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Foto: Reprodução do documentário “O Desastre de Chernobyl” (2006), de Thomas Johnson.  Edição e Manipulação da imagem: Túlio Velho Barreto

Política e

Cidadania

Editor temático: Túlio Velho Barreto

nº 20 | 26 de janeiro de 2022

O negacionismo nuclear: crônica de um desastre anunciado

Heitor Scalambrini Costa

O negacionismo do atual desgoverno está presente em vários atos e atitudes de seus membros, em particular do presidente da República. O termo negacionismo é o ato de negar fatos, acontecimentos e evidências científicas. Tal estratégia tem sido utilizada para a formação de uma “governamentalidade” (definição dada pelo filósofo francês Michel Foucault, como sendo o conjunto de táticas e estratégias usadas para exercer o poder e conduzir as condutas dos governados) e, assim, criar as próprias verdades, o que acaba dificultando e confundindo a percepção do público em geral, em relação ao risco de determinados eventos de grandes impactos e repercussões, como, por exemplo, o que tem acontecido com a pandemia do Coronavírus. 

 

A criação de uma realidade paralela caracteriza-se por negar a própria pandemia, propagandear o uso de remédios ineficazes e questionar a eficácia da vacina. O que contribuiu, nestes dois últimos anos, para ceifar uma quantidade elevada de vidas humanas. Segundo cientistas, se cuidados básicos tivessem sido implementados pelo Ministério da Saúde para enfrentar a pandemia, muitos óbitos teriam sido evitados. 

 

Outro tipo de negacionismo praticado tem sido o negacionismo nuclear. Com uma campanha publicitária lançada recentemente pela Eletrobrás Eletronuclear, o desgoverno federal escolheu exaltar mentiras, distorcer fatos, manipular e esconder dados sobre as usinas nucleares, cujas instalações no país se tornaram uma prioridade.

 

O que tem sido constatado após o último acidente nuclear, ocorrido em Fukushima (antes, o de Chernobyl) é que financiadores de “think tanks” (instituições que se dedicam a produzir conhecimento, e cuja principal função é influenciar a tomada de decisão das esferas pública e privada, como de formuladores de políticas) e lobistas defensores da tecnologia nuclear, se valendo de desinformação, estão produzindo campanhas pró usinas nucleares de forma muita ativa e atuante. A falta de transparência é a arma utilizada pelos interesses dos negócios nucleares.

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Cartaz e cena relativos ao desastre nuclear ocorrido em Chernobyl, na Ucrânia, em 26/4/1986. No cartaz, pode-se ler: “Onde será o próximo?”. Reproduções da Internet. Edição e manipulação da imagem: Túlio Velho Barreto.

Negar fatos e evidências científicas, mesmo que elas estejam muito bem explicadas e documentadas é a essência da prática que serve para explicar qualquer tipo de negacionismo, incluindo o do uso de usinas nucleares, que nada mais são do que instalações industriais que empregam materiais radioativos para produzir calor e, a partir deste calor, gerar energia elétrica, como em uma termoelétrica. O que muda nas termolétricas é o combustível utilizado.

 

No caso do uso da energia nuclear, também conhecida como energia atômica, algumas mentiras sobre esta fonte energética são defendidas, disseminadas, replicadas, compartilhadas e, assim, passam a construir verdades que acabam exercendo pressão, com o objetivo de minimizar e dificultar a percepção da população sobre os reais riscos e perigos que esta tecnologia representa, pois além de ser totalmente desnecessária para o país, ela custa caro e é muito poluente. 

 

A política energética atual tem se caracterizado pela falta de apoio efetivo às fontes renováveis de energia. Ao contrário, o ministro de Minas e Energia proclama como prioritária a nucleoeletricidade e insiste em priorizar e promover fontes de energia questionadas e, até mesmo, abandonadas pelo resto do mundo, caso do apoio ao carvão mineral para termelétricas e da própria energia nuclear.

 

No mundo em que vivemos, cada ação praticada implica em riscos. Assim, precisamos decidir sobre quais são aceitáveis, já que eliminá-los é impossível. Não existe risco zero. 

 

A ocorrência de um acidente severo em usinas nucleares, ou seja, o vazamento de material radioativo confinado no interior do reator para o meio ambiente, é catastrófico aos seres vivos. É bom que se saiba que inexiste qualquer outro tipo de acidente que se assemelha a radioatividade lançada ao meio ambiente e suas consequências e impactos, presentes e futuros.

 

No caso de usinas nucleares, onde reações nucleares com material físsil produz grande quantidade de calor concentrada em um espaço pequeno, no núcleo do reator, maiores são as consequências de qualquer anomalia acontecer e se tornar uma catástrofe. Quanto maior a complexidade do sistema, mais elementos interagem entre si e maiores são as chances de acidentes, mesmo com todos os cuidados preventivos. Neste caso, existe a possibilidade concreta de se cumprir a Lei de Murphy, segundo a qual “se uma coisa pode dar errado, ela dará, e na pior hora possível”.

 

Eis algumas mentiras que são propagadas e motivadas pelas consequências políticas e econômicas que representam, e que, portanto, merecem os esclarecimentos devidos:

A energia nuclear é inesgotável, ilimitada

 

As usinas nucleares existentes no país, e as novas propostas, utilizam como combustível o urânio 235 (isótopo do urânio encontrado na natureza). Este tipo de urânio, que se presta a fissão nuclear, é encontrado na natureza na proporção, em média, de 0,7%. Todavia, é necessária uma concentração superior a 3% para ser usado como combustível. Assim, é necessário enriquecê-lo, aumentando o teor do elemento físsil. Pode-se afirmar que haverá urânio 235 suficiente para mais 30-50 anos, a custos razoáveis, para atender as usinas nucleares existentes.

 

A energia nuclear é barata

 

É muito mais cara do que nos fazem crer, sem contar com os custos de armazenagem do lixo radioativo e o desmantelamento/descomissionamento no fim da vida útil da usina (custa aproximadamente o mesmo valor que o de sua construção). Logo, o custo do kWh produzido é próximo e, até mesmo, superior ao das termelétricas a combustíveis fósseis. E, sem dúvida, acontecerá o repasse de tais custos para o consumidor final.

 

A taxa de mortalidade de um desastre nuclear é baixa

 

O contato de seres vivos, em particular de humanos, com a radiação liberada por uma usina nuclear tem efeitos biológicos dramáticos e vai depender de uma série de fatores. Entre os quais: o tipo de radiação, o tipo de tecido vivo atingido, o tempo de exposição e a intensidade da fonte radioativa. Conforme a dose recebida, os danos às células podem levar um tempo e podem ser, desde queimaduras até aumento da probabilidade de câncer em diferentes partes do organismo humano. Portanto, em casos de acidentes severos já ocorridos, o número de mortes logo após o contato com material radioativo não foi grande; mas as mortes posteriores foram expressivas, segundo organismos não governamentais. Nestes casos, a dificuldade de contabilizar a verdadeira taxa de mortalidade é ampliada pela mobilidade das pessoas, tendo em vista que quem mora próximo ao local destas tragédias, e que são contaminadas, se mudam e a evolução da saúde individual fica praticamente impossível de se acompanhar. 

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À direita, a mobilização contra a construção de usinas nucleares próximas às cidades de Jatobá, Floresta, Itacuruba e Belém do São Francisco, que ficam a cerca de 400 km do Recife. Foto de João Zinclar. Reprodução do site do Sindicato Químicos Unificados de Campinas e Osasco.

O nuclear é seguro

 

Embora o risco de acidente nuclear seja pequeno, é preciso considerá-lo, haja vista que já aconteceu, em diferentes momentos da história, e possui consequências devastadoras. Um acidente nuclear torna a área em que ocorreu inabitável, pois rios, lagos, lençóis freáticos e solos são contaminados. Esse tipo de acidente ainda ocasiona alterações genéticas em seres vivos.

 

O uso da energia nuclear está em pleno crescimento no mundo

 

Esta é uma falácia recorrente dos que creditam a esta tecnologia um crescimento mundial. Vários países têm criado dificuldades para a expansão de usinas e, até mesmo, abandonando a nucleoeletricidade. Como exemplos, temos a Alemanha, Áustria, Bélgica, Itália, Portugal.... E em outros países, o movimento anti usinas nucleares tem crescido entre a população, como é o caso da França e do Japão.

 

A energia nuclear é necessária, é inevitável

 

No caso do Brasil, as 2 usinas existentes participam da matriz elétrica com menos de 2% da potência total instalada. Mesmo que as projeções governamentais apontem para mais 10.000 MW até 2050, ainda assim, a contribuição da nucleoeletricidade será inferior aos 4%. A energia nuclear não é necessária no Brasil, que detém uma biodiversidade extraordinária e fontes renováveis em abundância.

 

A energia nuclear é limpa

 

Por princípio, não existe energia limpa, e sim as sujas e as menos sujas. No caso da energia nuclear, ela é classificada de suja, pois é responsável por emissões de gases de efeito estufa ao longo do ciclo do combustível nuclear (da mineração à produção das pastilhas combustíveis), e produz o chamado lixo radioativo. O lixo é composto por tudo o que teve contato com a radioatividade. Logo, entram nessa categoria: resíduos do preparo das substâncias químicas radioativas, a mineração, o encanamento através do qual passam, as vestimentas dos funcionários, as ferramentas utilizadas, entre outros. Parte deste lixo, por ser extremamente radioativo, precisa ser isolado do meio ambiente por centenas ou milhares de anos. Não existe uma solução definitiva de como armazená-lo, portanto, seria um problema não solucionado que as gerações futuras iriam herdar. 

 

O nuclear resolve nosso problema energético, evitando os apagões e o desabastecimento

 

A energia nuclear contribui, atualmente, com 2% da potência total instalada no país, podendo chegar a 4% em 2050, caso novas usinas sejam instaladas. O peso das potências totais instaladas, atual e futura, na matriz elétrica é muito inferior ao potencial das alternativas renováveis (por ex.: Sol e vento) disponíveis. Logo, a afirmativa de que a solução para eventuais desabastecimentos de energia pode ser compensada pela energia nuclear é uma mentira das grandes.

                

O que está ocorrendo no país, caso prossiga a atual política energética nefasta, no sentido econômico, social e ambiental, é um verdadeiro desastre que deve ser evitado. 

PARA SABER MAIS

 

Livros

Por um Brasil Livre de Usinas Nucleares: por que e como resistir ao lobby nuclear, organizado por Chico Whitaker (Editora Paulinas, 2012)

Bomba atômica! Pra quê?: Brasil e energia nuclear, de Tania Malheiros (Editora Lacre, 2020)

 

Artigos e estudos

“Energia nuclear é suja, cara e perigosa”, de Chico Whitaker. Acesso em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/08/energia-nuclear-e-suja-cara-e-perigosa-diz-ativista-veterano.shtml

“O Brasil não precisa de mais usinas nucleares”, de Ildo Sauer e Joaquim Francisco de Carvalho. Acesso em https://www.ecodebate.com.br/2012/06/04/o-brasil-nao-precisa-de-mais-usinas-nucleares-artigo-de-joaquim-de-carvalho-e-ildo-sauer/ 

 

“Porque o Brasil não precisa de usinas nucleares”, de Heitor Scalambrini Costa e Zoraide Vilasboas. Acesso em https://www.ecodebate.com.br/2019/08/29/porque-o-brasil-nao-precisa-de-energia-nuclear-artigo-de-heitor-scalambrini-costa-e-zoraide-vilasboas/

 

“Insegurança na usina nuclear de Angra 3”, de Célio Bermann e Francisco Corrêa. Reportagem sobre o estudo, originalmente publicado em alemão, pode ser acessado em https://www.ecodebate.com.br/2012/03/07/estudo-revela-inseguranca-na-usina-nuclear-angra-3/  

O AUTOR

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Heitor Scalambrini Costa é mestre em Ciências e Tecnologias Nucleares pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Energética pela Commissariat à I’Energie Atomique-CEA, Centre d’Estudes de Cadarache et Laboratorie de Photoelectricité Faculte Saint- Jerôme/Aix-Marseille III, França. Atualmente, coordena os projetos da ONG Centro de Estudos e Projetos Naper Solar, o NAPER – Núcleo de Apoio a Projetos de Energias Renováveis e o SENDES – Soluções em Energia e Design da UFPE. É professor aposentado dessa Universidade e militante ativista do Movimento Ecossocialista de Pernambuco. Tem diversos livros e artigos publicados sobre o tema no Brasil e exterior.

COMO CITAR ESSE TEXTO

COSTA, Heitor Scalambrini. O negacionismo nuclear: crônica de um desastre anunciado. (Artigo). In: Coletiva - Política e Cidadania. nº 20. Publicado em 26 janeiro 2022. Disponível em: https://www.coletiva.org/politica-e-cidadania-n20-o-negacionismo-nuclear-cronica-de-um-desastre-anunciado ISSN 2179-1287.

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