocioambiental.org/protocolo-comunitario-de-consulta-previa-livre-informada-de-consentimento-e-de-veto-da-comunidade-tradicional-carroceira-de-belo-horizonte-e-regiao-metropolitana-2022/>. Acesso em 23 mai. 2024.
OS AUTORES
Emmanuel Duarte Almada – Doutor em Ambiente e Sociedade, coordenador do Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais, na Universidade do Estado de Minas Gerais. Desenvolve projetos de pesquisa e extensão a comunidades tradicionais na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Norte de Minas e Alto Rio Doce. Também é agente da Comissão Pastoral da Terra – MG
Fernando Soares Gomes - Advogado popular. Doutorando em Direito na UFMG. Pesquisador do Dom - Grupo de Pesquisa em Antropologia do Direito da UFMG, do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental da UNIMONTES, e do Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais/UEMG.
COMO CITAR ESSE TEXTO
ALMADA, Emmanuel Duarte; GOMES, Fernando Soares. Tradicionalidades em movimento. Revista Coletiva, Recife, n.34, jan.fev.mar.abr.mai. 2024. Disponível em: <coletiva.org/dossie-povos-e-comunidades-tradicionais-n34-tradicionalidades-em-movimento> ISSN 2179-1287.
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