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Fotografias como objeto de pesquisa

Rita de Cássia Araújo, historiadora e curadora da exposição Cultura Marítima Pesqueira de Pernambuco, encontra na fonte fotográfica o ponto de partida de seus estudos.


Roda com a pesquisadora Rita de Cássia no Museu do Homem do Nordeste
Oficina para os monitores do Museu do Homem do Nordeste sobre a exposição de fotografias./ Silvia Barreto - Muhne

Por: Letícia Barbosa



Fotografias, registros audiovisuais, pinturas e desenhos ou até objetos com fins práticos no cotidiano das pessoas são importantes ferramentas para compreensão de um contexto histórico e da organização social de um grupo. Nesse sentido, esses elementos contam com linhas de pesquisa específicas para absorver os conhecimentos que fornecem e desvendar informações.


Dentro da temática do 34º Dossiê da Revista Coletiva, Povos e Comunidades Tradicionais, esses elementos iconográficos são parte essencial da pesquisa sobre comunidade pesqueira artesanal, uma vez que são formas legítimas de produção de conhecimento da, representadas por inúmeros significados através do olhar dos fotógrafos em seu contexto histórico.


Esta edição do Pesquisa+, se debruça nos estudos acerca dos elementos iconográficos e pictóricos a partir da pesquisa de  Rita de Cássia Araújo. 


Por dentro da Fundaj 


Rita de Cássia Araújo faz parte da equipe de pesquisadores do Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira (Cehibra). Doutora em História Social e sócia efetiva do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, a pesquisadora faz uso de documentos e fotografias para desvendar o funcionamento social e político da sociedade pernambucana.


A fotografia foi para Rita um importante ponto de partida para obter as informações que procurava. Entre os seus estudos, já pesquisou sobre aspectos do carnaval de Recife e Olinda, como as máscaras, bem como a  introdução do "banho salgado" — que hoje conhecemos como banho de mar — com foco em fotografias e documentos datados de 1840 a 1940.


Atualmente, a pesquisadora tem se dedicado às coleções fotográficas que retratam o cotidiano da pesca e dos modos de vida dos pescadores e pescadoras no acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Um dos resultados obtidos já pode ser conferido desde o dia 9 de novembro de 2023 na exposição Cultura Marítima Pesqueira de Pernambuco, disponível para visitação na Sala Waldemar Valente, no Campus Gilberto Freyre, da Fundaj, em Casa Forte. A mostra, que contou com a curadoria de Rita de Cássia, pode ser conferida também na versão virtual e interativa no Especial do Dossiê Povos e Comunidades Tradicionais, da Revista Coletiva. 


Pensar a imagem 


A pesquisadora explica que é somente depois do século XX que o papel das imagens ganha maior significado para a História. Durante muito tempo, os historiadores trabalhavam a fotografia como auxiliar do texto.Eu não estou invalidando totalmente isso, só que ela tem muito mais a oferecer do que ilustrar um texto”, defende Rita. 


Um desses exemplos é a  Escola dos Annales, que passa a questionar não só as fontes visuais, mas outras formas de fontes históricas. “Começam a questionar como ela [a fonte] é produzida, com que intenção, considerar o uso que vai ser dado a essa imagem, considerando a recepção”, Rita destaca.


Rita chama a atenção para como a percepção da imagem também depende do tempo histórico e das vivências de cada um. Ela exemplifica com um projeto em andamento da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)  que pretende criar um acervo de memórias da região de Suape. Em uma das etapas, um filme de moradores e moradoras, bem como momentos do território anteriores  ao complexo portuário, é exibido para os jovens. E a reação é impactante. “A comunidade jovem que não vivenciou a questão de Suape, quando vê a imagem, ressignifica para ela em um sentido diferente do que provavelmente seria para a primeira geração. Ou essa primeira geração, revendo hoje, também ressignifica essa imagem”, pontua. 


As fotografias, bem como outras formas de textos não verbais, “não falam sozinhas", como indica a historiadora. O trabalho com imagens exige conexão com seu contexto de produção e concepção e tudo mais que a cerca. “Quanto mais informação você tem sobre essa essa imagem, mais rica ela fica, mais ela tem essa capacidade de te provocar, de trazer coisas que você não estava visualizando”, argumenta. 


Nas diferentes pesquisas ativas na Coordenação Geral de Estudos da História Brasileira (Cehibra), a fonte fotográfica é aliada a outros tipos de fontes como os manuscritos, os jornais e os livros. Para Rita, a imagem agrega aos trabalhos aspectos que os textos verbais não trazem. “A imagem pode  dar uma densidade assim de transbordar. Uma densidade de um determinado aspecto da realidade ou de um momento histórico, um impacto visual que talvez, mesmo com uma descrição, você não consiga tanto uma sutileza, um gestual, um olhar que, às vezes, você não capta no escrito ou sonoro”, afirma a pesquisadora. 


Para pôr em prática o trabalho com fotos, a observação atenta é indispensável. Para isso, a identificação da técnica utilizada é uma das etapas, como explica Rita. “Não só a intenção, mas também a técnica e o que ela te possibilita.  Hoje eu posso [interpretar] cada vez mais coisas . Você pode dizer que isso aqui é real [fala enquanto aponta para uma fotografia dos anos 1930], mas hoje em dia você pode botar mil coisas, distorcer totalmente a imagem. E com a inteligência artificial agora, é preciso ter mais cuidado ainda”.


Imagem é representação 


Desde o início da história dessa arte, no século XIX, a interpretação das imagens como retrato perfeito do real é um obstáculo para uma representatividade legítima dos contextos em que são elaboradas. De acordo com Rita, assim como acontece com documentos textuais, as fotografias são sim uma representação do real, só que a partir da perspectiva do fotógrafo ou da fotógrafa que faz o clique. Essa questão precisa ser considerada com ainda mais intensidade nos dias de hoje, nos quais as ferramentas de inteligência artificial estão na palma da mão de cada vez mais pessoas e permitem que a manipulação e criação de imagens seja algo comum.


No caso das fotos expostas em Cultura Marítima Pesqueira de Pernambuco, Rita chama a atenção pela pouca presença de mulheres fotografadas e por trás das lentes fotografando. Além disso, a pesquisadora indica a falta de acervos compostos por imagens autorrepresentativas. No caso dos pescadores e pescadoras, por exemplo, isso impacta no olhar exótico presente em algumas imagens.


“No nosso acervo da comunidade pesqueira não há imagens em que eles próprios se retratam, em que eles próprios se representam, ou visualmente ou de outra forma e não seja um olhar do outro sobre eles, que é o que a gente tem aqui. Uma das coisas interessantes seria, por exemplo,  [uma] autorrepresentação através da imagem, seja ela fixa ou em movimento, mas que seja uma autorrepresentação, porque você vai ter como eles [os pescadores] se veem,  como eles querem ser vistos; ao que eles dão importância, o que é importante para eles naquele momento que, às vezes, escapa ao olhar externo e é uma questão de autodeterminação, de reconhecimento”, defende Rita.


Próximos passos 


Dia de Pescar e dia de pescador : cultura marítima pesqueira no Nordeste do Brasil entre 1890 e 1980 é o projeto que Rita de Cássia se dedica no momento. A proposta é expandir a difusão do que foi pesquisado para a montagem da exposição.  “Estamos prevendo a itinerância do material exposto. Ela ainda está na  Fundaj, mas temos a intenção de levá-la para outros lugares, não só para instituições memoriais e acadêmicas, mas também para organizações ligadas à pesca”,  afirma a curadora.


Dentro da iniciativa, está em construção o lançamento de um livro reunindo textos dos pesquisadores e pesquisadoras envolvidos na construção do trabalho, como Cristiano Ramalho, atual secretário nacional da pesca artesanal, Luíza Farias, bolsista de iniciação científica, e da própria Rita. Além disso, a publicação deve contar com a participação de representantes de comunidades pesqueiras. Os estudos das fotografias, por sua vez, têm previsão de alcançar outras formas de produção, mas agora realizada pelos próprios pescadores e pescadoras. 


Para Rita, o novo momento é muito importante. "Um projeto itinerante pode chegar numa comunidade pesqueira, chegar para os jovens. Isso estimula questionamento como ‘o que isso está dizendo de nós? O que essa realidade diz da gente?’.  Muita coisa não existe mais, a própria jangada, enquanto objeto, não está mais em uso. Então, eles [os jovens]  podem questionar e produzir conhecimento, produzir consciência política, produzir  arte, produzir cultura a partir dessas questões”.


A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.


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