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Exposição sobre o MCP retrata experiência em educação popular por meio de mobilização coletiva

Mutirão foca em ações de alfabetização e consciência política com adesão de intelectuais e artistas no Recife da década de 60


Por Marcela de Aquino




Entre 1960 e 1964, o Recife viveu uma experiência única de participação. Organizações políticas, artistas e movimentos estudantis juntavam forças para enfrentar problemas sociais como a fome e o analfabetismo por meio de educação e cultura, com projetos em campos como artes visuais, artes cênicas e cinema. Essa cena foi chamada de Movimento de Cultura Popular — ou MCP.


Para contar essa história, e em comemoração aos 60 anos da iniciativa, a exposição Mutirão reúne mais de 200 itens de coleções públicas e privadas na galeria Vicente do Rego Monteiro da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no campus do bairro do Derby.


O curador e coordenador do Museu do Homem do Nordeste (Muhne) Moacir dos Anjos destaca no texto de abertura que “a exposição Mutirão apresenta uma história possível do MCP apoiada em fotografias, documentos e trabalhos de artistas que dele faziam parte. Oferece testemunho da construção de um futuro partilhado que, por breve momento, parecia ter chegado. E que, justamente por sugerir que outros arranjos sociais de vida eram possíveis, foi forçado a recuar”.


O desejo de retratar o movimento, segundo Moacir, teve início ainda no projeto Política da Arte, que há quase 15 anos explora os aspectos disruptivos da arte na política. Em 2019, por exemplo, o projeto lançou uma exposição em homenagem ao escritor João Cabral de Melo Neto chamada Educação pela pedra que “[...] tratava de uma série de questões relacionadas à educação crítica, à educação transformadora, e tinha referências a Paulo Freire, Anísio Teixeira e outros educadores através de obras de arte contemporânea”, relembra o curador.



Curador da exposição Mutirão, Moacir dos Anjos destaca a reflexão realizada por intelectuais e artistas sobre as implicações do subdesenvolvimento no cenário nordestino


Em paralelo a essa pesquisa, outra exposição que mais diretamente dialogou com as temáticas desenvolvidas pelo MCP foi a Arte Subdesenvolvida, que está exposta atualmente no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), em São Paulo e Belo Horizonte. Essa mostra, também com curadoria de Moacir dos Anjos, foi inspirada tanto pelo MCP quanto pelo Centro Popular de Cultura da UNE, no Rio de Janeiro — outro movimento político importante que marcou aquela época.


Foi nos anos 1950 que mais fortemente foram debatidas no Brasil questões como o subdesenvolvimento, sobretudo da região Nordeste. “[Debatia-se] como vencer a pobreza, a miséria dessas pessoas. E a educação era uma coisa muito importante nesse momento, porque naquela época só votava quem era alfabetizado.” Além de ser compreendida como caminho para combater o problema da fome, a educação ainda tornava possível a formação de sujeitos políticos com forças para  lutar por melhores condições de vida.


Moacir conta que o Movimento de Cultura Popular teve ampla adesão da sociedade, fazendo parte de “um espectro político amplo, que vai da esquerda comunista até os católicos e o empresariado, que vai atuar quase como um departamento anexo à prefeitura de Miguel Arraes, quase como uma entidade autônoma”. E acrescenta: "Era realmente um movimento orgânico na cidade, com importância cultural e política evidente, mas que ainda hoje recebe pouco destaque”. Na época, havia um esforço coletivo nas periferias para a constituição de novas escolas. “Muitas vezes tem relatos também em jornais de que a própria comunidade fez um verdadeiro mutirão físico para construir alguns espaços, reformar outros, para que se transformassem em escolas”, relata Moacir.


A exposição mostra ainda que o movimento oferecia inclusive assistência médica em várias dessas escolas e estendia a educação para o projeto Praças de Cultura, no qual “existiam manifestações musicais, teatro, encontros políticos, cinema, cursos de formação de artes visuais, de artesanato. Tudo isso acontecia em lugares periféricos, na Iputinga, em Casa Amarela, Água-Fria”, comenta Moacir. Nos materiais expostos na galeria, o programa é retratado como valorização das manifestações e expressões populares — a exemplo do maracatu — em um tempo em que ainda não existia o termo cultura popular. “Fazer com que a educação fosse um projeto de emancipação transversal” era o objetivo do MCP.


Em acordo com o espírito colaborativo do MCP, todas elas [escolas] ocupam espaços cedidos por igrejas, centros espíritas, clubes recreativos, associações esportivas, sindicatos de trabalhadores e centros sociais. Doações de material escolar e de merendas, por sua vez, continuaram sendo feitas pela indústria e pelo comércio locais, também responsáveis pelo pagamento de professoras.

(Texto reproduzido da exposição Mutirão)

Intelectuais importantes também aderiram ao MCP, como Abelardo da Hora, artista que desde o início de sua trajetória nos anos 40 já tinha uma série de obras sobre a fome e a seca, como uma que se tornou referência, a xilogravura Meninos do Recife. “Nos anos 50, ele criou o Ateliê Coletivo, que também é uma tentativa de agrupar uma série de artistas para trabalharem juntos, para ensinarem a outras pessoas o ofício do artista”, destaca. Eram artistas que tinham ideias progressistas, como Samico, Zé Cláudio, Wellington Virgolino. “Outros chegam com menos ênfase, participando do começo, mas com menos protagonismo: Francisco Brennand, Wilton de Souza, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho”, acrescenta.


Muitos educadores de esquerda e pessoas da Igreja Católica também aderiram ao movimento: Germano Coelho, um dos fundadores e primeiro presidente do MCP; o educador Paulo Freire, que desenvolveu seu método de alfabetização durante a sua atuação no Movimento; a atualmente professora emérita da UFPE Silke Weber, que coordenou o programa Praças de Cultura nas periferias do Recife; e um dos sócios fundadores e coordenador de pesquisas do MCP, Paulo Rosas.






Foi a partir de eventos e projeções de filmes educativos e documentais para fomentar debates que houve a aproximação do Movimento com o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) do Rio de Janeiro, que também tentou recriar as bases do MCP na cidade onde estava sediada. Moacir ressalta que “[o dramaturgo] Augusto Boal participava desse movimento estudantil, e [até] quiseram fazer uma coisa semelhante no Rio, embora ali não tivesse um apoio, uma prefeitura como a que o MCP tinha aqui no Recife. Então, ficou mais restrito às questões culturais, ao cinema e ao teatro”.


O desenvolvimento do MCP foi intrinsecamente ligado ao mandato de Miguel Arraes como prefeito do Recife. Foi Arraes quem desenvolveu a primeira rede municipal de escolas públicas na capital, tornando a alfabetização uma prioridade. “Quando Arraes assume em 1960, a educação se torna um dos marcos fundamentais de sua gestão, ou seja, ele toma o compromisso de alfabetizar a população, principalmente crianças e jovens, [uma faixa] em que havia índices altíssimos de analfabetismo na Cidade do Recife", afirma Moacir.


Ainda no final de 1960, começa o processo de educação de adultos na capital pernambucana. Com a chegada de Arraes ao governo estadual, em 1963, a política oficial de alfabetização se expande ao meio rural, agregando forças com outras organizações já presentes, como o Partido Comunista. “Em 1955, a questão agrária se formaliza com as Ligas Camponesas, com [o então advogado e depois deputado pelo Partido Socialista] Francisco Julião à frente, e começa um grande clamor por reforma agrária, por direito à terra; e isso cruza com a questão da educação de adultos no interior. Quando você tem toda essa massa camponesa politizada, mas agora podendo votar quando é alfabetizada, você tem uma possibilidade de virada de chave política muito forte. E isso, claro, vai gerar uma reação”, comenta.

 

“Quando o prefeito Miguel Arraes se torna governador de Pernambuco em 1963, você tem uma sátira que diz assim: ‘ah, o MCP vai alfabetizar 200 mil camponeses’”. E de fato, no ano seguinte, em apenas três meses, se chegou a esse marco. A alfabetização de adultos fortalecida durante o governo Arraes teve uma grande recepção no interior do estado a partir das Escolas Radiofônicas, programa de alfabetização pelo rádio acompanhado dos Livros de Leitura para Adultos, com palavras oriundas da realidade dos próprios camponeses, e com a instalação de 250 círculos de leitura no interior e 50 no Recife.





Escolas que segundo os detratores seriam unicamente instrumento de propaganda política dos “subversivos” instalados no MCP e na prefeitura. Ainda que implicitamente, esta última acusação tinha como alvo principal as ações do Movimento voltadas à alfabetização de adultos, tanto as desenvolvidas pelas Escolas Radiofônicas como as experimentadas por Paulo Freire no Centro de Cultura Dona Olegarinha. Cada nova pessoa alfabetizada por essas iniciativas – homens e mulheres moradores de bairros periféricos do Recife – se tornava, afinal, cidadão ou cidadã agora legalmente aptos a votar nas eleições, influindo em seus resultados.

(Texto reproduzido da exposição Mutirão)


Em uma atmosfera cada vez mais tensa de desagrado de alguns setores que detinham o poder político e econômico, os jornais locais já retratavam essa disputa da opinião pública. “Se você pegar os jornais entre agosto e outubro de 1962, você vê um debate imenso contra e a favor, e há uma mobilização da população defendendo o MCP. Tem outra sátira que o título é: O certificado de conclusão [da alfabetização] é o título de eleitor”, relata Moacir. Segundo ele, nomes nacionais como Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira defenderam o projeto e sua cartilha como mote de alfabetização quando ela era considerada doutrinadora pelos opositores.


Após extensas consultas feitas a homens e mulheres desejosos de atender ao programa, chegou-se a um total de 16 principais “centros de interesse”, cobrindo assuntos variados: de reforma agrária a festas populares; de politização a sobrevivência; de religião a problemas na cidade; de habitação a desenvolvimento. Seriam esses centros de interesse que viriam a orientar as discussões promovidas em sala de aula a partir das lições transmitidas pelo rádio.

(Texto reproduzido da exposição Mutirão)

Para conhecer melhor a história do movimento que foi frustrado pelo Golpe Civil-Militar de 1964, visite a exposição que está aberta até 3 de novembro na Galeria Vicente do Rego Monteiro, campus Derby da Fundação Joaquim Nabuco. A visitação acontece de terça a domingo e feriados, das 13h às 17h.


Confira abaixo entrevista com o curador da exposição Moacir dos Anjos.



Quando começa a idealização da exposição Mutirão? 


Começou lá atrás, foram dois anos pesquisando na rua. Na verdade, tive a ideia da exposição numa visita ao ateliê de Paulo Bruscky. Estava organizando a discussão sobre o trabalho dele, e aí vi que ele tinha uma série [de documentos]. Ele me mostrou e mencionou alguma coisa de Paulo Freire, do MCP. Mostrou o que ele tinha de fotografias sobre o movimento e a tese de Paulo Freire — que está na exposição, na primeira vitrine, de 1959, sobre educação — e uns folhetos de exposições também. E a partir disso eu pensei: “nossa, isso aqui pode dar uma exposição”. Mas a virada, realmente de que dava para fazer aquela exposição, foi quando eu tive acesso ao acervo que pertenceu a Germano Coelho, que foi presidente do MCP. Ele guardou tudo. É impressionante, guardou muita coisa. Boa parte do que está nas vitrines da exposição, como folhetos, publicações, cartas originais, tudo pertencia a Germano Coelho.



Quais materiais e fontes foram selecionadas para a montagem da exposição?


Tem alguns itens da Fundação Joaquim Nabuco, como o acervo de Miguel Arraes, que foi incorporado ao Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira Rodrigo Mello Franco de Andrade [Cehibra] alguns anos atrás. O acervo ainda está em processo de catalogação, mas, dentro do que está catalogado, conseguimos identificar uma série de fotografias muito interessantes sobre o MCP.


Tem também o acervo de Geraldo Menucci, também abrigado na Fundaj, que foi um músico, um maestro, e um dos fundadores do MCP.  Encontramos uma série de documentos lá sobre músicas, peças teatrais musicadas por ele, eventos relacionados a música e teatro feitos pelo MCP. E a obra de Abelardo da Hora, que está na exposição, chamada Meninos do Recife, que é um marco na história do MCP, também é da coleção da Fundaj.

Mas há também itens de coleções privadas, como a de Paulo Bruscky, artista e colecionador, que tinha muito material. E, principalmente, da coleção da família de Germano Coelho, dos herdeiros de Germano.


Há fotografias do Museu da Cidade do Recife, fotografias do Memorial Abelardo da Hora, [que estão] lá [no Memorial Abelardo da Hora (MAH) do Espaço Cultural José Lins do Rego (Funesc)] em João Pessoa, e outros acervos familiares, coisas mais pontuais que se encontram na exposição. Também tem documentação sobre o filme Cabra marcado para morrer, que é do Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Eu acho que é a primeira vez que está se reunindo esses itens de acervos em torno do MCP.


Antes de chegar no momento em que houve a desarticulação forçada do MCP na época do golpe, tem uma questão muito interessante que o MCP retrata, principalmente, a partir da xilogravura de Abelardo da Hora: a fome. Nessa época, Josué de Castro a retrata como um tema, um problema que precisava de visibilidade e de soluções para combatê-la.


De fato, a fome está associada à questão da terra dos anos de 1930 e é objeto de reflexão dos artistas brasileiros, em particular dos nordestinos. Até Antonio Candido, crítico literário, dizia que esses escritores, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, tinham a pré-consciência do subdesenvolvimento. A ideia de subdesenvolvimento como um conceito operacional só veio nos anos 40, no pós-guerra. Mas já ali eles falavam diretamente das questões do subdesenvolvimento. Vidas Secas, de Graciliano Ramos e O Quinze, de Rachel de Queiroz, são sobre seca, fome e miséria. Abelardo da Hora vai fazer uma obra nos anos 40 chamada A fome e o brado, que também é sobre isso.


A fome está sempre ali, presente. Josué de Castro, no começo dos anos 1950, já com a publicação de Geografia da fome, mostra como a fome está interligada com as questões sociais, econômicas, com as formas em que a sociedade se organiza para produzir e distribuir riqueza. A fome não é um dado biológico, não é apenas um dado orgânico, é uma questão econômica, é uma questão social. E isso transparece em peças teatrais, no trabalho de Abelardo da Hora Meninos do Recife, que mostra a situação de miséria que as pessoas viviam.


No MCP, o combate à fome vai junto com o combate ao analfabetismo. Qualquer lugar virava uma escola: a prefeitura dava as bancas, as cadeiras, e o MCP conseguia acordos com empresários para fornecer os uniformes. Através de associações filantrópicas e organizações do governo federal, conseguiam também dinheiro para as merendas, que eram muito importantes também. Você não só dava aula, mas alimentava essas crianças. E, claro, você alfabetizando esses jovens, e também os adultos, você dá melhores condições de empregabilidade.


No MCP, o combate à fome vai junto com o combate ao analfabetismo[...] Você não só dava aula, mas alimentava essas crianças.

Pensando a importância dessa exposição, qual o legado que o MCP tem a nos ensinar, principalmente aos jovens de hoje, que não conhecem diretamente essa história? Sobre o que esse movimento nos faz refletir em relação à sociedade atual?


Eu acho que uma exposição como essa, como outras que resgatam momentos políticos importantes, não se presta a servir de modelo, no sentido de que não pode ser transposta para um outro contexto histórico, cultural, um outro momento.


As questões são outras hoje. O contexto, pelo menos, é muito diverso. Por outro lado, ela pode servir de inspiração para o enfrentamento original de questões tão essenciais como a educação, que ainda hoje – não na dimensão que era naquele momento, na dramaticidade que era naquele momento – é uma questão fundamental, um desafio muito grande para qualquer governante e para a sociedade, de modo geral.


Eu acho que a experiência do MCP ensina que a educação é uma coisa que importa a todos, é algo central para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, mais igualitária. E que a educação é não só um direito de todos, mas é um dever de todos. É preciso um engajamento social, um engajamento coletivo para fazer com que a educação seja esse direito de todos. Porque o título da exposição é Mutirão justamente por isso. Porque, se olhar a história do MCP, é a história de uma série de atores que têm suas diferenças, que têm seus planos individuais, e que se juntam para fazer uma determinada coisa que vai beneficiar uma coletividade.


Esse ensinamento é um ponto político importante da história do MCP que está presente na exposição. Como é importante a organização da sociedade em torno de um tema específico, independentemente de interesses e divergências particulares. Porque ali você tinha empresários, religiosos de diversas naturezas, grupos de classe média, trabalhadores, intelectuais, artistas, músicos.


Enfim, eu acho que a importância do MCP, além desta exposição, além de conhecer um momento-chave da história política, cultural e artística de Pernambuco, nesses anos-chave para a história do Brasil, como os anos 1960, é mostrar também que ali estava se forjando um outro mundo, que foi interrompido bruscamente.


A educação é não só um direito de todos, mas é um dever de todos. É preciso um engajamento social, um engajamento coletivo para fazer com que a educação seja esse direito de todos

A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.



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