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Foto: Magdalena Dodds | Extraída do livro La pandemia social de COVID-19 en América Latina (Buenos Aires: Teseo, 2021)

Política e

Cidadania

Editor temático: Túlio Velho Barreto

nº 17 | 28 de maio de 2021

Considerações sobre a pandemia social de COVID-19 na América Latina

Sandra Valongueiro 

Camila Pereira Abagaro 

Em 2020, sucedeu o que pesquisadores/as previam: uma pandemia provocada por um vírus muito contagioso, em um mundo globalizado, com economia interdependente e cuja mobilidade humana ocorre numa velocidade sequer imaginada. Uma crise sanitária desconhecida de nossa geração, com características específicas na América Latina (AL).

 

As desigualdades sócio estruturais em nossa região têm potencializado a intensidade com a qual a pandemia nos atingiu e ainda nos atinge. Seguimos correndo atrás dos prejuízos, sem acompanhar tudo que acontece ao nosso redor, muito menos em países mais distantes. “Verdades” de ontem já não são consideradas como tais hoje. 

 

Neste sentido, muito do que estamos vivendo, observando, registrando e compartilhando vai sendo lentamente transformado e nos transformando. Estamos escrevendo a história. Não apenas a história de um novo vírus mutável (variantes B.1.1.7, B.1.35, P1, P2, etc.), e cuja doença exige cuidados contínuos, multidisciplinares e intersetoriais, mas também a história de como as sociedades vêm respondendo à propagação desse vírus. Um inimigo invisível que pode levar à morte, em um mundo que busca o mercado como saída para tudo e as religiões como instrumentos de amortecimento e controle, tendo como fundamento o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. 

 

Em geral, nós brasileiros/as, ao tentarmos entender a pandemia de COVID-19, temos como referência os países europeus e os Estados Unidos – cuja relação colonialista se mantém – ainda que, na contemporaneidade, esse processo exploratório assuma diferentes configurações. A experiência dos países asiáticos, algumas vezes, é minimizada pelo fato de serem culturas muito distintas ou mesmo por preconceito (não democráticos, comunistas, etc.).  Assim sendo, pode-se dizer, sem medo, que pouco se buscou saber como essa crise sanitária atingiu a AL, nossos vizinhos e parceiros na luta pela soberania e independência política, econômica e cultural do eurocentrismo e dos norte-americanos.

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Uma das estratégias para compreender e compartilhar as experiências coletivas e as respostas políticas sanitárias, sociais e econômicas de alguns países latino-americanos, de forma comparativa, foi apresentada no recém lançado livro La pandemia social de COVID-19 en América Latina. Reflexiones desde la Salud Colectiva, com foco em quatro países: Argentina, Brasil, Chile e México. O livro, que pode ser baixado gratuitamente a partir da página da editora Teseo (Buenos Aires, Argentina), teve a participação das autoras deste artigo e dos/as autores/as, aqui referenciados/as, em vários de seus capítulos. 

Outros temas também foram abordados nesse material bibliográfico: a situação da classe trabalhadora e os impactos na sua saúde na pandemia; o teletrabalho, o trabalho doméstico e a vida das mulheres; os desafios da crise sanitária e o direito à saúde e os impactos da pandemia na cotidianidade.

A construção do livro constituiu um espaço de discussão da política de saúde, considerada como fundamental na forma e na gravidade com que a pandemia iria chegar e se propagar em cada um dos países, de forma geral e, em nossas vidas, de forma particular.

 

Com tal finalidade, retomamos o pensamento da Medicina Social e da Saúde Coletiva latino-americana, que tem evidenciado o caráter social do processo saúde-doença-atenção. Dessa maneira, nosso olhar sobre a pandemia é crítico, histórico e se baseia na totalidade. Busca situá-la como consequência de um modo de vida destrutivo, tanto da natureza como dos seres humanos, resultante de um capitalismo perverso, sobretudo, em sua etapa neoliberal. 

 

A pandemia foi declarada situação de emergência sanitária por COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020. Os primeiros casos de adoecimento na AL foram detectados em fevereiro, no Brasil e no México, e, no início de março, na Argentina e no Chile.

 

Tratamos aqui de discutir, de forma resumida, como a pandemia chegou a esses países, imersos ou ainda sob o impacto de governos neoliberais, cuja premissa é “um estado mínimo”. Estados nos quais os sistemas de proteção social (saúde, previdência e assistência social) e educação têm sido desmantelados, intensificando-se as desigualdades na região, as quais se constituíram como cenário da pandemia latino-americana.

 

As assimetrias econômicas, políticas e sociais têm determinado que a maior carga de doenças e mortes se distribui entre os grupos que sofrem por dificuldade de acesso e qualidade dos serviços de saúde, baixa proteção social, perda de direitos e benefícios, condições precárias de trabalho, ineficiência de políticas públicas de acesso a água e saneamento, eletricidade, transporte público e moradia de qualidade.  Além de políticas internacionais com intenções, veladas ou não, de desrespeito e/ou dominação dos povos latino-americanos. 

 

No âmbito do Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (2020), dados da Iniciativa de Pobreza y Desarrollo Humano demonstram que aproximadamente um quarto da população da AL vivia e ainda vive sob risco de contrair coronavírus. Tal constatação está baseada em três indicadores de cálculo para o risco de contágio de COVID-19 na região (não acesso à água potável, uso de combustíveis nocivos nas residências e desnutrição). 

 

Diante disso, argumenta-se que na AL, a COVID-19, além de ser uma doença infecciosa viral aguda, que atingiu inicialmente os grandes centros urbanos, se caracteriza como uma pandemia social e potencializa as desigualdades de gênero, raça/cor/etnia, geracional, situação de migração, entre outras.

 

Notas acerca de alguns países da América Latina na pandemia de COVID-19

 

A Argentina, que tem experimentado uma grave crise política e econômica, transita do regime neoliberal para um sistema que se propõe ser mais à esquerda, desde 2019. Neste cenário, em março de 2020, o governo decretou emergência sanitária (ASPO) e isolamento preventivo e obrigatório, com exceção dos “trabajadores esenciales”. Isto caracterizou o país como um dos que teve respostas mais rápidas, em consonância com as orientações epidemiológicas e sanitárias. Este caráter de isolamento precoce teve como resultado maior o achatamento da curva, possibilitando que os serviços de saúde se organizassem para enfrentar o crescimento dos casos que viriam logo após. Neste sentido, mesmo que o governo tenha respondido de maneira positiva no início da emergência sanitária, a pandemia se espalhou por todo o país e, ao final de 2020, atingiu taxas elevadas de contaminação e de mortalidade. A Argentina também foi um dos países que, na América Latina, primeiro buscou vacinas como estratégia para controlar a COVID-19.

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Cartaz de campanha do governo argentino incentivando as pessoas a permanecerem em casa durante a pandemia. Marcia Carmo/BBC (reprodução da internet)

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Protestos chilenos de 2019 em Puerto Montt. Natalia Reyes Escobar/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0 (reprodução da internet)

Em vigência desse regime neoliberal em convulsão, as respostas do Estado se deram de forma a fortalecer a rede de saúde especializada, vigilância epidemiológica e de condições sociais e econômicas para implementar uma quarentena e instalação da tríade: detecção (teste RT-PCR), rastreamento e isolamento. A priorização dos recursos humanos e técnicos para o atendimento hospitalar (UTI e ventiladores) parece não ter sido suficiente para garantir a sobrevivência esperada da população. 

 

Embora o governo chileno tenha adotado uma postura mais propositiva em relação à vacinação, com rápido crescimento da cobertura de imunização, questiona-se a demora em colocar a Atenção Primária à Saúde como elemento fundamental para prevenção e controle da disseminação do vírus, como aponta Carmen Muñoz. Ressalta a autora que não houve uma política pública específica de apoio econômico para a população, sendo utilizados para pagamento de salários, em caso de demissões durante a pandemia, os recursos que integravam as aposentadorias e pensões.

 

A pandemia se instalou no México sob o efeito das reformas neoliberais (1983-2018) e incidiu sobre uma população majoritariamente empobrecida numa sociedade polarizada, com intensa desigualdade na distribuição de riquezas e oportunidade de acesso a bens e serviços. Observa-se uma elevada proporção da população vivendo com sobrepeso, obesidade, hipertensão e diabetes, condições que aumentam o risco de formas graves da COVID-19. Soma-se a esse panorama, o reduzido gasto público em saúde, de aproximadamente 2.5% do PIB. 

 

Nesse contexto, Javier Marmolejo e Roselia Rosales apontam que o governo mexicano evitou implementar medidas consideradas “coercitivas”. Ou seja, que obrigassem os cidadãos a realizar medidas individuais – sobretudo em razão das desigualdades sociais, trabalho informal e condições materiais de vida – sob a alegação de que poderiam propiciar o abuso de poder e intensificar as violações de direitos humanos numa sociedade reconhecidamente violenta. Tais decisões, se não compreendidas criticamente, poderiam assumir uma face negacionista diante dos imensos esforços dos formuladores de política e profissionais de saúde no enfrentamento à pandemia. 

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Embora limitadas, algumas medidas econômicas foram implementadas por parte do governo mexicano de apoio às pequenas e microempresas. Agência Brasil EBC (reprodução da internet)

Apesar das iniciativas de aumentar a capacidade de atenção hospitalar, a recente política de universalização e gratuidade à saúde não conseguiu absorver toda a demanda advinda da pandemia e as desigualdades em saúde impactaram diretamente na probabilidade de adoecer e morrer, por precariedade no cuidado ou atenção tardia entre aqueles que não dispunham de seguro social ou de saúde. 

 

Algumas medidas econômicas foram implementadas por parte do governo mexicano, como apoio às pequenas e microempresas formadas por trabalhadores/as e famílias e plataformas para que pudessem oferecer seus produtos (mercado solidário), entre outras medidas específicas adotadas por cada entidade federativa. Na Cidade do México, por exemplo, foram assegurados apoios sociais, como o kit médico COVID-19, seguro desemprego, vales de alimentos e outros específicos para grupos em situação de maior vulnerabilidade social.

 

Enquanto isso, no Brasil...

 

A pandemia, também chamada de caso brasileiro, instalou-se em fevereiro, em pleno carnaval que, apesar das grandes aglomerações, não foi objeto de maior discussão acerca dos riscos para a população. 

 

Embora tenha sido declarada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) no início de março, as imagens que chegavam de pessoas morrendo sem respiradores e leitos de UTI pareciam peças de ficção e nunca uma projeção do que viveríamos a partir do mês de março de 2020 até hoje, 14 meses depois.

 

O Brasil entrava no segundo ano de um governo de extrema direita, que se elegeu com proposta de desmonte de políticas públicas, retirada de direitos e perseguição a minorias, intensificando o desmantelamento dos sistemas de proteção social e de atenção universal à saúde. Este contexto político explica a inércia em lidar com os primeiros casos e mortes, o que já acenava para uma epidemia superposta, que, no livro, denominamos a “epidemia do desgoverno”. 

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O Brasil tornou-se epicentro da pandemia e já ultrapassou a barreira dos 440 mil mortos. Foto sem crédito/BBC (reprodução da internet)

Repetiram-se e ainda se repetem práticas e políticas sanitárias observadas durante a pandemia de gripe espanhola: o negacionismo, o uso político do processo de adoecimento, a difusão de curas/tratamento precoce (medicações e outras estratégias) não comprovadas cientificamente e, principalmente, o abandono social e econômico e a falta de empatia e solidariedade para com as populações periféricas (pobres, pretas/os, desempregadas/os, e outras populações específicas: encarceradas, deficientes, etc.). 

 

A falsa dicotomia entre sobrevivência econômica e medidas de segurança sanitária (morrer de fome ou de COVID-19?) gerou temor e desamparo na população, frente às perdas de pessoas queridas e a luta pela subsistência. Nesse sentido, sob pressão dos partidos de esquerda, o governo federal definiu um auxílio econômico emergencial temporário para setores da população, como trabalhadoras/es informais, autônomas/os, desempregadas/os. Ressalte-se, insuficiente para responder às necessidades da população.

 

E se, no início, vislumbrávamos ausência de liderança política capaz de manejar a emergência sanitária em um país de dimensões continentais, caracterizado por sucessivas epidemias, hoje, pode-se afirmar, após pesquisa realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA, 2021) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Conectas Direitos Humanos, que todas as ações vão além do desgoverno e negacionismo, mas representam uma escolha política pela propagação intencional da COVID-19 no Brasil. 

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No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro tem adotado uma política negacionista, promovendo aglomerações, desprezando o uso de máscaras e defendendo o uso de medicamentos sem comprovação científica. Alan Santos/PR/Fotos Públicas (reprodução da internet)

Tais estratégias, lideradas pelo atual presidente da República, consistem em obter uma suposta imunidade coletiva (rebanho). Dentre essas, a postergação da obtenção de vacinas, mesmo na presença de dois centros de pesquisa com capacidade potencial de produzi-las (Instituto Butantã e Manguinhos/Fiocruz), este último, inclusive, vinculado ao Ministério da Saúde, e de um Programa Nacional de Vacinação (PNI) respeitado mundialmente.  

 

Por fim, estamos diante de mais de 15 milhões de casos confirmados e 440 mil mortes registradas (considerando a subnotificação em ambos os indicadores) e cuja cobertura vacinal encontra-se abaixo de 20% da primeira dose e menos de 10% da segunda dose. No final de abril de 2021, foi instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da COVID, no âmbito do Congresso Nacional, com a finalidade de investigar e apontar responsáveis pela criminosa resposta do governo brasileiro à maior crise sanitária dos últimos séculos no país.

 

A modo de conclusão 

 

A proposta de refletir sobre a pandemia de COVID-19 em alguns países da América Latina nos remete às profundas desigualdades existentes na região – econômicas, políticas, de gênero, territoriais, raça/cor/etnia, geracional, em saúde, entre outras – e as relações destas com as repercussões da crise sanitária. 

 

De maneira geral, o desmantelamento dos sistemas de proteção social e a destruição de direitos, processos fundamentados nas políticas de cunho neoliberal implementadas na AL, constituíram o cenário para que a crise sanitária nos atingisse de maneira ainda mais avassaladora, pois a precarização da vida propiciou que as respostas individuais e coletivas fossem insuficientes para garantir a sobrevivência e a vida de muitos/as latino-americanos/as. 

 

Respostas a emergências sanitárias adequadas na região exigem transformações estruturais que rompam com a hegemonia capitalista neoliberal, colonialista e patriarcal; e demandam investimentos na construção de mecanismos de proteção social robustos, com ênfase nos sistemas de saúde gratuitos e universais, em consonância com os princípios do que deveria ser, idealmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. 

Segundo Martín Boy, em capítulo de nosso livro, a dissonância entre as respostas rápidas à pandemia e a incapacidade em contê-la se justifica porque as medidas conjunturais (sanitárias e econômicas) não conseguiram impactar sobre as desigualdades estruturais de grupos relegados pelas políticas públicas e de inclusão dos últimos tempos (emprego, pobreza, indigência, acesso a água e saneamento, moradia, etc.). Ou seja, confirma como a pandemia escancara as desigualdades sociais, exacerbando o desamparo e que, muitas ações, por mais acertadas que sejam, não resolvem de imediato iniquidades historicamente vivenciadas. 

 

No Chile, a pandemia chegou em meio a uma grande crise social, na qual milhões de pessoas estavam indo às ruas contra o impacto do neoliberalismo nas suas vidas e da qual emergiu a proposta de instalar uma nova Assembleia Constituinte. A necessidade de isolamento social como mecanismo de proteção individual e coletiva, reformulou, como resposta solidária, a continuidade da luta política.

AS AUTORAS
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Sandra Valongueiro é médica e sanitarista com mestrado em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorado em Sociologia pela Universidade do Texas (Austin/EUA), e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco (PPGSC/UFPE). É integrante da coordenação colegiada do Comitê Estadual de Mortalidade Materna de Pernambuco.

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Camila Pereira Abagaro é doutora em Ciências em Saúde Coletiva e mestra em Ciências em Saúde dos Trabalhadores pela Universidade Autônoma Metropolitana-Xochimilco e pós-doutoranda em Saúde Coletiva no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco (PPGSC/UFPE). É professora substituta na Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA) e professora colaboradora no PPGSC/UFPE.

COMO CITAR ESSE TEXTO

VALONGUEIRO, Sandra; ABAGARO, Camila Pereira. Considerações sobre a pandemia social de covid-19 na América Latina. (Artigo). In: Coletiva - Política e Cidadania. nº 17. Publicado em 28 maio 2021. Disponível em https://www.coletiva.org/politica-e-cidadania-n17-pandemia ISSN 2179-1287.

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