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Diversidade

Socioambiental

Editor temático: Pedro Silveira 

nº 23 | 22 de abril de 2024

“Mas ‘meio ambiente’ não é assunto das Ciências da Natureza?” Relato de uma abordagem antropológica sobre meio ambiente na educação básica

João Pedro Lyra da Silva

Mudança de rumo: entre o planejamento e a oportunidade pedagógica

 

Este texto ensaístico é um relato de experiência que mescla reflexões e práticas docentes na disciplina escolar de Sociologia, no ensino médio, no trato de questões ambientais em aula. Não proponho, no entanto, trazer pretensões meramente teóricas, menos ainda metodológicas, no que se refere a uma educação ambiental; mas sim, principalmente, refletir sobre como a Antropologia, enquanto área com conhecimentos específicos, pode tornar-se essencial para uma docência que não se restringe às “grades” curriculares ou barreiras disciplinares.

 

Haveria, então, uma perspectiva multi, trans ou interdisciplinar nesse tipo de abordagem? Quando nos referimos aos estudos do “meio ambiente” ou da “natureza”, estamos exclusivamente adentrando no campo das Ciências da Natureza? Sem dúvidas, a força e a dimensão do discurso iluminista-cartesiano presente no projeto moderno de civilização ocidental — que anseia pelo desmembramento entre o “homem” e o “natural” — ainda predomina na prática acadêmica, o que envolve tanto as Ciências da Natureza quanto as Humanidades. É evidente também que, se as fronteiras entre as áreas do conhecimento científico resistem com tanto vigor na formação acadêmica, o espaço escolar tende a reproduzir tais concepções a partir dos docentes e suas respectivas formações disciplinares em áreas específicas. No entanto, contrapontos relevantes são levantados quando se percebe a mútua-afetação da relação cultura-natureza, englobando também relações com elementos físicos e simbólicos, com seres mais-que-humanos e artefatos não-humanos.

 

Sendo assim, este relato inicia-se com um plano de aula que, antecipo, invalidou-se na primeira dezena de minutos do início de sua execução em sala de aula. Os objetivos e conteúdos, apresentados nos cerca de 20 slides preparados cuidadosamente por não menos que duas horas no dia anterior, visavam uma abordagem sociológica do assunto “Sociedade e Meio Ambiente”. O roteiro orientava-se para a apresentação das mudanças na concepção de “meio ambiente” e “natureza” no decorrer do período renascentista-iluminista, que consolidou o projeto moderno e de expansão colonial do Ocidente, transversando as revoluções industriais e alcançando os movimentos ambientalistas de meados do século XX até a contemporaneidade.

 

A partir disso, abordava também os modelos de organização socioambiental e dispositivos institucionais do Estado brasileiro para gerir o ambiente natural, dando especial ênfase aos órgãos ligados ao Ministério do Meio Ambiente, como IBAMA, ICMBio etc. Tratava-se de uma aula sobre processos históricos, organizações políticas, institucionais e civis de gerenciamento, em torno dos parâmetros formais de “direitos, deveres e responsabilidades” ligadas ao meio ambiente, contemplando habilidades, competências e objetivos curriculares gerais e da área da Sociologia para o ensino médio.

 

O planejamento, no entanto, ruiu com a genuína inquietação expressa por uma das estudantes que perguntou, ainda na apresentação do que seria a aula: "mas, professor, meio ambiente não é assunto das matérias de Ciências da Natureza?”.

 

Se a formação escolar, a partir dos docentes e suas respectivas disciplinas, subordina-se às delimitações impostas para cada área de conhecimento, os jovens estudantes, por outro lado, nem sempre estão dispostos a acomodar-se com tal modelo fragmentado do raciocínio sem levantar questões. Freiriano que sou, essa indagação não podia ser respondida com um simples “sim” ou “não”. Não se tratava de uma provocação, mas de uma demonstração clara de que, muito provavelmente, abordar meio ambiente como “objeto de estudo” numa perspectiva burocrática ou cientificista — como estava planejado, admito — não acrescentaria em muito na realidade prática daqueles jovens. Seria mais do mesmo falar da “natureza” como um objeto longínquo, desconexo e abstrato, quando muito, contemplado em vídeos e fotos em livros, como uma dimensão da realidade passiva de descrição e dominação “racional”.

 

Já reformulando o percurso que a aula poderia tomar, arrisquei usar da retórica e questionei para a turma: “mas o que seria meio ambiente?”. Tinha em mente que a abordagem antropológica orientada para o ensino médio não deveria conter-se às sugestões dos livros didáticos, que costumam limitar-se a falar dos povos originários e conceitos como “cultura” e “alteridade”. A Antropologia, na realidade, fornece muito mais instrumentos para a problematização das noções e concepções construídas socialmente, inclusive as tidas como “universais”, “científicas” e “objetivas”.

 

Enquanto minhas engrenagens cognitivas esforçavam-se para a mudança de rumo, alguns estudantes definiam o que entendiam por “meio ambiente” como: um “local”, “a parte da ação humana”, de “relações entre espécies”, onde estão a “fauna e flora”, como “ecossistemas de seres vivos e não vivos”... As definições consideravam o meio natural como espaços fundamentalmente “livres” da ação de seres humanos e suas práticas culturais. Enquanto respondiam, aproveitei a máxima da temperatura de 29º, com sensação térmica de 32º, para provocá-los ainda mais, comentando: “está insuportável o calor na nossa sala hoje. Vamos ter essa aula na quadra?”. Euforia garantida, abandonei a ideia inicial e seguimos para a quadra, enquanto continuava, mentalmente, a reestruturar a nova estratégia de aula.

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Crédito: João Pedro Lyra da Silva.

Quem separou o humano da natureza?

 

 

Há poucos dias, eu havia tido uma aula no Mestrado em Sociologia do Profsocio em torno do conceito de “cultura”, e recordei-me do debate que tivemos sobre o que seria o objeto de estudo da Antropologia. Afinal, seria o conceito de “cultura”, de “alteridade”, as “relações entre povos”? Numa recordação ainda mais antiga, lembrei-me de outra discussão sobre os debates acadêmicos não serem necessariamente interessantes para compartilhar com estudantes do ensino básico. 

 

Naquele contexto de ensino médio, porém, os estudantes já haviam adquirido certo repertório sobre o que era ciência e sua construção histórica — ocidental, iluminista, eurocêntrica e moderna —; sobre o surgimento da Antropologia; sobre noções conceituais de cultura, tradição, povos originários, eurocentrismo e etnocentrismo etc. Esses eram instrumentos  suficientes para dar suporte às duas questões que eu estava prestes a promover. Numa nova provocação, indaguei-os: “quem definiu o que é meio ambiente?” e “por que costumamos separar o meio ambiente e demais seres vivos de nós, seres humanos?”

 

Mataram a charada mais rápido do que eu esperava. Quem definiu a noção de meio ambiente, afirmaram alguns estudantes, “foram os cientistas”, para “estudar a natureza com a ciência”, complementou um rapaz. Um outro estudante ainda acrescentou que seria para descobrir “as leis naturais”. Sabendo que antropólogos de diferentes períodos da história da disciplina já haviam adotado cada uma dessas narrativas, preferi referir-me aos nossos estudos anteriores em sala, sobre a impossibilidade de, nas ciências humanas, ao menos, definirmos conceitos universais com tanta concretude, e então provoquei-os a pensar: “será que todos os povos se enxergam separados do meio ambiente, como nós?”. 

 

Essa nova linha de raciocínio, na qual a aula estava sendo conduzida, aproximava-se da problemática que nortearia o diálogo a partir dali, sobre como as construções culturais modernas — e vale enfatizar mais uma vez: ocidentais, iluministas, eurocêntricas e  cartesianas — buscaram afastar-se da natureza e de demais experiências sensoriais a fim de legitimar um certo conhecimento cientificista — e não menos ideológico —, com critérios de objetividade, neutralidade e imparcialidade, em detrimento de modos de pensar harmoniosos com os outros seres e o meio ambiente natural.

 

As próprias cosmovisões que predominam na construção simbólica do que veio a ser o Ocidente, e que precedem o pensamento científico, remetem às construções narrativas que separam a humanidade de um paraíso que se confunde com o ambiente natural, onde habitavam os deuses e entidades que representam as forças da natureza. Seja pela chama da sabedoria da mitologia greco-romana, seja pela queda do homem na mitologia suméria, ou com o fruto da verdade bíblica cristã, construiu-se o paradigma que separa o humano de sua origem natural.

 

A partir disso, cogitei citar Franz Boas para a desconstrução da noção de “superioridade cultural”, do projeto eurocêntrico de dominação moderna e iluminista, problematizando os saberes ocidentais como referências de “progresso” e “evolução” da razão humana; além da demonstração da relatividade cultural, como na citação sobre os esquimós, em que "não temos o direito de olhá-los de cima para baixo”, propondo que não há hierarquias entre culturas. Mas, isso poderia causar um desvio do propósito de pensar sobre concepções de meio ambiente, para mais uma vez adentrarmos no debate sobre cultura. Em vez disso, reivindiquei Lévi Strauss, ponderando sobre seu texto Raça e História (1993), onde também é questionada a suposta superioridade da lógica e da razão ocidental como ideal evolutivo, revisitando termos, conceitos e ideias fundamentais para a contextualização do questionamento no nosso cenário brasileiro, uma vez que o autor escreve sobre e a partir de sua vivência com povos originários da América Latina.

 

Em seus estudos sobre esses povos, Lévi Strauss formulou sua teoria defendendo que eles desenvolveram formas diversas de configurações sociais que não reproduzem, necessariamente, estruturas e funções equivalentes às das instituições sociais presentes na cultura europeia ocidental e colonial, o que torna incoerente a comparação e hierarquização entre povos com contextos tão variados. Em aula, a referência a Lévi Strauss pôde ser operada para raciocinar sobre a incoerência em definir uma concepção cultural. Neste caso, uma concepção eurocêntrica, como régua de parâmetro civilizatório em relação às demais concepções culturais da realidade, o que envolve o entendimento sobre meio ambiente e natureza. 

 

A turma logo entendeu sobre as múltiplas possibilidades e o relativismo nas formas de compreender e de se relacionar e  com o meio ambiente, remetendo, inclusive, a uma de nossas aulas anteriores, quando refletimos sobre o que seria tratar culturas humanas  como “selvagens” ou “primitivas”. Começamos, então, a desconstrução coletiva da noção de “meio ambiente”, como costuma ser descrito pelas Ciências que se pretendem objetivas e racionalistas. Afinal, qual o impacto que tal afastamento da dimensão sensível com o meio ambiente poderia causar nos nossos modos de vida? Podemos nos afastar do meio ambiente de fato, ou seria apenas uma retórica cientificista e, portanto, mais ideológica do que de fato racional?

 

Questionei-os e, não nego, encheu-me de orgulho quando uma das estudantes, que não costuma interagir muito em aulas, respondeu “não dá para separar ‘nós’ da ‘natureza’... A gente mesmo, saímos da sala e viemos para a quadra esportiva por causa do calor. Isso é se relacionar com o meio ambiente, não é…? Ou quando respiramos poluição e comemos agrotóxicos”. Ainda antes de minha próxima intervenção, sua colega complementou: “mas a gente não precisa necessariamente ficar assim, fugindo da natureza. Só saímos da sala porque a escola está cheia de paredes. Se, em vez de na sala, a gente ficasse em áreas abertas, por exemplo…”; um terceiro interrompeu-a “se toda aula fosse na quadra era bom demais”. Alguns riram, mas aquele exemplo encaixou-se perfeitamente como uma oportunidade para inserir outra discussão. Então, falei: “vocês lembram que, para aprender, não precisamos estar em sala de aula, não é? Algumas escolas indígenas, por exemplo, preferem aulas ao ar livre”.

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Crédito: João Pedro Lyra da Silva.

Refletimos um pouco sobre nosso modelo de escola ser semelhante, mais uma vez, ao projeto iluminista, moderno etc., de modo a questionar o critério de “afastamento dos objetos de estudo” pelas paredes da escola. Foi impressionante notar como sair das limitações físico-espaciais da sala de aula configurou-se quase que como extrapolar também as limitações de estímulos à reflexão dos estudantes. Estavam recordando ideias, conceitos e dando exemplos como nunca antes, como se a ampliação espacial pela qual passamos expandisse também suas capacidades cognitivas, a liberdade criativa. Em meio ao debate, inseri mais um conceito de Lévi Strauss, perguntando-os: “o que vocês acham que seria um “pensamento selvagem” dos povos tradicionais?”.

 

Já era esperado que, tratando-se de um conceito pouco popular e de nome propositalmente contraditório, ocorressem erros de interpretação, como acharem que seria o mesmo que um “pensamento primitivo”, “não científico” ou “irracional”. Por isso, logo explanei: “pensamento selvagem é o pensamento não colonizado. É o pensamento não domesticado pela razão ocidental. Quando o autor, Lévi Strauss, fala que nossos povos originários tinham um pensamento selvagem, ele quer dizer que tinham formas de conhecimento que não operam na mesma lógica que a razão e a ciência ocidental. Formas de conhecimentos que, inclusive, não separam o ‘humano’ do ‘natural’ e nem dos outros seres. Conhecimentos que não são registrados pela descrição objetiva, como na ciência, mas passados como tradições afetivas”.

 

Abordar Lévi Strauss, naquele momento, foi o suficiente para nos permitir aprofundarmos sobre a diversidade cultural e a tendência etnocêntrica de interpretar o mundo, que fora trazida para nosso contexto por movimentos coloniais de dominação política e ideológica, inclusive pelo uso da linguagem cientificista e pelas configurações do espaço escolar. Fluiu com uma naturalidade não planejada refletir sobre como a construção do imaginário hegemônico de “meio ambiente”, descrito no início da aula, constitui-se como parte de um projeto cultural e ideológico, moderno e eurocêntrico, cujos pressupostos de afastamento, neutralidade e impessoalidade, podemos dizer, assumem posturas alienantes do ser para com o seu meio, em detrimento do permitir envolver-se. Concordamos, inclusive, que a organização dos conhecimentos sobre a realidade pode partir tanto da “experiência sensível” quanto da “objetividade científica”.

 

O conceito de "pensamento selvagem", com o qual o autor contesta o racismo e a noção de primitivo, demonstrou que os chamados “povos selvagens" não são atrasados, "menos evoluídos", tampouco “primitivos”; mas que operam de modo distinto à civilização ocidental, muitas vezes, inclusive, por opção. Mais uma vez, cogitei mencionar outro autor, Pierre Clastres (1974), para quem o “pensamento selvagem”, fazendo referência a Lévi Strauss, manifesta-se também na recusa consciente que estes povos tradicionais fazem à lógica cultural trazida pela colonização europeia. A recusa às regras impostas pelas colônias não era pressuposto para defini-las como sociedades com ausência de regras e relações de poder, povos de “anarquia”, como sugeriram os colonizadores; mas, na verdade, como sendo povos que não reconhecem hierarquias e submissões, que não se submeteram à dualidade dominantes-dominados, como os povos com governos e Estados fizeram. Clastres proporcionou, pelo relato etnográfico, uma Antropologia Política crítica, coerente com a análise das situações de dominação colonial como a que estávamos tendo. Contudo, mais uma vez, optei por não complexificar o debate.

 

Pelo resgate de saberes mais harmônicos com o natural

 

Preferi, àquela altura da aula, já em vias de finalizá-la, acrescentar autores e autoras de origem brasileira, no que pode ser chamado de “perspectivas decoloniais”. Iniciei fazendo uma conexão entre o “pensamento selvagem” de Lévi Strauss e o texto-convite para Tornar-se Selvagem de Jerá Guarani. Com esse texto, “repassei” o convite para pensarmos como nos tornarmos selvagens, no sentido de recusar, ou ao menos enxergar, os modos de vida que tentam nos afastar da relação afetiva e sensorial com o meio e com os outros seres, discutindo os impactos de nosso afastamento do meio natural como prática cultural normalizada entre nós. Convidá-los a tornarem-se selvagens foi como um pedido para compartilharem pensamentos e exemplos de como viver em harmonia com o meio, pela importância, como diz Jerá, de fazer uma Antropologia da nossa própria cultura.

 

Questionei-os, então, se haveria relação entre o aquecimento global e a nossa indiferença afetiva com o meio e os seres à nossa volta. Nesse sentido, citei um dos pensadores brasileiro de maior notabilidade na contemporaneidade, primeiro indígena a ingressar na Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. O autor relaciona o modo de pensar ocidental eurocêntrico como o principal responsável pela destruição, ou consumo, de "mundos". A menção a Krenak visou afastar a percepção limitada de que apenas “os outros” são culpados pela destruição do planeta, ao mesmo tempo que daria continuidade à proposta de Jerá em fazer uma Antropologia de nossa própria cultura. Quis, com isso, tornar o debate uma autorreflexão sobre nossos próprios modos de vida, e ilustrar que nós, como diz Krenak e Jerá, somos também culpados e cúmplices desse fenômeno.

 

Em Ideias para Adiar o Fim do Mundo, escrito no contexto da pandemia da Covid-19, Krenak conta uma parábola para ilustrar o que se tornou a presença humana no planeta Terra, comparando-nos a um vírus. Resumidamente, o indígena menciona que nosso modo consumista, utilitarista e, inclusive, cientificista, de instrumentalizar com indiferença nosso relacionamento com outros seres e com a natureza distanciou “ficcionalmente” os seres humanos de suas bases materiais com o planeta. “Ficcionalmente”, porque continuamos a necessitar de toda vitalidade que só as relações entre os organismos vivos conseguem produzir. Como uma espécie de "vírus", a humanidade passou a consumir os recursos como se fosse um ser que independe das relações com os demais, causando danos ao organismo maior no qual habita, o planeta Terra, que reage aquecendo-se para expulsar nosso modo de vida, como um corpo que esquenta para expulsar um vírus invasor com uma febre.

 

O paradoxo entre culpar os outros e enxergar nossa própria culpa ficou ainda mais claro quando uma estudante falou: “sim, professor, somos cúmplices. Mas só porque esse é o único jeito que a gente aprendeu a viver. Se me soltar numa mata, eu não vou saber sair viva como um colega tupinambá”. Ainda que com um deselegante tom de deboche ao mencionar indígenas, sua fala foi importante — devemos abstrair algumas falas insensatas quando se dá aula para 45 jovens hiperestimulados. Como, a partir disso, eu poderia trazer exemplos mais próximos de suas realidades? Onde ou quem menciona modos de vida que sirvam como referência para jovens que, em sua maioria, são negros, periféricos, do interior do Nordeste brasileiro? Foi então que lembrei, nos últimos minutos da aula, de Antônio Bispo.

 

Antônio Bispo, homem preto e quilombola, com experiências que se deslocam da cidade ao campo, seria a referência ideal para a finalização da aula. Não pretendia deixar conceitos abstratos e críticas indiretas ao nosso modo de vida; também sabia que pelo menos uma dúzia daqueles estudantes moravam, assim como Bispo, em casinhas de barro feitas  à mão, ou, ao menos, tinham amigos e familiares nessa realidade; eu sabia que, fora da escola, onde as desigualdades são gritantes, alguns levavam formas de vida que seriam consideradas miseráveis, mas não a consideravam assim. Lembrei-me que, por coincidência, naquela turma, havia um grupo de cinco ou seis estudantes que vinha no transporte escolar de uma comunidade chamada Agrovila e que havia recentemente doado sementes para serem plantadas na horta comunitária da escola. Certamente, eles compreenderiam a narrativa de Antônio Bispo.

 

Em A Terra Dá, a Terra Quer Antônio Bispo nos apresenta o contracolonialismo como ato de resistência, como forma de firmar nossas raízes identitárias com o território em que vivemos. Lembrei-me da oposição semântica que Bispo cria entre os termos “desenvolver” e “envolver”, e mencionei para a turma: “Vocês acham que o desenvolvimento nos separa do meio ambiente?”. Claro, àquela altura, a maioria respondeu que sim, e continuei: “Um autor, Antônio Bispo… Prestem atenção na aula de Português… Explica que na palavra ‘desenvolvimento’ o prefixo ‘des’, que remete à negação e separação, antes de ‘envolvimento’, significa justamente isso, nos impedir de nos envolvermos entre nós, de nos envolvermos com o meio e com os outros seres.”

 

Essa reinterpretação semântica faz parte da estratégia de luta proposta pelo autor, de apropriar-se das noções e palavras dos inimigos para enfraquecê-las, fazer o movimento oposto à colonização: em vez de receber passivamente, ressignificar o que vem de fora. Continuei a falar: “[...] então eu vou propor uma coisa a vocês. Vamos, durante essa semana, nos conectar com nosso ambiente, nos ‘envolver’. Como uma atividade de casa [mesmo que a aula tenha fluído como uma tarde lúdica, a notícia de uma atividade de casa é sempre rebatida com murmúrios de desgosto] vou pedir que vocês busquem um elemento do cotidiano que os conectam, de alguma forma, ao ambiente ou natureza próxima em que vocês vivem. Pode ser comer uma fruta de seu quintal, tomar um chá de alguma erva plantada por sua avó, descansar na rede, ou jogar bola e andar de bicicleta no campo. Vocês escolhem. 

 

Façam um texto descrevendo o que for possível desses momentos, como as emoções e lembranças que os ambientes despertam em vocês. Pode ser?”. A turma concordou, mas um colega questionou: “professor, e se eu não gostar de fazer nada na natureza ou coisa assim?”. Bom, Bispo já havia alertado que estamos nos deparando, e precisamos combater, com uma geração “sintética”, então sugeri: “quem quiser, pode fazer o oposto. Pegar um hábito que os afasta do meio ambiente em que vivem e refletir sobre seus impactos. Por exemplo, comer comida industrializada com embalagem de plástico, ou passar horas conectados a um aparelho gastando energia… Agora, é pra refletir! Ser crítico consigo mesmo! Combinado?”. Todos concordaram. Aula encerrada.

 

Até a escrita deste texto, com as devolutivas da atividade proposta, podem ser destacados alguns exemplos que transpõem as relações dessas crianças com ambientes, seres e artefatos que compõem suas relações cotidianas com o meio natural. Entre os relatos entregues, percebe-se uma dupla experiência que varia entre a conexão e a desconexão com o meio natural que os rodeia. Muitos relataram compreender elementos naturais relevantes para a organização de suas rotinas, como a percepção do clima antes de jogar bola, soltar pipa ou ir aos campos de canaviais da região para brincar. Alguns relataram entender sobre elementos da paisagem, como onde têm maior probabilidade de encontrar peixes betta nos riachos e rios, os ambientes mais propícios para plantar ervas ou recolher frutas como mangas, goiabas e jambo; ou até mesmo onde e como criar animais em áreas abertas ou fechadas, soltos ou presos. Esses exemplos surgem como práticas cotidianas relacionadas principalmente ao lazer, incluindo a soma de fatores, como clima, estação anual, ambiente e paisagem, comportamento animal e vegetal, e até uma dose de autoconhecimento.

 

Ainda que parte relevante deles tenha admitido passar bastante tempo conectada aos aparelhos eletrônicos ou dentro de casa, trazer essa abordagem antropológica e autoetnográfica da relação com a dimensão natural no cotidiano pela promoção do sensível, em substituição de posturas mais objetivas, os fez, aparentemente, sentir segurança em se assumirem como observadores ativos e autônomos, articulando embasamentos que vão da experiência prática à aprendizagem tradicional e, inclusive, manipular noções científicas apropriadas no ensino escolar de outras disciplinas com a suas experiências sensíveis; mas, sobretudo, e devido à própria proposta de atividade, superar a cisão entre a racionalidade científica e o envolvimento afetivo.

 

O interesse em realizar esse tipo de registro por parte dos estudantes evidencia que alcançamos o que se tornou o objetivo principal da aula: refletir sobre a diversidade dos modos de existência e de saberes que compõem e  medeiam nossas relações com o meio natural e demais seres, tendo como base uma postura antropológica e autoetnográfica. Durante a leitura das devolutivas, pensei mais uma vez na passagem do texto de Jerá Guarani, no trecho em que ela defende que “[...] talvez, um dia, o Juruá perceba que é importante apoiar a questão indígena. Não porque somos bonitinhos, coloridinhos ou porque usamos peninhas e temos criancinhas pintadinhas, mas por uma questão de sobrevivência de todas e todos”. O meio natural, nesse caso, toma uma dimensão simbólica, prática e afetiva, não apenas teórica.

Conclusão: não adianta fingir que não sabemos o que fazer

 

 

 

Antes de finalizar, é possível que paire um último questionamento: por que é tão importante “envolver-se” com o meio natural? Compreendendo a importância antropológica de conhecermos outros modos de existir e de se relacionar com o meio natural e seus organismos, cito o encerramento do livro Floresta é o Nome do Mundo, de Úrsula Kroeber Le Guin, escrito em 1972 , onde o personagem protagonista, o alienígena Silver, explica como conhecer novas perspectivas de mundo é um caminho sem volta — uma vez aprendidas, não se pode retornar ao ponto de partida. Segue o trecho da explicação de Silver:

.

Às vezes um Deus vem… Ele traz uma maneira nova de fazer alguma coisa, ou algo novo a ser feito.  Um novo tipo de canto ou um novo tipo de morte. Ele traz essa coisa atravessando a ponte entre o tempo dos sonhos e o tempo do mundo. Quando faz isso, está feito. Não se pode pegar as coisas que existem no mundo e tentar levá-las de volta para o sonho, retê-las ali dentro, como muros e fingimentos. Não adianta, agora, fingir que não sabemos… (LE GUIN, 2020, p. 157).

Concordando com o argumento do personagem Silver, e recontextualizando-o com a proposta de confluência de saberes de Antônio Bispo, afirmo: não adianta, agora, fingir que não sabemos nos relacionar harmonicamente com o ambiente natural e seus organismos. Não faltam exemplos disso, na dimensão prática e simbólica, concebidos por povos, culturas e saberes que estão além do cientificismo ocidental, eurocêntrico. Por outro lado, ainda que o projeto de dominação total do ambiente natural venha se mostrando cada vez mais fictício, é inegável suas contribuições para a humanidade nos últimos séculos; assim como é inegável os danos que a indiferença ao esgotamento dos recursos naturais vêm provocando.


Por fim, esta aula tornou-se uma forma de, ao mesmo tempo, reconhecer e tentar superar o problema apontado pela aluna no relato acima, de que “esse é o único jeito que a gente aprendeu a viver”. A Antropologia, de um lado, e a observação autoetnográfica, de outro, tornam-se o ponto de partida para superarmos essas “únicas formas de viver”. Mesmo que tardiamente, aprender, ou melhor, reaprender outras formas de estar no mundo, outras cosmologias, mostra-se uma oportunidade poderosa de confluência entre conhecimentos sintéticos e orgânicos. Ao mesmo tempo em que compreendemos cientificamente a dimensão natural, nos relacionamos e nos envolvemos com múltiplos ambientes, organismos e povos, sem que haja a sobreposição de uns em relação aos outros.

NOTAS

[1]  “Homem”, neste trecho, refere-se de fato a masculinidade, não a categoria generalizada de “humanidade”. Aquino (2020) aponta que “associariam a masculinidade a agressividade, severidade, culpabilidade, sadismo e dominação, as características que citamos como sendo do sujeito moderno” que “leva às últimas consequências a dominação social da natureza”, citando a conferência de 1974, sobre Marxismo e feminismo, em que Marcuse, pela primeira vez, associa explicitamente a subjetividade agressiva e hostil do sujeito moderno a masculinidade.

[2] Alguns antropólogos como Claude Lévi-Strauss, Tim Ingold, Anna Tsing e Bruno Latour discutem esse contraponto. Veja as referências ao final deste texto.

[3]  Mestrado Profissional em Rede de Sociologia, com a Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) como instituição associada no Estado de Pernambuco.

[4]  Povo “branco”, “da cidade” ou “colonizado”.

[5]  Resumidamente, Antônio Bispo (2023) define conhecimentos sintéticos sendo algo como são aqueles saberes produzidos pelas abstrações cientificistas, que separa o sujeito do objeto com propósito da dominação, fragmentação, neutralidade, etc; enquanto que conhecimentos orgânicos são aqueles produzidos pela vivência prática, afetiva e tradicional, onde se reconhece que sujeito e objeto relacionam-se, envolvem-se e afetam-se.

PARA SABER MAIS

AQUINO, John Karley de Sousa. A Natureza é Mulher: A Natureza ante o Sujeito Moderno na Perspectiva de Marcuse. Revista Dialectus, Ano 9, n. 17. p.124-136. 2020.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado São Paulo. Cosac & Naify. 2003a [1974].

GUARANI, Jerá. Tornar-se selvagem. Piseagrama, Belo Horizonte, 2020.

INGOLD, Tim. Humanidade e animalidade. Trad. Vera Pereira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 10, p. 39-53, 1995. 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed. - São. Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LÉVI-STRAUSS, C. "Raça e história". In: Antropologia Estrutural II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 4ª. ed, p. 328-366, 1993.

LE GUIN, Ursula K. Floresta é o Nome do Mundo. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo: Editora Morro Branco, 2020a [1972].

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, 152 p.

SANTOS, Antonio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. São Paulo, Ubu, 2023.

TSING, Anna. Viver nas Ruínas: Paisagens Multiespécies no Antropoceno (textos a selecionar) Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

O AUTOR

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João Pedro Lyra da Silva é mestrando em Sociologia pela Fundação Joaquim Nabuco (PROFSOCIO/FUNDAJ) e professor de Ciências Humanas e Sociais na educação básica; é licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Pós-graduado em Experiência de Aprendizagem pelo Instituto de Desenho Instrucional. Atualmente, desenvolve pesquisa na área das Humanidades Digitais e Sociologia Digital Crítica, sobre as transformações nos processos de sociabilidade e aprendizagem pela mediação das tecnologias digitais da informação e comunicação.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SILVA, João Pedro Lyra da. “Mas ‘meio ambiente’ não é assunto das Ciências da Natureza?” Relato de uma abordagem antropológica sobre meio ambiente na educação básica. (Artigo). In: Revista Coletiva - Diversidade Socioambiental. nº 23. Publicado em 22 de abr. 2024. Disponível em: <>. ISSN ISSN 2179-1287.

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