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Entrevista: Recepção e circulação internacional da obra de Gilberto Freyre é tema de livro agraciado pela crítica

A pesquisadora Cibele Barbosa (Fundaj) afirma que o pensamento do autor foi marco referencial para se repensar o colonialismo francês


Por Marcela de Aquino




A tradição da pesquisa no pensamento social brasileiro e na historiografia ganha renovadas interpretações a partir dos estudos sobre a projeção de um dos intelectuais que rompeu com o pensamento hegemônico da época, por mais controversa e ambígua que sua obra possa se apresentar nos dias atuais. O livro “Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França”, lançado pela Global editora e indicado como finalista da primeira edição do Prêmio Jabuti Acadêmico debate as reflexões do autor no plano internacional, em um contexto já conturbado pela crise do colonialismo e das ideais raciais. 


A autora Cibele Barbosa, pesquisadora da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundação Joaquim Nabuco,  comenta que esse “é um momento em que um autor brasileiro é lido, traduzido, passa a fazer parte de debates internacionais importantes, sobretudo, capitaneados pela Unesco, é convidado a participar de discussões sobre questões internacionais e não apenas questões ligadas ao Brasil, no qual normalmente autores brasileiros são chamados.”


A pesquisadora conversou com a Coletiva sobre a proposta trazida em seu livro, os aspectos explorados no pensamento de Gilberto Freyre e a tradução de suas obras, o vasto material de coleções historiográficas que embasaram a pesquisa, e sua avaliação e expectativas quanto à indicação ao prêmio. 


A entrevista foi realizada pouco antes do anúncio final do Jabuti Acadêmico, que premiou, na área de antropologia, sociologia, demografia, ciência política e relações internacionais, os livros A torre: o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura (Companhia das Letras), de Luiza Cristina Villamea Cotta; e Entre risos e perigos: artes da resistência e ecologia quilombola no Alto Sertão da Bahia (7Letras), escrito por Suzane de Alencar Vieira.



01- O que o livro se propõe tratar e como foi escrito?


É até uma escrita mais jovem minha, porque foi escrito há mais de uma década. Eu defendi a minha tese em 2011. Quando eu fiz a pesquisa para o meu doutorado, eu pesquisei em arquivos franceses, porque o doutorado foi na França, e brasileiros. E o tema do livro, que nesse caso está com o título “Escrito Histórico e Geopolítica da Raça", trabalha a recepção de Gilberto Freyre, das obras e pensamentos do autor na França. 


Na época, para mim, não era suficiente trabalhar apenas a recepção de um autor. A obra de Gilberto Freyre é gigante, mas, na França, só dois livros foram traduzidos, que foram Casa Grande e Senzala e o Nordeste. No caso de Casa Grande e Senzala, foi publicado no início dos anos 1950. Era um período muito rico para a pesquisa histórica, porque se tratava do pós-guerra, já no início da Guerra Fria, um período também do processo de descolonização, de emancipações e independências no continente africano. O colonialismo europeu estava em crise. Eu achei muito rico e me interessou estudar esse momento como historiadora, tendo a obra de Freyre na França como mote. É um livro que está a meio caminho da história e também das ciências sociais. Talvez seja interessante por isso, porque ele capta ferramentas de duas áreas. 


A tese propriamente dita – ou seja, qual a hipótese que eu levantei e quis provar e desenvolver no livro – é que, até então, no meu mestrado, eu tinha estudado essa obra de Freyre dialogando com historiadores da chamada Escola dos Annales, que foi um movimento na França nos anos 1920 e que influenciou muito a historiografia do Ocidente. E existia um artigo de um professor no final dos anos 1980, 1990, chamado Peter Burke. Ele associou muito a obra de Freyre com o trabalho desses historiadores da Escola dos Annales, que tardiamente ganhou o nome de Nova História. 


Essa Nova História tinha muita relação com Freyre, isso foi no mestrado. Mas eu percebi, então, que a hipótese que a recepção na França foi não só de cunho historiográfico, ou seja, embora os historiadores dos Annales, como Fernando Braudel e Lucien Febvre, tenham abraçado a obra do escritor brasileiro – e Lucian Febvre, que é um historiador famoso, fez o prefácio da obra de Freyre –, quis associar essa obra muito mais ao momento da crise do colonialismo na França.


Ora, nesse momento, eu cunhei um termo chamado “colonialismo esclarecido”. Eu fiz um trocadilho com a obra chamada Despotismo Esclarecido, que falava sobre o período do absolutismo. O que eu captei é a ideia de que, para alguns desses intelectuais, não havia um posicionamento contrário ao colonialismo francês. Eles achavam que era possível manter ainda aquele edifício colonial, mas com uma crítica ao próprio colonialismo.


Alguns desses autores franceses eram críticos ao colonialismo, era o momento da grande crítica ao racismo científico, ao etnocentrismo, ao eurocentrismo, então esse momento foi muito rico, de muitas críticas após a Segunda Guerra, tanto no campo das Ciências Sociais em geral, nos estudos históricos, na antropologia, como também no âmbito político. 


Era um momento de grandes rupturas em que esses intelectuais ficaram divididos entre apoiar a manutenção do colonialismo francês no continente africano ou criticá-lo, por isso que é chamado colonialismo esclarecido, porque tinha, de certa forma, um apoio intelectual, um apoio pensado sobre novas bases. Era um momento que ainda a França e Portugal e países colonialistas tentavam se manter como países colonialistas, porém com um discurso antirracista, antietnocêntrico. Como conciliar isso? A obra de Freyre, tento mostrar, se encaixa muito nessas discussões, e por isso que foi abraçado, principalmente, pelos franceses, tanto quanto o valor que a obra tinha do ponto de vista literário, histórico.


Eu vou abrir diferentes flancos de recepção: a ideia de Nordeste na França encaixava-se com esse público sequioso de obras sobre o Nordeste, era o momento de teorizações sobre o Terceiro Mundo, se tem toda a discussão sobre o Nordeste, tanto na cultura quanto também nas questões sociais e que atendia ao público que estava discutindo colonialismo sobre novas bases. Não era um livro que foi abraçado por aqueles que queriam uma ruptura total. Foi abraçado por intelectuais que não eram totalmente a favor, também não eram contra o colonialismo. E [outro flanco de recepção era] também no nicho dos estudos históricos era visto como uma obra que era inovadora, uma obra que adotava fontes históricas inusitadas para a época, tinha uma escrita também modernista. É um livro que abre porta de pesquisa para que outras se desenvolvam mostrando como a obra de Freyre foi agenciada.


02- Ao longo de seu livro também se discute um dos marcos da obra freyreana  em relação aos escritos sobre o Brasil. O que é o Brasil antes e depois de Casa Grande e Senzala de acordo com sua recepção nessa conjuntura?


É curioso isso, porque normalmente se estuda muito a obra pela obra, quer dizer, quais são os elementos da obra, quais são as referências teóricas do autor, o que ele está trazendo. Até mesmo Casa Grande e Senzala sempre foi muito estudada, obviamente, e também foi estudada pelos críticos algumas ideias de Freyre sobre o Brasil. 


Mas o que me chamou atenção é essa circulação internacional de uma obra. O campo de recepção difere muito, porque absorve questões internas de cada lugar, de cada país onde a obra está. O modo como a obra vai ser recebida, lida, debatida, publicada, até as escolhas editoriais, na verdade, respondem, de alguma forma, aos anseios e questionamentos próprios daquele país. Enquanto que a obra de Freyre, de alguma forma, caía como uma luva para algumas discussões na França no pós-guerra, elas não eram as mesmas no Brasil.


No Brasil, os desafios eram outros. Já era o momento exatamente que o próprio pensamento de Freyre sofria muitas críticas. No livro dou um passeio sobre esse contexto no Brasil, mas é no sentido de mostrar que quem dá mais sentido à obra – que não tem um sentido em si – ou quem vai ampliar a compreensão da obra, para além da própria intenção do autor, é o público que recebe. Então, ganha outras conotações, outras cores, outros tons na medida em que é traduzida em outro país e em um momento muito peculiar.


Primeiro, quando eu falo de recepção na França, eu estou falando dos anos 50, mas a obra originalmente foi produzida no final dos anos 20, e foi publicada nos anos 30. As respostas que a obra tentava oferecer nos anos 30 são diferentes daquelas que estão ali nos anos 50. Nos anos 30, era uma obra que apresentava uma noção de Brasil que se diferenciava do mainstream, de uma mestiçagem para branqueamento, que era a lógica mais comum dos escritos nos anos 10, nos anos 20. 


Freyre vai falar de mestiçagem, mas não no sentido de branqueamento. Ele vai dizer que o grande trunfo, exatamente,  foia presença negra na composição racial brasileira e indígena, mas, principalmente, a negra. Ele vai se diferenciar de autores como Oliveira Viana, como Batista de Lacerda e outros que usam a mestiçagem para depurar a raça. Isso são algumas questões. Do ponto de vista estético, é uma obra inovadora, porque ela traz descrições do cotidiano e a adoção de fontes completamente menosprezadas, na época, pelos historiadores. 


Ele trabalha com fontes de cunho etnográfico, como receitas de bolo, cartões postais, cantigas; compõe uma história do cotidiano, uma história social, muito mais do que uma história política. Freyre não gostava da história política, do ponto de vista dos heróis, da história dos grandes eventos históricos. Isso, na época, era muito inovador. Tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista das fontes com que ele trabalhou, o modo como ele vai arregimentar essas fontes, fizeram desse livro uma obra de destaque.


E por mais que hoje nós sabemos que grande parte das suas ideias foram refutadas historicamente, é preciso entender como e porquê esse pensamento de Freyre se manteve e se propagou, e pautou tanto o debate. Não tem como se descartar a importância desse autor. Também me chamou a atenção que normalmente nós estudamos muito a influência de autores estrangeiros no pensamento social e Gilberte Freyre faz parte de um seleto grupo de autores que fazem um movimento inverso, ou seja, não é de lá para cá, do Norte para o Sul, mas do Sul para o Norte. De alguma forma, são autores que vão ter um certo impacto, vão influenciar alguns debates na Europa e nos Estados Unidos, o que não era assim. Autores como Gilberto Freyre, Josué de Castro, Celso Furtado, Paulo Freire, são autores que vão ter uma projeção internacional, vão pautar debates na cena internacional, vão ser convidados a discutir questões que ultrapassem as barreiras do próprio Brasil como campo de estudo.



"Não era um livro que foi abraçado por críticos que queriam uma ruptura total. Foi abraçado por intelectuais que não eram totalmente a favor, também não eram totalmente contra o colonialismo. E [outro flanco de recepção era] também o nicho dos estudos históricos, ou seja, era visto como uma obra que era inovadora, uma obra que adotava fontes históricas inusitadas para a época, tinha uma escrita também modernista.”


03- Ele traz algumas ideias sobre raça, pós-abolição, que vão ser importantes no debate daquele momento.


Sim. Classicamente, tem um livro que eu gosto muito Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos trinta, de Ricardo Benzaquem. Esse livro me influenciou muito, acho que foi decisivo no meu trabalho, porque vai mostrar em quais aspectos a obra de Freyre foi inovadora naquele período. A obra Casa Grande e Senzala, principalmente, rompeu de alguma forma com alguns dos preceitos, das explicações ligadas ao racismo científico, embora incorporasse, e o Bezaquem vai mostrar, algumas daquelas ferramentas teóricas da época, que já são datadas.


Freyre vai mostrando algumas dessas rupturas com relação à questão de raça, principalmente.O ponto mais clássico é ter se baseado em alguns estudos que ele pôde ter acesso nos Estados Unidos com a presença do professor Franz Boaz. Naquele contexto já havia ali um pensamento culturalista, que exatamente rompia com as explicações ligadas ao determinismo biológico. Ou seja, as questões, os problemas enfrentados por populações, por exemplo, negras, que não eram relacionadas à questão da sua composição racial, mas sim às condições de vida nas quais estavam submetidas: a precariedade alimentar, más condições de moradia, de trabalho, de saúde, que impactavam as condições de vida.


Antes, existia uma espécie de liberalismo da raça, ou seja, uma meritocracia racial. As raças tidas como superiores iriam ter melhores condições e competitividade, uma visão de darwinismo social, uma competição de raças. E Freyre vai em seu livro quebrar essa ideia e dizer não. Ele vai buscar, por exemplo, na nutrição e no passado escravista, os males que afetavam as populações, principalmente, na região Nordeste, que eram populações afro-indígenas, ao invés de que as condições de vida eram ligadas à raça, ele vai criticar essa ideia de superioridade de raças, vai criticar a ideia de determinismos biológicos e vai dizer que era preciso atentar para as condições materiais. Isso vai impactar, inclusive, no estudo histórico. Não são os grandes feitos, os grandes homens, essa história que explica o passado brasileiro, mas sim, as relações familiares.Por isso que ele vai pautar muito a família patriarcal, os senhores de engenho, essas relações entre a casa grande e a senzala. 


Ele faz uma bricolagem de vários estudos da época: psicologia social, um pouco de psicanálise, vai pensar na geografia social. Por isso que, às vezes, ele era criticado, porque não se aprofundava necessariamente nessas teses, mas foi criativo em absorver esses estudos da época e tentar dar uma explicação que é, no mínimo, original. Entender a formação do Brasil pelas relações cotidianas, por uma espécie de história dos comportamentos, história das mentalidades. Percebe-se, assim, essa relação entre o material, as condições materiais e as condições psicossociais.


Os outros dizem, “mas ele reduziu o Brasil ao Nordeste”, e de que existiam outras realidades. Mas vale lembrar que Freyre estudava a sociedade colonial, o período colonial e uma parte do período do Império. É um estudo histórico. E principalmente no período colonial, o centro da grande parte da economia e da vida social se dava nessa região açucareira. Mas ele deixa claro que está estudando isso como um modo de entender o Brasil, pois acreditava que estudar a região era uma forma de entender o país e também questões universais.



04- Em seu livro, você comenta sobre o processo civilizador que o negro acaba promovendo na sociedade no contexto em que o colonialismo estava vivendo uma crise. Como é a recepção dessa ideia no qual a UNESCO divulga o Brasil como sendo um laboratório social?


Na França, no final dos anos 40, é que com a crítica mais sistemática aos postulados do racismo, às teses raciais, a pá de cal, por assim dizer,nos determinismos biológicos. O que vai prevalecer naquele momento, em meio a essa crítica, são exatamente aqueles estudos de pesquisadores como Franklin Frazier, Ruth Benedict e outros, que trazem uma discussão de cunho culturalista, ou seja, as discussões precisam ter sido a partir da cultura e de aspectos sociais da cultura, enfim, da cultura material e também do campo simbólico. 


E esses autores e autoras tinham já um caminho de estudos sobre culturas negras, principalmente afro-diaspóricas. Freyre interagia com outros intelectuais que já estudavam a presença dessas culturas. E nos anos 30, já era um defensor, porque foi organizador do primeiro congresso afro-brasileiro. Claro, que depois vão dizer que é uma perspectiva culturalista, o negro alçado como tema, mas naquele momento isso já era um passo.  Portanto, temos também que perceber os passos. Às vezes, cobramos dos autores certos posicionamentos que só são possíveis hoje porque houve um passo a passo.


Nesse passo a passo, ter já rompido com a ideia de que a cultura africana no Brasil foi um componente civilizatório de relevo, ou seja, não dá para pensar o Brasil sem pensar a cultura africana, não dá para pensar o povo brasileiro, na visão de Freyre, sem a influência direta da cultura, da língua, de aspectos materiais e simbólicos dessa cultura já foi uma ruptura. Na época, tinha uma hierarquização muito difundida, e, principalmente, na visão da mestiçagem do branqueamento, a cultura africana ia ser totalmente suprimida, todos os traços dessa cultura que era tida como inferior iriam ser diluídos diante dessa superior que era a europeia, branca, etc. 


Prefiro dizer, na verdade, o que tornava essa meta-raça era exatamente porque tem essa cultura africana como elemento civilizador que estava ali presente e que dava exatamente características para o povo brasileiro, originais, diferenciadas. Ele vai positivar essa cultura no âmbito da composição. Insiro em meu livro que ele não estava dialogando diretamente com os coletivos negros ou movimentos, embora, é claro, ele tivesse contatos e isso estivesse no Congresso Afro-Brasileiro.


Freyre estava presente, tinha relação com coletivos, grupos, mas a mensagem dele era muito mais para aqueles brancos, que se consideravam brancos puros ou brancos superiores por serem brancos, ou como se não tivessem vinculação alguma com a cultura africana. Freyre vai dizer que tem presença negra na sua composição, na sua ascendência, mas também do ponto de vista cultural, ou seja, foi criado por uma mulher negra, incorporou linguagens, incorporou costumes, então não dá para dissociar. Isso na época era muito inovador, uma espécie de tapa de luva nessas pretensões da branquitude da época, ao dizer ‘não, nós somos sim um povo que tem no seu tronco, na sua base, a cultura africana’. 


Como eu falei, os desdobramentos e apropriações da tese da mestiçagem vão ser debatidos depois, mas na época realmente foi um grande passo, porque ainda se estava falando em pensamento eugênico, de hierarquia, de raça pura. E na França, quando está tendo a crítica ao colonialismo, uma das formas de tentar manter “o colonialismo antirracista”, se é possível dizer isso, era exatamente pensar a presença e a importância das culturas não-brancas na própria Europa. Na época, tinham muitos textos falando da mestiçagem, que os franceses são mestiços também, a importância da cultura africana, etc. Por isso que a obra de Freyre dos anos 30 ganha, digamos assim, um olhar generoso por parte dos franceses, porque de alguma forma era uma obra que já nos anos 30 falava sobre a importância dessas culturas de uma forma ativa, não era só passiva, para a exibição, como tinham os africanismos na época, modernistas nos anos 20, 10. Não era isso, quando ele diz que é um elemento civilizador, ele está falando de uma postura ativa, ou seja, vai modificar os brancos também.


Não é para o branco ver, eu acho que isso é um ponto importante, que é pouco falado. Ele via a cultura africana como a presença africana, porque ela se dá também nas casas grandes, ela se dá nas relações interpessoais. E ele não nega que eram relações violentas, fala do estupro, literalmente, das mulheres negras. Ele é esse misto, é bem contraditório, mas eu posso localizar na obra dele também o fato de que ele mostra uma colonização bem violenta.


Ele via a cultura africana como a presença africana, porque ela se dá também nas casas grandes, ela se dá nas relações interpessoais. E ele não nega que eram relações violentas, fala do estupro, literalmente, das mulheres negras. Ele é esse misto, é bem contraditório, mas eu posso localizar na obra dele também o fato de que ele mostra uma colonização bem violenta.


05- Como foi fazer a compilação de fontes, de materiais, para construir um embasamento argumentativo?


Eu fui primeiro nos textos, nas resenhas, nos trabalhos que comentaram a obra de Freyre tanto aqui no Brasil, logo no lançamento, como na França. O que foi diferente foi ter achado algumas resenhas que não tinham sido ainda citadas nos trabalhos anteriores. Achei inusitado ter alguns textos fora das revistas especializadas em ciências sociais, por exemplo. Tinham os autores mais clássicos, mas encontrei também textos que mostravam que o interesse de Freyre era mais amplo do que propriamente a discussão apenas do campo das ciências sociais e do campo da história. 


Depois eu fui nas correspondências que foram recebidas por Freyre, por intelectuais que dialogaram com ele. A partir das correspondências, eu pude também ter uma ideia dessas relações, dessas redes de sociabilidade. Eu não quis explicar a obra de Freyre, “a obra genial que por isso foi publicada”. Claro que tem os méritos do autor e eu já expliquei os porquês da obra dele. Teve uma aceitação boa na França. Mas existe uma história editorial, uma história das redes de sociabilidade. Não é simplesmente que Freyre foi achado por alguém em um belo dia. Há toda uma costura também dele com colegas de prestígio e desses colegas com ele. A gente percebe nas correspondências como essas redes também influenciaram a tradução da sua obra, ou não. Esse foi um dos pontos também da tese. Os caminhos da tese foram sendo trilhados à medida que eu fui encontrando as fontes.


Eu tinha uma ideia na cabeça, mas elas mudaram muito. As minhas ideias iniciais foram se transformando à medida que eu fui encontrando fontes. As cartas já me levaram a trabalhar as redes de sociabilidade. Os artigos me levaram a pensar, por exemplo, a questão do colonialismo. Eu estava buscando um caminho, a ideia inicial era trabalhar esse Freyre historiador, como ele trabalhava a história do Brasil ali, como foi recebido pelos historiadores. E, de repente, eu me vejo trabalhando as questões políticas da França na época do colonialismo.


Isso foi sendo alimentado à medida que as fontes foram me indicando [outros caminhos]. Você lê uma carta que leva a um documento, você vai pavimentando esse caminho de pesquisa. Primeiro os artigos, depois as correspondências. Logo após, eu fui para os documentos e relatórios da Unesco, textos publicados pelo próprio Freyre, opúsculos, artigos e textos de jornais da época. Foram basicamente essas as fontes.



06- A Fundação Joaquim Nabuco também foi importante para encontrar as fontes em seu acervo?

Aqui na Fundação foi fundamental porque eu encontrei muitas leituras e textos da biblioteca e também em jornais, porque nós temos também uma hemeroteca, uma parte de artigos que estão em microfilme e alguns materiais, algumas publicações ligadas a Freyre. A outra parte foi na Fundação Gilberto Freyre no qual tive acesso às correspondências. Na época, tinha muita informação, muito texto já publicado, transcrito em um site que hoje não tem mais, infelizmente, onde tinha praticamente tudo que Freyre havia publicado. Isso ajudou demasiadamente. 


Eu falo da importância de iniciativas de digitalização, transcrição de documentos, de se tornar público, porque isso salva muito o nosso trabalho, ter acesso à distância, sem precisar ir necessariamente até o acervo. Então, a Fundaj, por exemplo, tem muito acesso digitalizado já disponível para o público e, cada vez mais, o maior desafio das instituições é possibilitar o acesso, porque qualquer um pode em qualquer lugar do Brasil, do mundo, fazer uma pesquisa. Para mim, boa parte dessa tese foi escrita aqui, estando na Fundaj, eu já trabalhava aqui, parte dela na biblioteca, muito tempo também conciliando o trabalho da Fundaj  e a escrita da tese.




07- O trabalho foi vencedor do 1º Concurso Internacional de Ensaios – Prêmio Gilberto Freyre 2020-2021, organizado pela Fundação Gilberto Freyre e publicado pela Global Editora, em 2023. O que o trabalho traz de  inovador e como pode contribuir com a pesquisa em ciências sociais e para a historiografia?


O livro contribui, no caso, para os estudantes de ciências sociais, ao trazer mais essa historicidade. Muitas vezes trabalhamos na obra de autores e nos centramos muito mais nos aspectos teórico metodológicos de uma obra; ele traz mais historicidade para entender outros aspectos que envolvem uma obra, ou seja, uma obra não se encerra em si, tem uma história. E entender também que um autor é fruto de um tempo que o abraça, que abraça suas ideias, e que é fruto de uma rede que o alavanca.


É sair mais do personalismo mesmo do autor do livro, e inseri-lo em uma história maior. Por assim dizer, eu acho que isso é uma contribuição. E do ponto de vista dos estudos sobre Freyre, para quem é especialista no pensamento social brasileiro, que trabalha sua obra, que é entender essa especificidade da discussão com o colonialismo, porque foi muito estudada com relação a Portugal, porque Freyre apoiou o regime Salazar, mas não havia ainda um trabalho na época quando fiz a tese – depois tiveram outros trabalhos que se seguiram – que trabalhassem mais especificamente essa relação da obra de Freyre com o colonialismo francês. 


Esse foi o ponto desse colonialismo esclarecido que eu trago [no livro]. Isso foi, no ponto de vista dos estudos freyrianos ou do pensamento social, o pensamento transnacional brasileiro. Então, mostrar assim, além-mar como o que é discutido pelos autores daqui chegam lá fora. É uma linha de trabalho também que é ainda pouco explorada em relação ao pensamento social brasileiro– embora já existam vários trabalhos – mas ainda tem muito a ser trilhado sobre a circulação internacional das ideias de autores brasileiros.



08- Como avalia a indicação de seu livro Escrita histórica e geopolítica da raça: a recepção de Gilberto Freyre na França à finalista do Prêmio Jabuti Acadêmico? Quais são as expectativas?


Fiquei muito lisonjeada, honrada, mas senti também agora ainda o desafio de ampliar as pesquisas, não só essa, de outras frentes. Deu bastante estímulo. Tanto me estimulou pessoalmente, como eu acho que o prêmio me deu um estímulo em geral, não pelo prêmio em si, de estar em finalistas ou não, mas da divulgação de trabalhos, de teses ou trabalhos científicos, porque eu acho que todos que de alguma forma atravessaram esse longo caminho de realizar trabalhos no doutorado, no mestrado, sabem dos percalços.


Eu lembro que eu já quis desistir várias vezes quando eu estava no doutorado, para as pessoas saberem também que não é um processo fácil, simples. Mas quando vem uma premiação dessa, ou quando um livro circula e as pessoas debatem e leem, isso é muito gratificante para mim e para todos que de alguma forma dedicaram tanto tempo a discutir uma ideia, um pensamento.


Também serve como uma fala para os estudantes. No meu trabalho tem muitas incompletudes, muitas falhas, lacunas, mas isso não é um impeditivo para que você desenvolva uma ideia. Não existe um livro acabado, não existe uma pesquisa finalizada. Dez anos depois, eu vejo muitas questões que eu poderia ter trabalhado melhor, que eu poderia ter desenvolvido mais. Contudo, isso faz parte do nosso fazer intelectual, do amadurecimento mesmo.


Serve como conselho não desanimar porque você encontrou lacuna e entender isso como parte dessa escalada que é íngreme, que é pedregosa, que é cheia de falhas, de continuidades. E isso não impediu, por exemplo, que todo esse trabalho fosse lido e agraciado por uma parte da crítica que, até encontrando falhas, fazem parte do seu trabalho, tornam o seu trabalho importante. Não precisa ser um trabalho perfeito ou dizer que é um trabalho acabado para ele ser agraciado. Ele pode ser um trabalho que é um passo, uma abertura, um começo. Então, isso também é muito bom. Fico muito contente.


Eu acho que estamos numa fase mais, eu espero, mais acolhedora do ponto de vista acadêmico, para a gente poder valorizar o conhecimento, valorizar os esforços, mas sem cair numa corrida insana ou competitiva com relação aos frutos. Ou seja, abraçando cada fruto como parte de um conhecimento maior, não como o trabalho. O meu [trabalho] é um tijolo em um conjunto maior de trabalhos que já existem, mas é um tijolinho que dá um bom suporte.


09- O que mais o leitor interessado na obra de Gilberto Freyre pode esperar encontrar em seu livro que até agora não foi abordado? 


Tem uma parte mais sobre a cultura. No último capítulo, embora seja curtinho, faço um diálogo com a literatura, sobre o momento das publicações de Jorge Amado para entender um pouco o Nordeste, tem um pouco desse Nordeste Místico em branco e preto, que é o título do livro de Roger Bastide.


Ou quem curte mais a parte da história dos Annales vai poder encontrar alguns diálogos interessantes de Freyre com a obra de Lucien Febvre e de Fernand Braudel. Tem alguns elementos aqui que vão ser bem interessantes na leitura que saem dessa discussão específica sobre raça, colonialismo ou Casa Grande e Senzala. Percebe-se outras nuances, principalmente da literatura da época, falo um pouquinho sobre esse contexto: como é que o Brasil estava sendo representado culturalmente em filmes, em livros da França nos anos 40 e 50.



10- Como o livro vem somar às pesquisas já realizadas sobre a história contemporânea brasileira e os estudos atlânticos na Fundação Joaquim Nabuco?


Em geral, contribui para as discussões que estão sendo realizadas sobre o livro Nordeste, porque de alguma forma é um livro em que o autor se dedicou a pensar o Nordeste, mas o Nordeste para o mundo. E que lutou também contra certos rótulos que eram atribuídos por outros intelectuais com relação à região. Freyre não via como problema a ideia de ser um Nordeste não de imigrantes europeus, como em São Paulo, e de estar nos trópicos, porque também o trópico era visto como um locus inviável nos anos 30, nos anos 20. 


Ele tinha a ideia de que essa região tinha algo a mostrar, a oferecer do ponto de vista de soluções, até que hoje a gente pode falar de meio ambiente,quando ele falava de estudos situados. Essa ideia de retomar alguns elementos da obra de Freyre, que muitas vezes foram desprezados pela historiografia, porque a gente fica muito focada na ideia de uma criação racial, mas Freyre não trabalhou só isso, trabalhou outros elementos da cultura nordestina e eu acho que isso tem um elo muito interessante com o que paramos para pensar e repensar no próprio Museu do Homem do Nordeste, da Fundaj,, que está em um momento de reconstrução, de reelaboração. É pensar como discutir e pensar o Brasil a partir do Nordeste, não apenas em comparar o rótulo que foi dado como esse lugar ora do atraso, ora do inviável.


É repensar um pouco e trazer, nessas discussões mais contemporâneas, o autor numa linha do tempo que envolva também trabalhos sobre sociologia do corpo, porque ele trabalhou muito em suas obras, sociologia da medicina, ele tem trabalhos sobre isso, talvez outras frentes, que não necessariamente fazem parte do mainstream da democracia racial.



 


Cibele Barbosa tem doutorado em História Moderna e Contemporânea pelo Centre d’ Études du Brésil et de l’ Atlantique Sud (Centro de Estudos do Brasil e do Atlântico Sul) da Universidade Paris IV-Sorbonne, França. É vice-coordenadora do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio/Fundaj). 



A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.




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