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nº 13 | 15 de dezembro de 2023

VILLA COLETIVA
Cultura, História e Acessibilidade

O Arquivo Josué de Castro na Fundação Joaquim Nabuco

Rita de Cássia de Araújo 

Transcorria o ano de 1973. A tensão política na América Latina intensificava-se. Diversos países encontravam-se sob o jugo das ditaduras civis-militares, inclusive o Brasil, o mais populoso e territorialmente vasto entre eles. No Cone Sul, vigorava o autoritarismo de Estado, em que a cassação de direitos políticos, o sequestro, a prisão, a tortura e a morte dos que se opunham aos governos tornaram-se práticas correntes e descaradas. Coetâneos à Guerra Fria e à Revolução Cubana, esses regimes aliaram-se aos Estados Unidos na luta contra o comunismo, as forças e instituições democráticas, os movimentos sociais, a imprensa independente e os intelectuais de pensamento crítico e de esquerda, promovendo o ingresso do capital internacional em seus territórios, do qual suas economias passaram a depender quase integralmente.

 

Naquele ano, a 11 de setembro, foi perpetrado um golpe de Estado contra o presidente do Chile, democraticamente eleito em 1970, o socialista Salvador Allende, horas depois encontrado morto. Do outro lado do Atlântico, exilado em Paris, um atônito e abatido Josué de Castro assistia, pela televisão, ao palácio presidencial La Moneda ardendo em chamas. 12 dias depois, a 23 de setembro, o Chile perdia o seu poeta maior, o também embaixador e senador esquerdista Pablo Neruda. 

Faltavam poucos meses para que os primeiros exilados brasileiros, banidos pelo Ato Institucional nº 1, instituído em 9 de abril de 1964, estivessem legalmente autorizados a retornar ao país – Josué de Castro dentre eles. Em uma cinzenta tarde em Paris, acometido por forte crise de depressão, Josué de Castro havia dito a um amigo, em tom que se mostraria antecipatório semanas depois: “Não se morre só de enfarte, ou de glomero-nefrite-crônica. Morre-se também de saudade”[1].

 

E assim se cumpriu: a 24 de setembro de 1973, morria, no exílio, de saudade e de enfarte, de sede de justiça e de fome de Brasil, aquele que revelara ao mundo o drama universal da fome: o médico, geógrafo, professor universitário, político e diplomata pernambucano, Josué de Castro[2]. 

Trasladado o corpo da capital francesa, seu funeral foi realizado no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, em 30 de setembro, sob controle e cerrada vigilância das forças repressivas, constituindo mais uma manifestação de violência simbólica contra Josué de Castro e contra tudo o que sua pessoa e obra intelectual e política representava. Pretenderam banalizar sua morte; apequenar a sua figura de intelectual e homem público devotado às causas sociais e condená-lo ao eterno esquecimento; seus familiares não puderam falar à imprensa e não houve permissão para que se fizessem registros fotográficos da cerimônia. Afinal, não podiam admitir-lhe uma morte gloriosa e memorável.

 

A despeito disso, um repórter fotográfico de O Jornal conseguiu romper o cerco e registrar umas poucas passagens do ritual fúnebre, inclusive a cena de um emocionado e indignado Barbosa Lima Sobrinho[3], rendendo uma última homenagem àquele que tanto combateu a fome e lutou por estabelecer a paz no mundo[4]. Em ato obsceno final, quatro dias adiante, as autoridades militares noticiavam à enlutada família Castro que a renovação do passaporte, que se lhe havia sido peremptoriamente negada e que lhe restituiria a cidadania brasileira e, quiçá, a vontade de resistir, lutar e viver, fora, enfim, concedida. Tarde... demasiada, fria e calculadamente tarde.[5]

     

Josué de Castro, que se autodefinia como “um homem de esquerda, mas avesso a qualquer ditadura”[6] , ameaçava e incomodava aqueles que naturalizavam a fome e a miséria e que, por conveniência e apego às ideias hegemônicas de seu tempo, concebiam-nas como uma fatalidade de clima ou de raça. Ao pronunciar improvisado necrológio no cemitério São João Batista, Barbosa Lima Sobrinho sentenciava:“O país infelizmente não tem condições de manter um homem de sua cultura”[7].

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Retrato de Josué de Castro. Paris, c. 1950. Autor não identificado. Arquivo Josué de Castro - Acervo Fundação Joaquim Nabuco.

O arquivo privado Josué de Castro: a paciente construção de um legado

Desterrado e silenciado nos últimos anos de sua vida, quiseram condená-lo a uma segunda morte: a morte simbólica, executada por meio do apagamento de sua memória. Se as forças conservadoras não lograram pleno êxito em seu intento, parte disso se deve ao minucioso e pachorrento trabalho da família Castro, principalmente da sua esposa, Glauce do Rego de Castro, de reunir, organizar e acumular, por mais de 40 anos, alentada documentação atinente à sua vida pessoal, principalmente, à sua produção intelectual e à sua trajetória de homem público e de ciência, com projeção nacional e internacional. Minucioso trabalho de formação, organização e conservação de um acervo privado a ser legado ao futuro.

  

Havendo permanecido circunscrito à esfera privada desde sua morte, sob os cuidados da família, em 28 de julho de 1987, por doação dos herdeiros diretos, o arquivo passou às mãos do Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro. Fundado no Recife em 1979, o Centro, entidade de direito privado, sem fins lucrativos, reunia pesquisadores e professores de universidades e outras instituições científicas interessados em contribuir com a construção e o fortalecimento da democracia e da cidadania, bem como dedicados em ativar a construção de memórias em torno daquele que dava nome à nova instituição. 

Nos primeiros anos do presente século, o Centro Josué de Castro deparou-se com sérias dificuldades para gerir tão relevante documentação. Desse modo, malgrado o zelo e o cuidado devotados ao acervo por essa instituição, em cumprimento às cláusulas contratuais, o acervo retornou à família. Logo em seguida, em dezembro de 2011, após acordo entre as partes, o Arquivo Josué de Castro foi doado, pelos herdeiros diretos, à Fundação Joaquim Nabuco, órgão público federal vinculado ao Ministério da Educação, também sediado na capital pernambucana.

 

Restituído à esfera pública, o legado documental de Josué de Castro readquire a dimensão social na qual se originou e na qual encontra sua mais ampla função, além de  seu mais pleno uso e sentido. Atualmente, encontra-se preservado e acessível à consulta no Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira Rodrigo Mello Franco de Andrade (Cehibra), localizado no Campus da Fundaj, no bairro de Apipucos.

 

O arquivo, cuja documentação situa-se basicamente entre 1928 e 1973, é formado por uma miríade de documentos, entre bibliográficos, textuais e iconográficos: livros de sua autoria e de terceiros, inclusive obras raras, folhetos e periódicos; documentos pessoais; correspondências expedidas e recebidas; recortes de jornais; produção intelectual; fotografias e gravuras. No total, somam mais de 30 mil itens documentais. No entanto, esse quantitativo está propenso a sofrer considerável alteração, uma vez que o conjunto ainda aguarda a catalogação por parte da equipe técnica do Cehibra.   

 

As correspondências ativas e passivas são particularmente indicativas das redes de relações intelectuais, políticas e sociais, de âmbito nacional e internacional, integradas pelo autor do clássico Geopolítica da fome. À guisa de exemplo, participavam desse influente circuito de relações Albert Einstein; John Kennedy; Bertrand Russell; Padre Lebret; Abbé Pierre; Rossellini; Sartre; Pearl Buck; J. D. Bernal; Eve Balfour; Pierre Deffontaines; Pedro Escudero; Roger Bastides; Alfred Sauvy; Getúlio Vargas; Miguel Arraes; Celso Furtado e Francisco Julião.

 

Destacam-se também os itens documentais que registram sua produção intelectual, em que figuram originais de artigos, anotações e apontamentos do “cidadão do mundo”, Josué de Castro; bem como os milhares de recortes de jornais organizados por Glauce de Castro, contendo artigos de sua autoria e notícias que lhe diziam respeito direta e indiretamente.    

  

O arquivo privado de Josué de Castro inscreve-se no âmbito do que Jeanine Ribeiro (1998) chamou de “memória de si” ou “coleção de si”, que corresponde àquela “que visa guardar a melhor recordação de si próprio”, e que, ademais, expressa o “desejo de perpetuar-se, mas, mais que isso, o de constituir a própria identidade pelos tempos adiante, responde ao anseio de forjar uma glória”. Um tipo de pulsão que vamos encontrar em Joaquim Nabuco e, antes dele, no seu pai, o senador Nabuco.

[...] meu pai, o terceiro senador Nabuco, tinha o costume desde jovem de guardar tudo que lhe dizia respeito, as cartas e papéis por ele recebidos e a cópia da correspondência que expedia; mais tarde, para os seus trabalhos do ministério, do Senado, do Conselho de Estado, da advocacia, foi formando o que ele chamava pecúlios [...] (NABUCO, 1997, v. 1, p. 31). 

A “coleção de si” se diferencia das simples coleções, entendidas como aquelas “menos egoístas, marcadas mais pelo gesto mesmo e puro do entesouramento que pelo papel que este possa exercer na perpetuação de uma identidade gloriosa”[8]. A importância dessas últimas coleções enquanto fonte de pesquisa, reconhecida e valorizada pela nova historiografia advinda com os Annales, estaria no valor testemunhal e na diversidade das informações contidas e passíveis de serem extraídas dos documentos, a depender da capacidade do pesquisador de com eles dialogar[9]. 

 

Os arquivos privados pessoais possuem diversas outras especificidades, dentre as quais a capacidade de enredar o pesquisador nas malhas da sedução; de encantá-lo com a beleza da escrita, a demonstração de inteligência do produtor/colecionador ou qualquer outro traço de personalidade que se evidencia, que se deixa sub-repticiamente escapar por entre as frestas das imagens e dos papéis.

 

A consulta e a familiaridade com os documentos pessoais podem criar certo sentimento de proximidade e mesmo de intimidade entre o pesquisador e o sujeito pesquisado, arrastando o incauto leitor a destinos indesejados ou fazendo brotar aquilo que Castro Gomes (1998), referindo-se a Mário de Andrade, chamou de “ilusão de verdade”: aquela em que o pesquisador pensa haver tocado a mais pura verdade e autenticidade guardada nos documentos.

 

Para escapar ao risco, o investigador deve ter em mente que o produtor ou formador do acervo estaria, consciente ou inconscientemente, construindo uma imagem de si e uma autoimagem para si e para os outros, a qual desejaria ver reconhecida e perenizada. Essa impressão é válida tanto para Mário de Andrade como para Josué de Castro. 

Josué de Castro em sua biblioteca particular, c. 1950. Autor não identificado. Arquivo Josué de Castro - Arquivo Josué de Castro – Acervo Fundação Joaquim Nabuco.

O pensamento social de Josué de Castro: aproximações 

Nascido no Recife, a 5 de setembro de 1908, Josué Apolônio de Castro tomou contato com o fenômeno da fome ainda criança, escutando as histórias narradas por seu pai, um dos milhares de retirantes Severinos[10], banidos dos sertões nordestinos pela terrível seca de 1877, para os quais a capital pernambucana reluzia como miragem. Mas foi nos alagados do Recife, nos colchões de lama próximos à sua residência, no bairro da Madalena, que visualizou, pela primeira vez, a face monstruosa da fome e da miséria. Homens, mulheres e “crianças caranguejos”, “seres anfíbios” – diria em seu único romance, Homens e caranguejos –, “Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam irmãos de leite de caranguejos”.[11]

E, foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um problema exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíam os homens famintos do Nordeste inteiro: os da zona seca e os da zona da cana. Todos atraídos por esta terra de promissão, vindo se aninhar naquele ninho de lama, construídos pelos rios e onde brota o maravilhoso ciclo do caranguejo (CASTRO, 1967, p. 24).

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Catadores de caranguejos. Edmond Dansot, Recife, c. 1960. Coleção Edmond Dansot. Acervo Fundação Joaquim Nabuco.

Só depois, instrumentalizado pelas pesquisas de campo e capacitado pelo conhecimento científico acumulado, assim como pelo entendimento das engrenagens que movem o mundo capitalista, veio a compreender que a fome não era exclusiva do mangue ou dos áridos sertões do Nordeste. Era um flagelo sem pátria, que se estendia por todos os quadrantes do globo, cuja solução exigia esforços e vontade política de toda a comunidade internacional, sobretudo dos países desenvolvidos. E mais: a fome não era determinada por fatores climáticos ou raciais, era um fenômeno econômico e social, sendo, portanto, passível de solução por meio da política. 

Foi no Nordeste – nas zonas dos mocambos do Recife e nos chapadões desérticos dos sertões – que descobrimos com angústia o drama da fome. E não só da fome do Nordeste, mas da fome universal (CASTRO, 1959, p. 8). 

 

A fome não é um fenômeno natural e sim um produto artificial de conjunturas econômicas defeituosas: um produto de criação humana e, portanto, capaz de ser eliminado pela vontade criadora do homem (CASTRO, 1960, p. 26). 

Entre meados dos anos 1930 e início da década de 1970, a obra de Josué de Castro pautou os debates nacionais e internacionais sobre a fome. No percalço de suas investigações e estudos sobre o tema, concebido como um fenômeno social, político e econômico, vieram diversos outros assuntos que constituíam preocupações centrais para a humanidade, sobretudo para o mundo Ocidental: democracia; desigualdade social; formas de propriedade da terra e reforma agrária; Terceiro Mundo; relação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos; ecologia; educação transformadora, dentre outros.

 

Seu vigoroso pensamento social ficou registrado em obras clássicas, algumas de repercussão internacional, dentre elas, Alimentação e raça (1936), Documentário do Nordeste (1937), Geografia da fome (1947); Fatores de localização da cidade do Recife (1947), Geopolítica da fome (1951), Sete palmos de terra e um caixão: ensaio sobre o Nordeste (1965), Homens e caranguejos (1967), A explosão demográfica e a fome no mundo (1968), Estratégia do desenvolvimento (1971).

Em 1932, Josué de Castro realizou, no Recife, o primeiro inquérito social sobre as condições de vida da classe trabalhadora brasileira. O resultado da pesquisa foi publicado em 1935, no Anuário de Pernambuco, com o título de As condições de vida da classe operária no Recife: estudo econômico da sua alimentação. Nesse mesmo ano, ganhou edição da Diretoria de Estatística, do Ministério do Trabalho, tendo o título sofrido ligeira alteração: As condições de vida das classes operárias do Recife. Em 2015, a Fundação Joaquim Nabuco editou o estudo em formato de opúsculo[12], em evento realizado para marcar a passagem dos 80 anos de publicação dessa investigação seminal sobre a fome, na qual dizia:

Comecei, também, a trabalhar numa grande fábrica e a verificar que os doentes não tinham uma doença definida, mas não podiam trabalhar. Eram acusados de preguiça. No fim de algum tempo, compreendi o que se passava com os enfermos. Disse aos patrões: sei o que meus clientes têm. Mas não posso curá-los porque sou médico e não diretor daqui. A doença desta gente... é fome’. Pediram que eu me demitisse. Saí. Compreendi, então, que o problema era social. Não era só do mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente. Era um problema mundial, um drama universal” (CASTRO apud MELO; WANDERLEY, 2007, p. 42-43). 

Desse inquérito pioneiro, desenvolvido pelo então jovem médico pernambucano, derivaram outras pesquisas sob sua coordenação, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras localidades do país. Seus estudos constituíram as bases técnicas a partir das quais foi elaborada a proposta de criação do salário mínimo para o trabalhador urbano, o qual veio a ser instituído por lei durante o governo de Getúlio Vargas, em 1940.

  

O espaço territorial da atual Região Nordeste do Brasil permaneceu como o principal referencial empírico das pesquisas realizadas por Josué de Castro, cujos estudos, ainda no princípio dos anos 1930, romperam com o paradigma hegemônico segundo o qual a fome tinha por base o determinismo geográfico ou biológico. Dessa forma, o pensamento de Josué de Castro confrontava-se com as teorias raciais e o pensamento higienista predominantes no Brasil desde a segunda metade do século XIX até aquela década. Para ele, a fome tinha causas econômicas e sociais. Por isso,  a solução do problema passava por decisões políticas. 

Se a maioria dos mulatos se compõe de seres estiolados, com deficit mental e incapacidade física não é por efeito duma tara social, é por causa do estômago vazio. Não é mal de raça, é mal de fome. É a alimentação insuficiente que não lhe permite um desenvolvimento completo e um funcionamento normal. Não é a máquina que seja de ruim qualidade; e se o seu trabalho rende pouco, ele estanca e para a cada passo e se despedaça cedo, é por falta de combustível suficiente e adequado (CASTRO apud ANUÁRIO DE PERNAMBUCO, 1935, [s.p.]). 

Além de homem científico, Josué de Castro destacou-se pela pluralidade de ações como gestor à frente de organismos nacionais e internacionais, dentre os quais, no Brasil, a fundação do Instituto de Nutrição da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1946, do qual foi o primeiro diretor; e a implantação do Serviço de Alimentação e de Previdência Social (SAPS), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho do Brasil, em 1947.

 

No campo político-partidário, com o intuito de desenvolver uma ação mais pragmática com vistas à transformação das arcaicas estruturas econômicas, sociais e de poder vigentes no país, sobretudo na Região Nordeste, exerceu mandato de deputado federal por Pernambuco em 1954 e 1958, como integrante da bancada do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Na última legislatura, apresentou o Projeto de Lei nº 11, de 19 de 1959, no qual propunha a execução de uma reforma agrária no Brasil.

Com este Projeto, que define os casos de desapropriação por interesse social, visamos a tornar exequível no país a implantação de uma reforma das estruturas agrárias, tornando-as mais adequadas e consentâneas com a evolução econômico-social brasileira. [...]Há consenso acerca do arcaísmo das estruturas agrárias existentes pelo menos em certas regiões do país as quais entravam de maneira significativa as forças produtivas da zona rural, agravando o desnível entre áreas industriais e as agrícolas. [...] Urge, pois, modificar essas estruturas através de uma reforma técnica e racionalmente concebida. Esta reforma deve ser planejada como um processo de revisão das relações jurídicas e econômicas entre os que detêm a propriedade rural e os que nela trabalham (CASTRO apud PROJETO DE LEI Nº 11, 1959).

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Josué de Castro e Francisco Julião, candidatos pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) a deputado federal e estadual respectivamente. Campanha eleitoral para a legislatura de 1954 ou 1958. Autor não identificado. 

 Arquivo Josué de Castro – Acervo Fundação Joaquim Nabuco.

Em sua consagrada carreira internacional, assumiu cargos de relevo e prestígio, estando à frente de importantes iniciativas que ambicionavam transformar a realidade social, pôr fim às desigualdades econômicas e sociais e fortalecer a democracia. Josué de Castro também foi membro do Conselho Consultivo Permanente de Nutrição, da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 1947; presidente do Conselho Executivo da FAO em 1952-1956; fundador e presidente da Associação Mundial contra a Fome (Ascofam) em 1957; embaixador brasileiro na Conferência Internacional de Desarmamento, na Suíça, em 1962; presidente do Comitê Mundial por uma Constituição dos Povos e vice-presidente da Associação Parlamentar Mundial. Recebeu prêmios, títulos e honrarias de universidades e instituições científicas nacionais e estrangeiras, dentre os quais o Prêmio Franklin Delano Roosevelt (1952), e o Prêmio Internacional da Paz, em 1955.

 

Na condição de exilado político na França, lecionou no Centro Universitário Experimental de Vincennes e presidiu o Centro Internacional de Desenvolvimento (CID), organismo que tinha por finalidade promover o desenvolvimento econômico e social equilibrado nos países do Terceiro Mundo.    

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Josué de Castro assume a presidência do Conselho Executivo da FAO 1952-1956. Roma, 1952. Autor não identificado. Arquivo Josué de Castro – Acervo Fundação Joaquim Nabuco.

O “cidadão do mundo”, Josué de Castro, tinha uma compreensão dialética acerca da relação entre países desenvolvidos e países do Terceiro Mundo. Contrariamente à ideia de que o subdesenvolvimento era “insuficiência ou ausência de desenvolvimento” – o que, em última instância, reforçava certa noção evolutiva e linear da história, transcorrida nos marcos do colonialismo ou do neocolonialismo –, argumentava que

O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta [...] a civilização ocidental, com seu repertório científico etnocêntrico, sempre se negou a aceitar esta evidência: que a fome e a miséria de algumas regiões distantes fazem parte do custo social do seu próprio progresso, um progresso que a humanidade inteira para que o desenvolvimento econômico avance no pequeno número de regiões dominantes política e economicamente no mundo (CASTRO, 1964 apud CASTRO 1996, p. 111-112).

Nota-se que a sua existência foi toda dedicada à produção do conhecimento científico e ao combate à fome universal, às injustiças e às desigualdades econômicas e sociais existentes entre classes, raças e nações, além da busca por caminhos para construir um mundo de paz. Vivendo as consequências das duas grandes guerras que atingiram o coração da Europa na primeira metade do século XX, e tocado pelas tensões da Guerra Fria, Josué de Castro argumentava que a guerra e a indústria de armamentos não apenas sorviam os recursos financeiros que faltavam aos países pobres como contribuíam decisivamente para a reprodução das desigualdades, conduzindo o Terceiro Mundo a um desenvolvimento ecologicamente desastroso. Dizia:

É imprescindível retransformar a economia de guerra em que vivemos numa economia de paz, e utilizar a enorme poupança que resultar do desarmamento parcial na obtenção de um tipo de desenvolvimento pacífico mais igualitário e não poluidor (CASTRO, 1964 apud CASTRO 1996, p 116).

Finalizamos este breve apontamento sobre a obra de Josué de Castro com o tema da educação. Uma educação transformadora e libertadora, pensada especialmente para os países subdesenvolvidos.   

[...] o problema mais grave dos países subdesenvolvidos continua a ser, ainda hoje, o baixo nível de educação de seus habitantes, considerados como fatores de produção. A simples transferência de cultura – isto é, as utopias de exportação em matéria de educação – jamais pode pôr à disposição um meio de formação de tipos de homens de que o Terceiro Mundo tem necessidade para desenvolver a sua economia num sentido humano que respeite as raízes culturais destes povos [...]”.Ministrar um tipo de educação popular seria desencadear um movimento irreversível de transformação social, ao qual se oporiam as minorias dominantes, hostis às ideias de reformas educacionais válidas (CASTRO, 1970 apud CASTRO, 1996, p. 101-103).

E agora, Josué?

50 anos são passados desde a morte de Josué de Castro. Entre 2020 e 2022, segundo relatório da FAO/ONU, o mundo alcançou a criminosa marca de 892,7 milhões de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, 11,3% da população mundial; e 2,3 bilhões de pessoas padecendo de insegurança alimentar moderada, cifra que corresponde a 29,5% da população mundial.

 

O Brasil, que havia deixado de integrar o mapa da fome em 2014, possuía 20,1 milhões de pessoas vitimadas por esse flagelo e 70,3 milhões em insegurança alimentar moderada ou grave entre 2020 e 2022[13]. Diversos povos, nações e etnias se encontram em guerra. A Terra se mostra cansada e exaurida por tantos destratos provocados pela busca incessante e insaciável do lucro imediato e inconsequente.

 

Em tempos de Inteligência Artificial, a tragédia da humanidade se manifesta nos desequilíbrios sociais e ambientais: mudança climática; aquecimento global acelerado; incêndios florestais; inundações; secas; pandemia; frio intenso; pobreza; miséria; migrações em massa; preconceitos e intolerâncias raciais, étnicas e religiosas. E agora, Josué?

Entrar em contato com a obra intelectual de Josué de Castro nos dias correntes revela-nos o quanto seu pensamento social e a sua atitude como homem público conservam-se assustadoramente atuais. Longe de desanimarmos e descrermos em possíveis soluções para tão graves problemas que atingem a humanidade no tempo presente, tal constatação impele-nos a pensarmos e a buscarmos alternativas e meios de mudança; força-nos a nos debruçarmos sobre o seu legado e a refletirmos sobre as suas ideias e posicionamento político e ideológico, tomando-os como pontos de referência para pensar a realidade contemporânea em suas dimensões globais e locais, sempre atentando para as particularidades dos respectivos contextos históricos.

 

Para trilharmos os caminhos a serem construídos, a farta e rica documentação presente no Arquivo Josué de Castro – produção intelectual, correspondências, recortes de jornais, livros, opúsculos, fotografias – oferece-nos pistas seguras e confiáveis. Pensamos ainda que, além de fazermos uma leitura atenta, cuidadosa e crítica dos documentos que guardam parte relevante da memória desse pensador social, procedendo à sua indispensável contextualização e atualização, devemos aprender com Josué de Castro a ver a realidade social com os olhos inconformados, inquietos e antenados, como os dos caranguejos da manguetown*.

NOTAS

[1]  (CASTRO apud MELO; NEVES, 2007, p.244)

[2(AMORIM, 2022; SILVA, 2020)

[3] Barbosa Lima Sobrinho foi um político, jurista, jornalista, administrador público e escritor. Nasceu no Recife, em 22 de janeiro de 1897 e faleceu no Rio de Janeiro, aos 103 anos de idade, em 16 de julho de 2000. Foi membro da Academia Brasileira de Letras; sócio benemérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto dos Advogados do Rio de Janeiro; sócio correspondente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, dentre outros.

[4(AMORIM, 2022)

[5(MELO; NEVES, 2007, p. 245). 

[6] (MAGALHÃES JÚNIOR, 1973, p. 166)

[7] (O JORNAL, 30 set. 1973 apud AMORIM, 2022, p. 59). 

[8] (RIBEIRO, 1998, p. 35)

[9] (FARGE, 2022)

[10] (MELLO NETO, 1955)

[11] (CASTRO apud FERNANDES; GONÇALVES, 2007, p. 142). 

[12] (CASTRO, 2015)

[13] (G1 – ECONOMIA, 2023)

[*] Manguetown, ou "cidade do mangue", foi um termo cunhado pela banda musical pernambucana "Chico Science & Nação Zumbi", para  denominar uma das músicas autorais do grupo. A "Nação Zumbi", junto com a "Mundo Livre S.A., protagonizou o "Manguebeat", movimento artístico-cultural de vanguarda, originado na cidade do Recife na década de 1990. Tinha por propósito inserir a capital pernambucana nos debates nacionais e internacionais sobre globalização por meio da arte e da cultura, assim como revigorar as forças culturais do Recife, extraindo da lama uma metafórica alma da cidade. 

PARA SABER MAIS 

AMORIM, Helder Remígio. Josué de Castro: um pequeno pedaço do incomensurável. Jundiaí: Paco Editorial, 2022. 

 

ANUÁRIO DE PERNAMBUCO PARA 1935. Suplemento dos Diário da Manhã e Diário da Tarde. Recife: Pernambuco, 1935, [s.p.].  

 

ARAÚJO, Rita de Cássia B. de. Introdução. In: CASTRO, Josué de. As condições de vida da classe operária no Recife: estudo econômico de sua alimentação. Recife: Editora Massangana, 2015. p. 7-9.

 

CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome, um tema proibido: os últimos escritos de Josué de Castro. 3. ed. Recife: Instituto de Planejamento de Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco, 1996

 

CASTRO, Josué de. As condições de vida da classe operária no Recife: estudo econômico de sua alimentação. Anuário de Pernambuco, Recife, [s.p.], 1935.  

 

____. A ciência a serviço do desenvolvimento econômico. Tiers Monde, vol. V, nº 20, Paris, out./dez. 1964 Apud CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome, um tema proibido: os últimos escritos de Josué de Castro. 3. ed. Recife: Instituto de Planejamento de Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco, 1996, p. 105-116. 

 

____. Documentário do Nordeste. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1959.

 

____. O livro negro da fome. 2. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1960. 


____. Projeto de Lei nº 11, de 19 de 1959. Define os casos de desapropriação por interesse social e dispões sobre sua aplicação. Disponível em: 

<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=170078>. Acesso em 30 set. 2023. 

____. Homens e caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967.

 

 ____. O dilema brasileiro: pão ou aço. Revista Brasiliense, nº 39, jan.fev. 1962, p. 10-36 apud CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome, um tema proibido: os últimos escritos de Josué de Castro. 3. ed. Recife: Instituto de Planejamento de Pernambuco: Companhia Editora de Pernambuco, 1996, p. 69-104. 

 

____. Pedro Bloch entrevista Josué de Castro. Revista Manchete, nº 625. Rio de Janeiro, abr. 1964. In: MELO, Marcelo Mário de; NEVES, Maria Cristina Wanderley (Orgs.). Josué de Castro. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2007.

 

____. As condições de vida da classe operária no Recife: estudo econômico de sua alimentação. Recife: Editora Massangana, 2015.

 

FARGES, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.

 

FERNANDES, Bernardo Mançano; GONÇALVES, Carlos W. Porto. Josué de Castro: vida e obra. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

 

G1 – ECONOMIA. Brasil tem mais de 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança alimentar, diz ONU. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/07/12/brasil-tem-101-milhoes-de-brasileiros-passando-fome-e-703-milhoes-em-inseguranca-alimentar-aponta-onu.ghtml>.Acesso em: 7 out. 2023.

 

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A AUTORA

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Rita de Cássia Barbosa de Araújo é historiadora e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco.

COMO CITAR ESSE TEXTO

ARAÚJO, Rita de Cássia B. O Arquivo Josué de Castro na Fundação Joaquim Nabuco. (Artigo). In: Coletiva - Villa Digital. nº 13. Publicado em 15 dez. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/villa-coletiva-n13-o-arquivo-josue-de-castro-na-fundacao-joaquim-nabuco-por-rita-de-cassia-arau>. ISSN 2179-1287.

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