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Foto: Estevão Senra/IS

Diversidade

Socioambiental

Editor temático: Pedro Silveira 

nº 20 | 16 de março de 2023

Crise Yanomami: para não haver terceira vez

Maurice Seiji Tomioka Nilsson

No início de 2023, boa parte do povo brasileiro tomou conhecimento da invasão garimpeira na Terra Indígena Yanomami (TIY) e das consequências deixadas por tal atividade, que afeta drasticamente esse povo. A presente situação teve aumento exponencial entre 2019 e 2022, época em que as atividades de garimpo ilegal foram especialmente facilitadas por ações administrativas do governo Bolsonaro. Sua gestão foi marcada pela defesa de que o garimpo na TIY é uma condição inexorável e inevitável, problema crônico, que nunca cessou. Mas isso não é verdade.

 

Deste modo, esse texto busca demonstrar que as grandes invasões garimpeiras, longe de serem espontâneas, estão condicionadas ao projeto político explícito de favorecer o garimpo com documentos, projetos de lei e as mais diversas ações administrativas, incluindo a omissão, que resulta hoje em tática, como a tentativa de sujar a reputação das organizações que tiveram papel relevante na resistência ao garimpo. No decorrer do texto, também será demonstrado que houve um período em que havia a presença do Estado na Terra Indígena Yanomami que, com o apoio da sociedade civil organizada, coibia as invasões garimpeiras.

Entre meados da década de 1990 até 2015, esse período não tão curto de tempo, houve um crescimento da população Yanomami, consequência de políticas públicas de atenção à saúde, as quais geraram dados e estatísticas que permitiram à sociedade civil acompanhar a situação Yanomami. O ponto central dessas políticas foi possibilitado pela Lei Arouca [1] (no 8366/1999), que permitiu ações da sociedade civil organizada na saúde indígena e culminou no estabelecimento de um sistema de saúde eficiente, que mostrou resultados positivos, como a redução da malária a zero. Tal sistema permitiu sair de uma estratégia de expedições e visitas periódicas para o conceito de “assistência permanente” à saúde, em que o direito à saúde passava a ser cumprido também para povos indígenas que são, como já demonstrado na literatura, vulneráveis por uma ausência de resistência às endemias ocidentais.

 

Uma história-geografia ambiental da Terra Indígena Yanomami permite perceber que os tempos de contato foram diferentes em cada região, mas algo comum a todo o território indígena é que as relações entre indígenas e não-indígenas (napëpë) se configuraram a partir do fenômeno do garimpo, atingindo a todos; quando não pela presença direta, no temor de sua aparição, seja nos sonhos ou no imaginário dos Yanomami. Dessa forma, tal povo sempre teve com seus “estrangeiros” (napëpë) uma relação de interesse mesclado com uma clara relação de medo, pelo que representavam de acesso aos utensílios e por saberem, historicamente, das doenças que transmitiram e transmitem.

 

O gráfico abaixo demonstra a alteração na paisagem causada pela atividade garimpeira na Terra Indígena Yanomami. Nele, podemos notar que as grandes áreas alteradas com mais de 100 hectares de desmatamento em um mesmo ano se concentram em dois grandes blocos, com cerca de quatro anos: de 1988 a 1991, e, depois, de 2018 a 2021, como representado no mapa. Além disso, sabemos que, no ano de 2022, houve continuidade do processo de destruição da floresta em busca de ouro. No maior período mostrado no gráfico, houve pouquíssima ocorrência de destruição pelo garimpo, com a maior parte sem quase evidências dessa atividade, a não ser localizado. Esse período sem garimpo teve como característica uma certa normalização da relação com os Yanomami, em que o Estado brasileiro passou a se fazer presente em suas missões institucionais.

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Figura 1: Gráfico com a área desmatada, em hectares, por ano, devido ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Fonte: MapBiomas

Se em 1988 havia 40 mil garimpeiros para 11 mil Yanomami, não é menos severo que hoje haja 30 mil garimpeiros para 30 mil Yanomami, sendo a região mais atingida pelo garimpo um local em que os invasores excedem a população Yanomami. Quem observa o povoamento Yanomami percebe que as serras concentram boa parte dos núcleos populacionais, estando esses próximos entre si, além de perceber que essa localização tem relação direta com interflúvios menores, pois os pequenos cursos de água estão fortemente presentes em vales que os separam do curso de água vizinho. Ali, há como cada grupo se organizar em uma pequena bacia, num ecossistema diferenciado do que conhecemos das terras baixas da Amazônia.


Assim, temos: Aratha u, o rio das Araras; Porapii u, rio com muitas cachoeiras e Waputha u, o rio onde há wapu, - uma planta fabácea que produz uma semente comestível -. Esses são os nomes de alguns povoamentos Yanomami na região de serras. É nesse ambiente delicado que os Yanomami se adaptaram a viver com uma enorme variedade de recursos - incluindo larvas de insetos, lagartas, cogumelos, pequenos roedores e aves -, que a interferência do garimpo se faz mais nefasta, pois afeta ecologicamente as condições de existência da maioria das espécies das quais os Yanomami se utilizam para sobreviver.

 

A primeira grande invasão, já ali causadora de uma catástrofe ambiental de grandes proporções, gerou grande comoção à época. A invasão atual (de 2016 a 2023) mostra-se mais destrutiva e desestruturadora por sua maior tecnificação, que permite acelerar o processo destrutivo. São dragas, escavadeiras, aviões e helicópteros, - em uma parafernália enorme e cara -, que deixam claro se tratar de um investimento milionário, feito por gente já abastada, no qual o garimpeiro, aquele que vai a campo, é apenas uma peça. 

 

Falar sobre esse tema, sobre a existência de um hiato nas invasões garimpeiras, permite afirmar que é possível haver o usufruto exclusivo dos Yanomami em suas terras e que não basta a alta do ouro para acontecer tamanha barbárie de uma corrida do ouro; é necessário que haja poder político para isso, já que são ações orquestradas quando existe hegemonia política de um grupo favorável à tal ação. Isso se vê demonstrado na primeira invasão, ocorrida no primeiro governo da Nova República, com a saída dos militares do governo federal, mas não significando o fim de seu poder, tendo em vista que havia uma divisão dos antigos territórios federais, em que a Marinha estabeleceu maior controle político sobre o Amapá; o Exército, sobre Rondônia e a Aeronáutica, sobre Roraima. 

 

Não podemos esquecer que a primeira invasão garimpeira deu ao estado de Roraima o título de aeroporto mais movimentado do país, em termos de pousos e decolagens. O desenvolvimento aéreo do estado e o seu histórico militar têm nisso uma convergência, em que a cobiça pelo ouro foi o seu motor, uma vez que, na época do garimpo, havia uma enorme quantidade de pistas clandestinas no interior da TIY. Quando expostas no mapa, fica evidente as pistas se concentrarem nessa região de serras, palco principal da primeira invasão garimpeira. 

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Figura 2: Terra Indígena Yanomami e a divisão aproximada das terras baixas e das serras, tomando como critério a cota de 600m de altitude. Aparecem também as ocupações de garimpo conforme os anos e as comunidades e casas Yanomami.

Era o primeiro governo civil - ainda não eleito democraticamente - e a ditadura continuava a exercer muita influência. José Sarney, o presidente, era oriundo da base do regime militar e havia indicado Romero Jucá para o governo de Roraima, político claramente pró-garimpo. Havia um grande grupo de militares que apoiava a atividade garimpeira com base na ideologia da segurança nacional, alegando que se não houvesse a ocupação dessas fronteiras, perderíamos tal terra para os estrangeiros; e que seria um absurdo manter tamanha riqueza intocada por causa da presença indígena. Baseados nesses argumentos, utilizaram-se de um programa de fortalecimento militar nas fronteiras, como o Programa Calha Norte, para instalar quartéis, mas igualmente fizeram ampliação de pistas em lugares reconhecidamente auríferos [que possuem ouro], sobretudo na região do Papiu, que se tornou vulnerável às invasões. 

 

Nesse período, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) cumpria papel diverso do seu e, numa ação articulada, o chefe de posto entrou em férias para a invasão do Papiu ocorrer massivamente. Dali, os garimpeiros se espalharam rapidamente e abriram novas pistas clandestinas.

Com a reação internacional, o governo tomou providências controversas: em vez de retirar os garimpeiros, retirou os informantes, expulsando equipes de saúde e interlocutores dos Yanomami, alegando que esses agentes estariam a  serviço de interesses internacionais, sendo que vinham deles as denúncias da invasão. 

 

Para acalmar as críticas da sociedade organizada, o governo “demarcou” a Terra Indígena Yanomami num entremeado de 19 ilhas, que não correspondia ao conjunto do território, e criou, nos interstícios dessas 19 áreas, duas florestas nacionais, unidades de conservação ambiental de uso direto (que podem ser exploradas); e, naquele momento, decretou três “reservas garimpeiras,” estatuto inexistente até então. Tais medidas administrativas evidenciam o projeto político que as produzem, apoiando-se na inexorabilidade da invasão garimpeira como fato consumado.

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Figura 3: Terra Indígena Yanomami e a “demarcação em 19 áreas indígenas” pela portaria 250/1988, pelo governo Sarney.

Após a ditadura, a primeira eleição direta para presidente resultou em uma troca de governo, dando condições para a sociedade civil organizada ser contemplada em seus anseios de garantir os direitos indígenas. Assim, em 23 de maio de 1992, foi homologada, de forma contínua, a Terra Indígena Yanomami, com seus 9.664.975 hectares. Com isso, medidas repressivas ao garimpo se tornaram vigentes, como a destruição de pistas de pouso, a repressão ao tráfego aéreo ilegal, dentre outros. Aliás, é incrível que tenhamos comemorado (?) os trinta anos da homologação em plena nova crise humanitária, com potencial de levar esse povo ao risco de extinção. 

 

Após a demarcação, ainda permaneceram hordas de garimpeiros pelo território, mas já não eram majoritárias; evidência disso se dá um ano mais tarde, com o episódio do Massacre de Hwaximu (Albert, 1993 [2001]), em que um grupo de garimpeiros assassinou friamente 16 Yanomami, pois os outros habitantes dessa comunidade não estavam presentes no momento em que decidiram atacar. Os sobreviventes se direcionaram para a região do Toototopi, para ali contarem o que havia acontecido. Um inquérito bem realizado levou à condenação posterior de seus executores por genocídio (Mariz-Maia, 2001). Foi a partir desse processo que se iniciaram os esforços para um programa de saúde que erradicasse a malária e outras morbidades, culminando na Lei Arouca (no 8366/1999).


Dentre os anos de 2000 e 2008, morei próximo aos Yanomami, em Boa Vista. Inicialmente, assessorando a organização Urihi - Saúde Yanomami [2] e, depois, trabalhei na extinta Comissão Pró-Yanomami (CCPY) também assessorando o Programa de Educação Yanomami. Meu trabalho era essencialmente na floresta, acompanhando escolas Yanomami, principalmente nas regiões do Toototopi e do Homoxi, entremeado com cursos de formação, que muitas vezes aconteciam na cidade ou próximo dela. Testemunhei um período de paz, com poucas ocorrências de garimpo dentro da Terra Indígena Yanomami, se comparados aos estragos da floresta resultantes das duas ondas garimpeiras.

Esse período, ilustrado no gráfico acima, garantiu um crescimento populacional em função do fim das endemias - malária, principalmente - reduzindo a mortalidade geral e infantil. Com base na presença do corpo de saúde em cada região, que denominamos aqui de “assistência permanente”, era preciso transcender a atenção à saúde com base em ações pontuais que ocorriam antes. A implantação desse subsistema de saúde foi inspirada na ação da principal ONG atuante na consolidação dos direitos indígenas, que buscava soluções para os Yanomami em forma de programas piloto, sobretudo com base no trabalho da Comissão Pró-Yanomami (CCPY), responsável pela maior campanha em prol dos Yanomami, que agrega uma rede fantástica de apoiadores em torno de si.

 

O programa de saúde estabelecido após a demarcação, atingindo algumas das comunidades relacionadas a Davi Kopenawa, serviu para se pensar um programa em toda a Terra Indígena Yanomami, envolvendo preocupações como ações educativas e formativas, para que os Yanomami participassem e executassem ações do programa de saúde. Foi nessa conformação que resultou a formação de microscopistas e inspirou a criação de agentes de saúde, hoje, previsto como parte integrante das ações de saúde.

 

Após a demarcação, estabeleceram-se postos de saúde dotados de condições para a estadia dos profissionais, com placas solares, captação de água e instalações adequadas. A Urihi - Saúde Yanomami, organização responsável por atender 56% da população Yanomami, construiu parte desses postos, inclusive o do Homoxi, aquele que foi queimado pelos garimpeiros no ano de 2022. Localizado numa das regiões mais afetadas pelas duas invasões garimpeiras, o Homoxi tinha as marcas dessas invasões, tendo boa parte de seus solos formados por cascalhos e entremeados por lagoas. 

Figuras 4 e 5: Fotos do Homoxi em 2002 e em 2022. Por William Milliken e Estevão Senra/IS, respectivamente.

Nesse cenário, cuidar da saúde dos 360 Yanomami que existiam ali passava por pensar o problema ambiental decorrente do garimpo. Com isso, os Yanomami se encarregaram em resolver, para si, o problema, mudando-se para outras regiões próximas, muitas vezes ultrapassando a fronteira nacional para construir suas casas e roças. Mas a presença do posto de saúde no Brasil lhes garantiu presença no lado brasileiro. Assim, o grupo de Yanomami que era da região do Homoxi havia se recuperado e crescido depois dos tempos de dependência do garimpo, em que se tornaram cada vez mais enfraquecidos. 

 

É importante destacar que o acesso à saúde é uma questão de direito para os povos indígenas, como para toda a população brasileira. A maior complexidade é que a saúde indígena requer recursos maiores, criando cobiça em controlar fatias dessa fortuna. Recentemente, o processo de apropriação dos serviços públicos por prestadoras sob domínio de uma dada elite roraimense resultou em um não cumprimento desses serviços, cuja consequência se reflete nos números recentemente divulgados de óbitos infantis, mas demonstra especialmente o duplo ataque a que está submetido o povo Yanomami, principalmente nas regiões das serras e de Roraima, com o garimpo lhes tomando a terra floresta urihi e destituindo-os de saúde, dada a sonegação de recursos, planejamento e manutenção de infra-estrutura que isso representa. Dessa forma, ocupam a Terra Indígena Yanomami e destituem os Yanomami dos serviços que eles têm direito.

 

O antropólogo Bruce Albert (1985) descreveu como se dá a dinâmica da relação com o garimpo: num primeiro momento, garimpeiros, em minoria, precisam conseguir apoio no meio Yanomami. Para isso, são bonzinhos, dão refeições, se fazem de amigos. Ao longo do tempo, eles já são maioria e não precisam mais dos Yanomami, que se tornam incômodos pedintes, relação não mais necessária. É aí que começa o recrudescimento da violência, podendo, os garimpeiros, planejarem eliminar os indígenas, como foi o caso do Massacre de Hwaximu. 

 

Hwaximu é uma região contínua com o Homoxi, que tem relações com os grupos do Yaritha, nativos do Brasil (os Homoxi u Theripë, a gente do Homoxi). Além do grupo do Yaritha, há mais um grupo cindido por vários motivos, inclusive no que diz respeito às atividades garimpeiras. O grupo das regiões do Thirei e Xereu também possuem pousos - habitações e roças - na Venezuela. Até 2006, época em que me mudei de lá, esses grupos estavam imunes ao garimpo, mas o grupo do posto manteve uma certa posição de aproximação ao mundo napë, seja o do garimpo, seja o da equipe de saúde, que prevaleceu por mais tempo entre os Yanomami. 

 

A respeito do posto, Bruce Albert, em sua tese de doutorado (1985), cunhou o conceito de “vacina de contato” ou “vacina etnográfica”, numa analogia com a imunidade adquirida por uma vacina biológica. Assim como a vacina é feita de doses atenuadas do mesmo elemento causador etiológico da doença, para que o organismo e seu sistema imunológico reconheçam o corpo estranho, a presença de poucos napë (não indígenas) em ‘dose homeopática’, auxiliaria os Yanomami a conhecer o outro e adquirir alguma defesa enquanto são maioria [3]. Desse modo, o chamado “posto de contato”, seja ele uma missão ou uma agência de Estado, como saúde, Funai, etc, exerce uma relação intercultural entre Yanomami e napë (não indígenas). Os Yanomami aceitam a relação à sua forma, cientes de se tratar de um outro, um ente diferente deles. 

 

Pensar o posto de contato dessa forma permite reconhecer como os Yanomami precisam se organizar para enfrentar a violência que os avizinha, que precisam saber sobre esse outro para poder lidar com ele. O tempo de paz vivenciado pelos Yanomami do Homoxi lhes permitiu um 

crescimento populacional e um mínimo de compreensão de aspectos importantes quanto a nós (não indígenas). Para além desses resultados, os Yanomami identificaram a importância de terem uma certa independência sobre sua saúde e também a necessidade da manutenção de sua autonomia e de sua soberania alimentar, ao perceberem que o garimpo oferece alimentos de forma chantagista e, com isso, destrói as condições sanitárias e ambientais para os Yanomami obterem seus próprios alimentos.

 

Em 2006, em um momento de crise na saúde, observamos que os Yanomami demonstraram que não precisariam mais procurar o posto de saúde com queimaduras, pois mostraram um tratamento com base de substâncias extraídas de plantas, como a Vismia sp, uma planta comum nas regenerações da Amazônia, que solta uma resina (‘visgo’) que tem efeito regenerativo conhecido. Também mostraram outros remédios e foram claros em dizer que não dependeriam da assistência à saúde por essas razões, mas sabiam que a ausência de equipes de saúde era preocupante, principalmente para as afecções respiratórias agudas, as quais os remédios alopáticos eram eficientes. 

 

Os postos de contato funcionam num conceito de assistência permanente, em que o servidor é incentivado a estar com os Yanomami, a visitar e pernoitar nas residências circulares desse povo, junto a eles ou até no mato, em naanahi (pequenas cobertas para as temporadas de mata). Pude testemunhar que a presença dos postos de contato contribuía para o crescimento da população e seu desenvolvimento como povo, ajudando também a conhecer esse outro enquanto ele ainda é minoria e reconhecer, nessa relação, os riscos inerentes; mas isso, claro, não é tarefa fácil. 

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Figura 6: Residência circular. Foto: Maurice Nilsson

Um exemplo negativo dessa relação foi o mau uso das cumplicidades alcançadas. No início de 2022, um dos últimos lugares livres de garimpo, nas cabeceiras do rio Parima, teve membros convencidos por um ex-funcionário da saúde, com quem criaram laços de amizade. Ele utilizou tal cumplicidade para convencer os Yanomami de que poderia beneficiá-los novamente, como no tempo da assistência à saúde. Felizmente, nesse caso, teve a resistência das comunidades vizinhas, que não aderiram e acabou sendo uma experiência breve. 

 

A experiência da Urihi - Saúde Yanomami além dos bons resultados em saúde, contou com a formação de agentes de saúde e de escola, voltada a alfabetizar os futuros agentes de saúde e preparar as comunidades a compreenderem o universo da linguagem escrita, o que reforçou a compreensão da experiência intercultural e trouxe, ao horizonte desse povo, a possibilidade de uma interlocução saudável. Hoje, está na memória de quem viveu a experiência da assistência permanente à saúde uma imagem positiva, de um trabalho sério que foi realizado pela Urihi - Saúde Yanomami.

 

O preparo dos Yanomami, resultado do nosso trabalho, é insuficiente para impedir a violência garimpeira na atual invasão. Sabemos que muita gente no Homoxi teve uma postura aguerrida diante da invasão, mas a assimetria é nítida e não há como resistir a tamanha presença garimpeira. Nesse contexto, o posto foi dominado e impedido de funcionar e não houve nenhuma ação do Estado Nacional para defender seu patrimônio. 

 

Esse é o panorama de hoje, resultado de uma voluntária omissão, com o último governo federal tendo sabotado qualquer tentativa de cumprimento da lei. Vale lembrar que Bruno Pereira foi exonerado ao voltar de uma missão de combate ao garimpo na Terra Indígena Yanomami, ainda em 2019. Tudo isso é o resultado, igualmente noticiado, de uma tragédia humanitária para os Yanomami. A negligência, por parte do governo federal até 2022, foi documentada em diversos órgãos de imprensa [4].

 

Em fevereiro de 2023, a região do Homoxi ainda está tomada pelo garimpo, como boa parte das serras na TIY. O que foi possível apurar foram episódios de violência e perda de vidas por armas de fogo, recentemente registradas em duas regiões, a do Homoxi e a do Rahakapoko, mas que não dão a dimensão completa da tragédia, pois a desintrusão, na maior parte dos garimpos em região de serras ainda não foi completada, tornando-se um risco para a presença de equipes de socorro. 

 

Em outubro de 2022, contabilizamos 12 óbitos por armas de fogo na região do Xitei, vizinho ao Homoxi e cabeceira do Rio Parima, porém, é muito difícil a sistematização de dados esparsos que permitam dar uma noção da envergadura do evento. Há ainda a dificuldade adicional de que os Yanomami não falam o nome dos seus mortos, tendo em vista que relutam em lembrar a perda de um ente querido e o trauma desses acontecimentos. Quem conhece o modo de vida dos Yanomami sabe que o único momento em que contam sobre um morto é no reahu (Albert, 1985: 382-568), a cerimônia maior de ritual funerário, ocasião em que dão fim às cinzas do morto ingerindo-as com mingau de banana (koraha u). Essa característica cultural dificultará, inclusive, pesquisas futuras sobre  os atuais acontecimentos.

Termino deixando apontamentos necessários que esse texto leva à conclusão. Para não repetir uma terceira tentativa de genocídio, os registros; investigações; responsabilização criminal e condenações massivas dos participantes devem servir de exemplo para que novas tentativas sejam consideradas o que são: crimes.

 

Para além disso, minha experiência etnográfica com os Yanomami, e também com os servidores da saúde, recomenda fortemente um sistema de atenção permanente aos indígenas Yanomami, com postos fixos e caminhadas junto a eles, para onde eles estiverem. Outro aspecto importante desse programa de saúde é o de envolver a população local, os Yanomami, no processo de atenção à saúde, partindo da formação e treinamento de agentes comunitários de saúde. Hoje, esses agentes já são reconhecidos pela legislação como componentes do sistema de saúde, mas, à época, isso era um desafio, o de formar os Yanomami em funções necessárias para exercer a atenção à saúde. 

 

Outro ponto importante é o controle social exercido pelos próprios Yanomami, que fiscalizavam e acompanhavam o trabalho de atenção primária. Esse foi o legado da Urihi - Saúde Yanomami e outros convênios de saúde que foram realizados com a promulgação da Lei Arouca. Ocorre que, no momento atual, tal prática de assistência permanente deve ser feita dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), com a renovação de recursos humanos dentro da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s). 

 

Para finalizar, afirmo que a presença de um trabalho de saúde efetivo deixou para os Yanomami a experiência de que é possível “pacificar os brancos” e fazer com que a presença deles em TIY não seja destrutiva, além de possibilitar um co-desenvolvimento que permite a eles questionar (e também a nós) a inexorabilidade da extinção dos Yanomami para dar lugar à exploração econômica. Desse modo, o trabalho de saúde efetivo acaba por significar um modelo, um exemplo de atenção à saúde e aos cuidados com os Yanomami, tal como eles devem ser praticados. 

NOTAS

 

[1]   A Lei Arouca é uma Lei que regulamenta o subsistema de atenção à saúde Indígena; faculta a contratação de organizações da Sociedade Civil, para desenvolvimento de ações complementares em saúde Indígena, resultando no estabelecimento de convênios com entidades que tinham experiência com as especificidades da saúde indígena.

[2] A Urihi - Saúde Yanomami está hoje extinta, e não é a mesma que a “Urihi - Associação Yanomami”, organização indígena protagonizada por Junior Hekurari, atual presidente do Conselho Distrital de Saúde (Condisi) Yanomami. Foi esta segunda quem fez a denúncia da desnutrição Yanomami nas serras; a organização de saúde vem sendo peremptoriamente perseguida, sendo cobrada a ressarcir os cofres públicos pelo TCU, mesmo tendo sido arquivados os processos judiciais, sem comprovar nenhuma das denúncias arroladas. Isso reforça o incômodo de um trabalho de saúde bem feito para os defensores do garimpo.

[3]  Diz Bruce Albert (1985:88) nesse trecho de sua tese: “Missões e postos indígenas de contato tem sido, dentro do contexto específico que nós tratamos, descrito como uma espécie de “vacina de contato” e fornecem aos Yanomami uma experiência da sociedade nacional menos mortal e etnocida que a que eles teriam de enfrentar se travadas constantemente às formas de violência e de exploração brutais impostas por uma frente pioneira regional limítrofe unicamente guiada pelos apetites econômicos desenfreados. Essa experiência de um “contato atenuado” tem dado a oportunidade de uma número de comunidades de fazer (em vez de serem dizimadas ou desmanteladas) uma aprendizagem do “mundo branco” que lhe é indispensável para sobreviver e lutar eficazmente contra o avanço agressivo e inelutável de uma sociedade regional marcada pela exuberância das riquezas minerais de seu território” (tradução livre do Autor)

{4}  Informo aqui alguns exemplos, para não ser exaustivo: https://theintercept.com/2023/03/01/documentos-contradizem-versao-de-ministro-da-defesa-de-bolsonaro-para-negar-apoio-aos-yanomami/fbclid=IwAR2vjjsKc5H9E62pi5a_FiA55ewAYwIUaJGwmdQpF7WdIrGN7A51asegKpw

https://www.brasildefato.com.br/2023/01/23/damares-pediu-que-bolsonaro-vetasse-leitos-de-uti-e-agua-potavel-para-indigenas-na-pandemia

https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2022-06-08/bruno-pereira-foi-exonerado-da-funai-apos-operacao-contra-garimpeiros.html

PARA SABER MAIS

 

ALBERT, B. Temps du sang, temps des cendres: representation de la maladie, système rituel e espace politique  chez les Yanomami des Sud-est (Amazonnie Brasilienne). (doctoral thesis). Nanterre Paris X Nanterre Paris, France, 1985. 800 p. p.

 

______. Terra Yanomami e Florestas Nacionais no Projeto Calha Norte: Uma expropriação “Ecológica” In: C. A. RICARDO (Ed.). Povos Indigenas do Brasil 1986-90. São Paulo SP: CEDI v.16, 1991. Aconteceu Especial, p.166-169.

 

______. O massacre de Haximu. Folha de São Paulo. São Paulo. 03/10/1993 2001[1993].

 

ALBERT, B. e F. M. LE TOURNEAU. Homoxi: ruée vers l'or chez les indiens Yanomami du haut Rio Mucajaí. Autrepart, v.34, n.2, p.184. 2005.

 

Hutukara Associação Yanomami. Yanomami sob ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combate-lo; relatório de 2021. Disponível em: <https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/yanomami-sob-ataque-garimpo-ilegal-na-terra-indigena-yanomami-e-propostas-para>. Acesso em 2 mar. 2023.

 

MARIZ-MAIA, L. Hwaximu: Foi genocídio! Comissão Pró Yanomami -CCPY. Brasília. 2001

O AUTOR

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Maurice Seiji Tomioka Nilsson é geógrafo, indigenista, doutor em Humanidades e mestre em Ecologia. Trabalhou oito anos com os Yanomami.

E-mail: mauricetomioka@gmail.com

COMO CITAR ESSE TEXTO

NILSSON, Maurice Seiji Tomioka. Crise Yanomami: para não haver terceira vez. (Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. nº 20. Publicado em 16 mar. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n20-crise-yanomami-para-nao-haver-terceira-vez-maurice-seiji-tamioka>. ISSN 2179-1287.

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