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Diversidade

Socioambiental

Editor temático: Pedro Silveira 

nº 22 | 27 de fevereiro de 2024

Pesca artesanal e sustentabilidade socioambiental: dialogando com a agroecologia¹

Edson Fly

“Em minha vida passa o rio

e se emerge uma cidade

podres as águas desse rio

no tom cinza da cidade

mangues aterrados, esgoto a céu aberto

em mim a lama, a lama em mim.”

Erickson Luna, poeta marginal do Recife.

Nós, do núcleo de comunicação do Caranguejo Uçá, temos alguns companheiros aqui: Mosquito, pescador e ativista desde sempre; Hamilton Tenório, nosso cientista fonográfico, que aqui está como câmera; temos o produtor, também jornalista e comunicador social, Israel Uçá; Rodrigo Lima, nosso biólogo; Teresinha Filha e Tamires, que estão transmitindo o Seminário na Rádio Boca da Ilha, ao vivo, na Ilha de Deus. Nós somos resultado da luta de mulheres pescadoras por direito, e também somos crias do movimento da resistência e da resiliência do Conselho Nacional dos Pescadores, na perspectiva da formação dentro das comunidades. 

A Ilha de Deus é uma comunidade tradicional pesqueira situada no sudeste da cidade do Recife, onde está situado o maior manguezal urbano da América Latina. Isso tem a ver com sustentabilidade, com dignidade, com recontar ou retomar uma consciência política, ambiental e de afirmação. 

Enquanto núcleo de comunicação, a gente poderia ser uma associação para tratar da depreciação que o pescador, a pescadora e os movimentos sociais e os territórios sofrem, de reafirmar uma miséria que beneficia a qualquer segmento, menos as pescadoras, pescadores e os territórios, porque é inadmissível que uma cidade como o Recife, que é uma cidade das águas, seja descaracterizada. Mas não é descaracterizada apenas pelas políticas públicas de agora, começou lá atrás, com Maurício de Nassau, quando ele fez o primeiro canal em Afogados, que é o centro do Recife. Se você olhar geograficamente a cartografia, verá que ele é o centro da cidade. Ali, foi instalado o primeiro canal, que foi criado para se livrar dos dejetos químicos e fisiológicos dos colonizadores.

A partir daí, a história conta, até hoje, que a grande saída para se livrar de dejetos, ou para dar uma ideia de maquiagem na cidade, é fazer canais, ou seja, descaracterizar e miserabilizar, o tempo inteiro, as condições de um grupo social mais do que importante, que são as pescadoras e pescadores. 

Existe uma falácia muito triste nessa cidade, e foi lamentável ouvir o secretário de Meio Ambiente afirmar neste seminário que a prefeitura do Recife e as políticas públicas daqui serão sobretudo para recuperar rios, canais e desobstruir a vida fluvial da cidade. Isso não é verdade. Nós estamos fazendo um diagnóstico fotográfico do Rio Tejipió e é terrível, é muito difícil ver pessoas e famílias inteiras sendo expulsas com o argumento dos “parques alagados”. Isso não sou eu que estou dizendo. Nós vamos provar com um documentário, em que estamos discutindo isso junto com o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social  (CENDHEC) e com o  Fórum Popular do Rio Tejipió (FORTE). É inadmissível o que está acontecendo com a cidade e não é de agora, faz muito tempo.

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Então, a nossa missão enquanto jornalistas e comunicadores saídos de uma comunidade tradicional pesqueira é atuar no combate ou na contranarrativa, tendo em vista o fato de ser uma comunidade marginalizada pelas falácias de uma mídia corporativista, misógina e racista, que a retratou, durante décadas, como uma comunidade miserável, sem perspectivas, não só por estar na margem, mas também de comportamento de indivíduos como eu, que eram tratados como bandidos. 

Quando eu passo a vista nesse VI Seminário Pesca Artesanal e Sustentabilidade Socioambiental, eu vejo muita gente que contribuiu bastante e que continua com muitas iniciativas para desmistificar a Ilha de Deus. Quando os professores Beatriz Mesquita e  Tarcísio Quinamo me convidaram, uma das coisas que eu  perguntei foi se iriam pagar para o palestrante, porque quando eu olhei para quem está fazendo esse encontro, eu constatei que seria inadmissível a gente sair da Ilha de Deus, parar uma produção que a gente está fazendo de documentários com pescadores e pescadoras, para estar aqui dando a contribuição sem sermos enxergados como trabalhadores. 

Somos pessoas que lutam por dignidade e por direitos, sobretudo. Na maioria das vezes, em prol de pessoas que não compreendem seus direitos e nem sabem acessá-los, sendo manipuladas por associações, colônias, entre outros grupos que dizem fazer trabalhos com os pescadores, pescadoras e com o território, quando, na verdade, só os exploram, só os colocam em situações emergentes, colocando-os como coitadinhos incapazes. Então, o Núcleo de Comunicação do Caranguejo Uçá segue um outro raciocínio de base.

Diante disso, de uma certa maneira, nos sentimos ameaçados por ameaças veladas, que acabam nos atingindo diretamente, nos deixando adoecidos, sem jamais termos cometido um único crime, sem jamais termos atentado a dignidade alheia. Criminalizam nossas atitudes visando defender o pão coletivo de uma maneira ampliada, e defender a dignidade é uma questão humana. 

Esse segmento da pesca artesanal é invisibilizado e ameaçado o tempo inteiro, há mais de cem anos. Pescador e pescadora em território não quer nada além disso: dignidade, respeito e reconhecimento. A gente não quer, nos nossos territórios, que ninguém chegue para dizer para gente que vai nos ensinar a sermos empreendedores, pois pescadoras e pescadores já são empreendedores, está no sangue, eles já são isso no cotidiano. Então, não dá para conceber uma falácia que diz que filhos de pescadores não querem mais ser pescadores.

Eu sou filho de pescadora, minha mãe só foi para a escola durante 3 meses e estudou por um livro chamado ABC, que a tornou, para mim, uma das maiores conhecedoras de matemática. Eu aprendi matemática com a minha mãe e ela era, para mim, uma das maiores comerciantes. Minha mãe foi uma pessoa que, além da solidariedade, moveu a comunidade da Ilha de Deus e de Itamaracá com o comércio desde cedo. Ela me dizia “você tem que ir para a escola, porque eu arrasto a bunda na lama atrás de unha de velho e de sururu, mas eu quero que tu tenha dignidade”. E não é falta de dignidade ou questão de dignidade ser pescador ou pescadora. A ausência de dignidade está em não nos reconhecerem como potencial

Minha mãe, assim como outras mulheres, impulsionou a consciência e a luta política nos diversos territórios. Posso citar algumas referências, como Dona Joana Mousinho, de Itapissuma, Conceição Lino Carneiro, Rogéria, Beró, Raquel, entre outras da Ilha de Deus, além de representantes de outras instituições, como Laurineide Santana, da Pastoral dos Pescadores e Maria Aurieta, da turma do Flau.

Essas mulheres muitas vezes apanhavam do marido - também pescadores - quando chegavam em casa, porque além de fazer as tarefas domésticas, elas ainda lutavam pelas questões da pesca e das políticas públicas na Ilha de Deus. Nós, filhos e filhas, herdamos a resistência e a resiliência dessas mulheres.

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Existe uma falácia de que “depois de Eduardo Campos, a Ilha é outra”. Não é verdade. A Ilha é outra desde 1983, quando as mulheres da Ilha de Deus assumiram a luta e colocaram no alimento o sangue da luta por seus filhos e filhas, e eis aqui referências dessa luta. Então, temos muito respeito por todas essas  mulheres.

O Núcleo de Comunicação do Caranguejo Uçá tem algumas coisas interessantes, por exemplo, a gente atuou na guerra da Ucrânia, tirando de lá, apenas com nossa credencial, um brasileiro que estava cobrindo a guerra por uma grande emissora. Tudo o que a gente via de uma das emissoras daqui (os cadáveres no chão, a falta de alimento no supermercado, imigrantes querendo sair e sem conseguir), eram imagens produzidas por esse amigo, entretanto, fomos nós que tiramos ele de lá, com a credencial do Repórteres Sem Fronteiras

Nós, do Núcleo de Comunicação, estamos produzindo imagens que vamos exibir em dois programas chamados “Notícias em Português” e “Caracas para o Mundo”, ou seja, nós temos inserção na estatal da Venezuela, a TeleSur, que é a TV latinoamericana, que tem audiência em mais de 90 países de língua espanhola e portuguesa, presente em toda a América Latina até o México, passando por todo o Caribe. 

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Mas nós somos da Ilha de Deus, e isso tem um peso muito grande: o nosso endereço, a nossa cor, a nossa narrativa, porque a nossa narrativa está voltada para os movimentos sociais. É interessante como o governo brasileiro não institui essa questão da comunicação para dar luz à discussão como essa. Esse Seminário vai passar em mais de 90 países, inclusive no Brasil, só não tenho a certeza se as nossas comunidades terão acesso. 

Nessa discussão pertinente, sobre segurança alimentar, quero mencionar o  SERTA, que, para mim, é uma das maiores e melhores escolas que temos para a formação agroecológica. Os cursos de Agronomia nunca se preocuparam antes com essa questão ecológica e de segurança alimentar, nas universidades UFPE E UFRPE, e agora estão trazendo o recorte da agroecologia, o que embora seja um avanço, ainda serve ao agronegócio, ou seja, é interessante perceber que quem está se aproximando, ou se aproximou, do Serviço de Tecnologia Alternativa  (SERTA) é o pessoal do veneno, pois o produto agroecológico é a grande saída para uma boa alimentação, e estão se apropriando dessa discussão. 

Outra coisa interessante é que brancos de classe média ocupam o espaço das pessoas do campo e da pesca nos cursos do SERTA, para que, depois de formados, muitos deles abram as suas lojinhas agroecológicas. E onde está a questão da agroecologia, que é de contagiar cada indivíduo a plantar e promover a troca do alimento saudável e a soberania alimentar? Pelo contrário, está ficando cada vez mais inacessível, está no caminho do capitalismo e se afastando do verdadeiro ideal, que é de fazer essa celebração dentro da perspectiva da soberania e da insegurança alimentar, de matar a fome de mais de 33 milhões de brasileiros. 

Mas essa ideia de ter 33 milhões de brasileiros com fome retroalimenta a miséria, porque é muito triste a gente ver, o tempo inteiro, dentro da pesca, grupos teimando em colocar pescadores e pescadoras como esmoleis, como pessoas que estão o tempo inteiro pedindo, como pedintes, coitados que passam fome, mas que na realidade são profissionais e explorados

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Eu vou falar do mar, mas a minha relação direta é com o estuário, que está morrendo. Se não tiver mangue, não terão espécies no mar; enquanto a gente estiver tratando tubarão como monstro e não cuidar do estuário, a vida marítima estará ameaçada. A gente já ouviu, inclusive de secretário de Meio Ambiente, que o rio Beberibe está morto e não tem mais o que fazer; a gente já ouviu de colegas que fazem incidência política, quando a gente bateu de frente com o Complexo Industrial Portuário de Suape, junto à comunidade quilombola da Ilha de Mercês e o Fórum Suape, que se insistíssemos, poderíamos ter sérios problemas. E o que eu digo é: que pegue fogo no inferno, porque o que a gente quer é dignidade. 

Não vamos deixar, por exemplo, que a Ilha da Cocaia se torne um terminal de minério. Claro que os projetos andam com uma velocidade de trem bala, porque é de cima para baixo que o movimento acontece. Se a gente jogar nossas lutas daqui para cima, para que possa chegar lá no ministério, vai demorar um pouquinho, mas se eles jogarem uma bomba lá de cima, vai cair a mais de mil na nossa cabeça. É assim que acontecem as políticas públicas. Então, onde está a dignidade? 

Enquanto Núcleo de Comunicação, na pandemia, a gente fez duas histórias que foram muito boas. Uma delas foi o projeto com a saudosa dona Ângela, liderança do Porto do Baldo do Rio, em Goiana, que foi o Lentes da Dignidade, que é um episódio do Jornal da Maré

A gente está dentro da cidade do Recife, que é a cidade mais desigual do Brasil, e ser desigual não significa ser uma cidade pobre, pelo contrário, nós somos muito ricos. Mas enquanto Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Luciano Bivar e tantos outros demônios destrutivos da cidade estão privatizando as águas do Recife, enquanto eles foram e são venerados, tidos como heróis e indivíduos que distribuem empregos para todo mundo, ambientes foram e são ameaçados, com o Novo Porto, as Torres Gêmeas, o Iate Clube do Cabanga e tantos outros. 

 

Eles falam que fizeram “escutas nas comunidades com as lideranças”, mas se eles falaram com lideranças, foi com aquelas que não têm compromisso com as comunidades tradicionais pesqueiras. Falaram com lideranças que quanto mais o estuário é detonado e os pescadores ficam à míngua, mais eles gostam, pois eles gostam de vender miséria e se sustentar em cima da miséria. É interessante, porque eu já escutei isso da companheira Beatriz anos atrás: “rapaz tem que deixar de tratar pescadores de territórios como miseráveis, porque eles não são coitadinhos”.

Então, eu gostaria de finalizar dizendo o seguinte, em memória do Médico, cardiologista, ativista e Caranguejo Uçá, Ricardo Paiva:

Eu conto comigo, meu canto é amigo, exijo respeito e quero igualdade.

Eu venho da terra, a lama é meu canto, se te causa espanto, eu sou guerra, eu sou paz.

Eu sou a cidade, a Ilha e a ponte!

E a felicidade de fervilhar nessa cidade enquanto Caranguejo Uçá!

É isso, obrigado.
OBS: "As imagens deste texto foram produzidas pelo Núcleo de Comunicação da Ação Comunitária Caranguejo-Uçá e podem ser acessadas em @caranguejo_uca

NOTAS

[1] Este texto é uma transcrição revisada de uma fala de Edson Fly no “VI Seminário Pesca Artesanal e Sustentabilidade Socioambiental: dialogando com a agroecologia”, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco no Recife, em novembro de 2023.

O AUTOR

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Edson Fly é ator, jornalista e ativista por direitos humanos do Núcleo de Comunicação Caranguejo Uçá.

COMO CITAR ESSE TEXTO

FLY, Edson. Pesca artesanal e sustentabilidade socioambiental, dialogando com a agroecologia. (Artigo). In: Revista Coletiva - Diversidade Socioambiental. nº 22. Publicado em 27 de fev. 2024. Disponível em: <https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n22-pesca-artesanal-e-sustentabilidade-socioambiental>. ISSN 2179-1287.

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