"A cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça!" A cosmopolítica dos carroceiros e cavalos
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira
Emmanuel Duarte Almada
As disputas ontológicas entre o projeto modernizador e colonial do capitalismo tardio e outros modos de viver e produzir mundos vão além dos conflitos entre megaprojetos de desenvolvimento e povos indígenas, e se espraiam pelos ambientes urbanos. Nos últimos anos, a ascensão das organizações de povos e comunidades tradicionais nas metrópoles tem colocado em evidência a luta de povos de terreiros, ciganos, indígenas, raizeiras e quilombolas pelo reconhecimento de seus direitos territoriais e identitários nas políticas de planejamento do espaço urbano. Incorporamos no título deste texto uma das principais palavras de ordem do movimento dos carroceiros e carroceiras de Belo Horizonte e Região Metropolitana, um grupo social que tem recentemente se reconhecido como comunidade tradicional. A frase emergiu no conflito ambiental que opôs os carroceiros aos grupos que defendem a proibição da tração animal, e tornou-se o lema da luta por uma cidade que respeite as diferenças sem reduzi-las automaticamente em desigualdade ou pobreza.
Não há um levantamento oficial do número de carroceiros que vivem na Região Metropolitana de Belo Horizonte, mas em pesquisa desenvolvida na UFMG estimou-se que fossem cerca de 10.000 pessoas no início da década passada. Trata-se, portanto, de um grupo social que marca de forma profunda a vida e o cotidiano da cidade. Os carroceiros estão presentes desde os primórdios da capital, atuando no transporte de materiais de construção e até mesmo no fornecimento de água nos bairros em formação. Atualmente cavalos e carroceiros trabalham no transporte de pequenos volumes de resíduos, tais como entulho, podas de árvores ou móveis descartados.
Embora o município de Belo Horizonte tenha políticas públicas voltadas aos cavalos e aos carroceiros desde a década de 1990, em parceria com a Faculdade de Veterinária da UFMG e órgãos de regulação do trânsito e da destinação dos resíduos sólidos, nos últimos anos, uma série de mobilizações no âmbito dos poderes legislativo e executivo tem buscado a extinção desse modo de vida. Em 14 de maio de 2015, o Instituto Abolicionista Animal (IAA), organização sediada em Ondina (BA), ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) contra a prefeitura de Belo Horizonte (MG), baseando-se no art. 225 da Constituição Federal, que trata do Meio Ambiente, especialmente no inciso VII do §1º, que incumbe ao Poder Público o dever de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
O IAA acusou o município de Belo Horizonte de não cumprir a regulamentação instituída pelo Decreto Municipal nº 10.293/2000 e pela Lei Municipal nº 10.119/2011, que normatizavam a circulação de cavalos e carroças nas vias públicas da capital. Essas normas preveem o emplacamento das carroças, a emissão de documentos de registro dos carroceiros e a promoção da saúde animal, com parcerias voltadas ao atendimento médico veterinário e vacinação dos animais de tração, a promoção de cursos aos trabalhadores sobre temas como nutrição, saúde e comportamento dessas espécies animais, ferrageamento dos cascos, normas de trânsito, ergonomia e educação ambiental. Ignorando o fato de que todas essas atividades vinham acontecendo de maneira continuada havia quase duas décadas através de ações promovidas por diferentes secretarias municipais e a Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Instituto afirmou na ACP que em decorrência da não regulamentação da lei de 2011 a legislação estava sendo ignorada.
Paralelamente, a Associação Movimento Mineiro pelos Direitos Animais, sediada em Belo Horizonte, promovia campanhas pela criminalização da tração animal na internet desde 2009, com abaixo-assinados online, vídeos no youtube e postagens replicadas no facebook, ao mesmo tempo em que empresas privadas ofertavam alternativas ecológicas como o chamado “cavalo de lata”. Com efeito, a força política e econômica desses grupos foi incorporada por vereadores que, entrando na disputa ambiental, passaram a sustentar o trâmite de Projetos de Lei como o nº 832/2013, que previa um prazo de oito anos para a completa proibição da tração animal no município, através de processo descrito no PL como “transposição anual dos condutores para outros mercados de trabalho”, de modo que parcerias púbico-privadas que subsidiassem a compra de veículos motorizados pelos carroceiros, mediante a “entrega” dos seus respectivos cavalos. Apesar de o projeto ter sido retirado de tramitação após forte mobilização dos carroceiros no ano de 2014, ele foi desmembrado e reapresentado na forma dos Projetos de Lei nº 142/2017 e 154/2017, dessa vez com prazo de quatro anos para a proibição.
Os carroceiros e carroceiras não negam a existência de eventuais casos de maus tratos, e defendem que para esses casos específicos a fiscalização aja no sentido de viabilizar punições adequadamente voltadas à proteção dos animais. O caminho para a supressão de situações que provoquem sofrimentos aos animais, porém, de acordo com o que têm reivindicado na luta, é a articulação de políticas públicas que reconheçam todos como sujeitos, sejam humanos ou animais. Apesar da revolta provocada pela associação metonímica entre carroças e crueldade, inscrita no debate público através de campanhas em defesa da criminalização, esse coletivo interespecífico e multifacetado vem cada vez mais se engajando nas disputas pela (re)definição do tipo de atuação que o Estado deve assumir frente a normatização da circulação de carroças, considerando o respeito aos direitos humanos e aos direitos dos animais.
Embora o início do conflito tenha sido pautado por uma apropriação “universalista” e autoritária das ideias de libertação animal e de direitos dos animais, o seu desdobramento revelou que interesses econômicos e políticos foram mais determinantes para a atuação dos grupos que tentaram proibir a tração animal na cidade do que preocupações voltadas propriamente aos animais que trabalham. Nesse sentido, a partir de uma suposta separação irreconciliável entre natureza e humanidade, esses grupos tentaram fazer crer que nas cidades não existe mais espaço para a diversidade socioambiental, e que os animais devem ser todos expulsos da cidade – se possível, junto com os humanos considerados indesejados.
Os grupos que pedem que o Estado “acabe com os carroceiros” costumam representá-los como atrasados, bárbaros e cruéis, e acusá-los de estarem reduzindo os animais a objetos que beneficiam exclusivamente os interesses de humanos. A relação entre os carroceiros e os cavalos no ambiente urbano, porém, pressupõe uma intersubjetividade, o que torna possível a compreensão mútua entre eles, através da qual se vinculam numa relação que extrapola a dimensão do trabalho. Carroceiros e animais de tração são interdependentes, mas a responsabilidade pelos animais deve ser compartilhada entre os carroceiros, as organizações da sociedade civil e o Estado. Seguindo a direção inversa, contudo, as campanhas de criminalização e a proposição de projetos de lei se retroalimentaram mutuamente por meio de demandas pelo uso da violência estatal contra os carroceiros, ao mesmo tempo em que os excluiu da participação como sujeitos implicados no debate sobre os direitos dos animais.
Diante desse conflito ambiental instaurado por ações do Movimento Abolicionista Animal, os carroceiros têm fortalecido sua organização política tendo em vista a garantia dos direitos humanos e dos animais. Como resultado de um processo contínuo de mobilizações e alianças para o enfrentamento aos PL’s que objetivavam a proibição da tração animal, foi fundada em agosto de 2018 a Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos de Belo Horizonte e Região Metropolitana (ACCBM). A ACCBM tem se aliado a inúmeras organizações e movimentos, ampliando o debate sobre a circulação das carroças. Entraram nessa articulação organizações como o Programa de Pesquisa e Extensão Cidade e Alteridade: Convivência Multicultural e Justiça Urbana, da Faculdade de Direito da UFMG, o Laboratório de Estudos Bioculturais - Kaipora, da Universidade do Estado de Minas Gerais, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES), o Projeto interdisciplinar Manuelzão (UFMG), voltado a proteção das bacias hidrográficas, a Cáritas Brasileira, a Defensoria Pública de Minas Gerais e a Promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público de Minas Gerais.
Os carroceiros e carroceiras em movimento têm se reconhecido como sujeitos de direitos e construído discursos e ações políticas que reafirmam seu modo de vida para além da dimensão do trabalho. De fato, a atividade dos carroceiros é constituída por uma extensa socialidade entre humanos e não humanos. A vida na carroça implica em um profundo conhecimento sobre o comportamento dos cavalos, comunicação entre espécies, técnicas de doma, além de saberes ecológicos associados ao uso de espécies de gramíneas espontâneas como alimento e à utilização de outras espécies de plantas na promoção da saúde dos animais. O modo de vida carroceiro também se constitui nas inúmeras cavalgadas e encontros de catiras realizadas ao longo de todo o ano. Por fim, a visita aos locais de moradia de carroceiros e cavalos revela um mundo de quintais, baias e terreiros habitados por outros viventes como galinhas, porcos, árvores, cabras e uma miríade de artefatos que constituem essas comunidades multiespecíficas.
Audiência Pública na Câmara Municipal de Belo Horizonte, em 2018.
Fonte: acervo pessoal dos autores.
Membros da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos(as) de Belo Horizonte e Região Metropolitana na Assembleia de fundação da entidade. Fonte: acervo pessoal dos autores.
Um dos principais desdobramentos dessa organização política dos carroceiros tem sido o seu autorreconhecimento como comunidade tradicional. A mobilização dessa categoria identitária insere novos elementos no conflito ambiental com o movimento abolicionista animal. Ao reafirmar seu modo de vida, os carroceiros evidenciam a guerra cosmológica e a incomensurabilidade das ontologias que estão em jogo nessa disputa sobre cavalos e carroças. Nesse sentido, o movimento dos carroceiros elaborou, no processo de objetivação de sua identidade, uma carta de princípios de vida e aliança com os animais, os “dez mandamentos do carroceiro e da carroceira”:
I - Amar o animal como se fosse seu próprio filho;
II - Manter seu animal sempre bem cuidado, casqueado e ferrageado, com bom peso e saudável;
III - Ser feliz e orgulhoso por ter seu animal bem cuidado;
IV - Manter o cavalo feliz, com uma carroça com pneus calibrados e arreata adequada;
V - Zelar pelo trato do animal, dando banho, alimento e o descanso necessário;
VI - Andar sempre com atenção em vias públicas, respeitando a legislação;
VII - Contribuir para a união e a solidariedade entre os carroceiros e as carroceiras;
VIII - Aprender a ser amigo(a), compartilhando os conhecimentos;
IX - Ter boa convivência com os clientes/fregueses e servidores públicos, tratando-os com respeito;
X - Jogar os materiais transportados apenas nos locais permitidos, contribuindo para a limpeza urbana.
Ao afirmarem que “a cidade é nossa roça”, os carroceiros invertem e denunciam o discurso colonizador que pretende apagar a diversidade biocultural dos espaços urbanos em nome de um suposto progresso excludente e violento. Ser “da roça” significa reafirmar a possibilidade, e mesmo a imprescindibilidade, da vida em comum entre humanos, animais e plantas, que se tece na circulação das carroças pela cidade. A carroça, por seu turno, não se resume a um instrumento de trabalho, mas é o lugar a partir do qual os discursos e sentidos sobre a cidade são produzidos. A simples presença de cavalos e carroceiros, tocando suas carroças na paisagem urbana, é produtora de espacialidades que, longe de serem primitivas ou residuais, são expressões da coetaneidade de mundos e tempos diversos.
PARA SABER MAIS:
ALMEIDA, Vanessa de. Acidente de trabalho e perfil sócio e econômico de carroceiros em Belo Horizonte nos anos 2001 e 2002. 2003. Dissertação de mestrado em Medicina Veterinária: UFMG. 2003.
LOPES, Nian Pissolati. Homemcavalo: uma etnografia dos carroceiros de Belo Horizonte. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2013.
OLIVEIRA, Ricardo Alexandre Pereira. Carroça Livre: uma etnografia com os carroceiros e cavalos da vila São Tomás e adjacências. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2017.
PERROTA, Ana. Paula. Pode o Animal falar? In: Cadernos Sociofilo, Rio de Janeiro: Volume 5, Número 6. 2016.
REZENDE, Heloisa Helena; PALHARES, Maristela; AGUIAR, Estevão; SILVA, Regina Helena; PEREIRA, Maria. “Impacto da migração dos carroceiros de Belo Horizonte: setor formal para o setor informal” In: Anais do 2o congresso brasileiro de extensão universitária. 2004.
OS AUTORES
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira é doutorando em Antropologia Social da Universidade de Brasília (UnB), pesquisador do Programa Mapeamento de Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, e membro integrante do Laboratório de Estudos Bioculturais - Kaipora (UEMG).
Emmanuel Duarte Almada é professor da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e coordenador do Laboratório de Estudos Bioculturais - Kaipora, além de desenvolver projetos de ensino, pesquisa e extensão junto a povos e comunidades tradicionais na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
COMO CITAR ESSE TEXTO:
OLIVEIRA, Ricardo Alexandre Pereira de; ALMADA, Emmanuel Duarte. "A cidade é nossa roça, nossa luta é na carroça!” A cosmopolítica dos carroceiros e cavalos (Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambientak. Publicado em 19 de jul. 2019. Disponível em https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n9. ISSN 2179-1287
Anteriores
Uirá Garcia | nº 8 | 18 de junho
de 2019
Maíra Ribeiro | nº 7 | 06 de maio
de 2019
Ricardo Leining | nº 6 | 28 de março de 2019