especial
A resiliência que vem da periferia
Coletivos encontram estratégias para garantir a sobrevivência em seus territórios em tempos de emergência climática
Reportagem: Letícia Barbosa
Entrevistas: Letícia Barbosa e Marcela Aquino
Edição e Revisão: Cristiano Borba
Alto Santa Terezinha.Foto: Letícia Barbosa/ Revista Coletiva
Tema de conferências e pesquisas, a emergência climática é um problema latente nos dias atuais. Medidas para mitigar os efeitos e alterar as condições do clima já são debatidas e inseridas em tratados e cooperação entre vários países. Entretanto, o problema ambiental cada vez mais se acentua ao se levar em consideração a desigualdade socioeconômica com recorte racial que permeia as espacialidades, sobretudo, urbanas do Sul Global: as periferias.
Nos últimos anos, moradores e moradoras de regiões periféricas de todo o mundo são 15 vezes mais afetados por secas, enchentes, tempestades e outros fenômenos que acontecem com mais frequência, como revela o segundo volume do sexto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU). Até 2030, e especificamente nessas regiões, a previsão é de que o número de pessoas vivendo em escassez hídrica e sob o aquecimento do planeta de 1,5°C chegue a 350 milhões.
No Brasil, o Governo Federal estima que 1.942 municípios com alta suscetibilidade a eventos extremos sejam afetados com deslizamentos de terra e inundações. Pernambuco ocupa o terceiro lugar na lista de estados que abrigam áreas de risco, com 11,6% da população vivendo em situação de vulnerabilidade ambiental. Com base nesses dados e projeções, a resiliência climática nas periferias é uma questão de sobrevivência.
O filósofo e liderança indígena Ailton Krenak nomeia como “subhumanidades” o ser e estar daqueles que insistem em subverter a lógica da civilização construída a partir da segregação entre natureza e humanidade, com a subordinação da primeira em relação à segunda. Essas comunidades percebem a terra e a Terra como um dos seus, e não como recurso a ser unicamente dominado e explorado.
Neste cenário, coletivos e associações têm atuado país afora em diversas frentes e redes para mitigar os efeitos já sentidos das mudanças climáticas e reivindicar medidas contra o racismo ambiental e pelo direito ao seu território. O relatório do IPCC destaca de forma otimista que iniciativas de adaptação já comprovadas como eficazes são potencialmente relevantes para a resiliência diante da crise climática e até mesmo para a promoção do desenvolvimento sustentável. Para isso, o investimento nessas ações é fundamental. E as periferias têm dado aula nesse sentido, por meio de soluções criativas e atuação em diferentes aspectos do problema.
A Coletiva conversou com organizações de Pernambuco e de outras regiões que contaram sobre suas articulações e formas de resistência.
Comunicação como forma de ação, do Alto Santa Terezinha
Na comunidade Alto Santa Terezinha, em Água Fria, na Zona Norte do Recife, Victor Moura iniciou seus trabalhos usando sua bicicleta para transitar pela capital pernambucana enquanto cursava jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi assim que desbravou a maior parte do território que acompanha o curso do Rio Beberibe.No início de 2024, o jornalista resolveu enfrentar o deserto de notícias que se mantém nos morros e córregos da região e criou a iniciativa Redes do Beberibe. O objetivo é transmitir informações e ser ponte de transparência de dados públicos para moradores e moradoras dos bairros por meio da comunicação hiperlocal - com todo o conteúdo focado no território -, sendo as redes sociais as principais ferramentas.
Victor Moura percorre as escadarias e ladeiras do Alto Santa Terezinha. Foto: Letícia Barbosa/ Revista Coletiva
Victor conta como o impulso para a Redes veio das próprias andanças e pedaladas pelo território em que vive desde que nasceu. “Eu via que a gente vivenciava problemas parecidos e comecei a rodar aqui nas vizinhanças de Água Fria, todas essas áreas de morros na área da Zona Norte, e entender que existe uma unidade em torno de um território que historicamente sempre foi escanteado. Porque o Capibaribe sempre foi das terras mais valiosas da cidade, sempre foi terra da elite pernambucana. E o Beberibe tem uma geografia que, sobretudo nesta área de muitos altos e córregos, é de uma realidade mais difícil de ocupação. Então são os terrenos que sobram que ficam nas mãos de pessoas que têm menos condições financeiras. Eu pensei: ‘por que não tentar fazer um projeto para unificar, pensar o jornalismo hiperlocal, próximo do dia a dia das pessoas e que abarcasse uma das principais bacias geográficas do estado do ponto de vista sócio-histórico-cultural?’”, revela.
Material impresso produzido pela Redes do Beberibe. Foto: Letícia Barbosa/ Revista Coletiva
O projeto traz também referência a outra organização semelhante, a Redes da Maré, no Rio de Janeiro. “Eles unificam cerca de catorze comunidades e formam um Complexo da Maré. Eu pensei: ‘por que não criar um Complexo de Beberibe?’ Meio que importei essa ideia que tem lá no Rio de Janeiro, de unificar comunidades pensando essa perspectiva social, mas também perceber a perspectiva ambiental, porque eu enxergo muito Beberibe muito além de Recife. Do ponto de vista da natureza, não existe esse tipo de divisão”, acrescenta Victor.
Victor defende que a sua periferia é o real Centro do Recife, em um movimento de subversão da perspectiva de marginalização da região periférica. Enquanto a área central da cidade passa por um período de menor dinamismo, com significativa parcela do comércio fechado e o agravamento da violência, os bairros periféricos são onde as pessoas ocupam como seu verdadeiro lugar. “Eu uso bastante isso nos vídeos. Aqui é o centro do Recife, porque no Alto Santa Terezinha, Alto José Bonifácio, Alto José do Pinho, é onde tem a maior concentração de pessoas por metro quadrado. Toda casa que você vai tem família morando; não é espaço, casa que está abandonada, está tudo servindo à sua função social”, declara.
Ao contrário dos bairros de Santo Antônio, São José, Boa Vista, Santo Amaro e Bairro do Recife, o jornalista revela que se sente seguro na Zona Norte, pois lá há de fato uma ocupação, é onde há vida.
A constituição histórica do território também é outro aspecto que particulariza a Zona Norte para a Redes do Beberibe. “O Recife como cidade, como projeto de cidade, foi pensada para ser a Veneza brasileira, foi pensada para as planícies centrais da cidade, e alguns bairros que integram hoje a zona nobre. Toda essa área aqui é uma área de invasão, que vai até a Guabiraba, no extremo norte de Recife. Eu costumo dizer que essa parte é uma cidade autoconstruída, porque as pessoas foram subindo os morros, foram criando as primeiras escadarias, criando suas primeiras comunidades, não houve um projeto. Tudo aqui foi feito na base da resistência, da solidariedade entre as pessoas. A gente sempre vai falar de Recife como os rios e as pontes. Aqui a gente tem outra geografia, outro tipo de relevo, outro tipo de vegetação; e por isso que eu costumo dizer: isso aqui é outra cidade”, argumenta Victor.
A Redes do Beberibe, integrada também pela estudante de engenharia ambiental e irmã de Victor, Jamilly Moura, tem como principal instrumento as redes sociais. Por meio de reels, vídeos curtos no Instagram, Victor conta histórias dos bairros, incita reflexões e difunde dados sobre os territórios que seguem o curso d’água do rio que dá nome ao coletivo. Apesar de recente, a iniciativa já encabeçou três grandes projetos: um censo independente, um documentário e uma oficina para jovens periféricos.
A atual divisão de bairros do Recife foi feita em 1988 com o decreto municipal 14.452, que instituiu 12 RPAs (Regiões Políticas Administrativas)
Dessa forma, a Zona Norte é composta pelos bairros: Arruda; Campina do Barreto; Encruzilhada; Hipódromo; Peixinhos; Ponto de Parada; Rosarinho; Torreão; Água Fria; Alto Santa Terezinha; Bomba do Hemetério; Cajueiro; Fundão; Porto da Madeira; Beberibe; Dois Unidos; Linha do Tiro, que compõem a RPA 2.
E pelos bairros: Aflitos; Alto do Mandu; Alto José Bonifácio; Alto José do Pinho; Apipucos; Brejo da Guabiraba; Brejo de Beberibe; Casa Amarela; Casa Forte; Córrego do Jenipapo; Derby; Dois Irmãos; Espinheiro; Graças; Guabiraba; Jaqueira; Macaxeira; Monteiro; Nova Descoberta; Parnamirim; Passarinho; Pau-Ferro; Poço da Panela, Santana; Sítio dos Pintos; Tamarineira; Mangabeira; Morro da Conceição; Vasco da Gama. Todos da RPA 3.
Alto Santa Terezinha. Foto: Letícia Barbosa/ Revista Coletiva
Junto com outros grupos organizados do território, o Coletivo Fala Alto e o Minervino, além de voluntários, a Redes iniciou um recenseamento para entender a composição das famílias que vivem na região. Victor destaca que não há informações de quem são as pessoas que moram em área de risco, qual sua raça, gênero, idade ou se têm deficiência, por exemplo. “O objetivo é elaborar um relatório para entender quem são essas pessoas por trás dos números, ter uma radiografia humana de um dado público, para que a população se conheça, para que a gente possa levar isso para o Poder Público e apresentar demandas”, explica.
O Coletivo Fala Alto também se somou a Victor e Jamilly na produção de um documentário. O plástico preto e as casas sob risco em Água Fria visita pessoas em habitações vulneráveis no bairro para que falem sobre as dificuldades que enfrentam. Victor conta que, assim que o filme for lançado, tem a intenção de levá-lo a diferentes equipamentos públicos e ampliar o debate sobre o assunto. Mas essa não tem sido uma tarefa fácil. “É muito difícil fazer a circulação porque existem muitas resistências de pessoas, de [ocupantes de] cargos comissionados, de instituições que temos aqui, de vereadores, de pessoas que não querem uma voz dissonante, uma voz crítica dentro de um contexto desses”, revela.
Mais recentemente, o Redes do Beberibe foi selecionado pelo edital Jovens do Clima, pelo qual submeteu uma oficina teórico-prática sobre os territórios da Zona Norte. Com encontros desde outubro, a iniciativa prevê levar a informação à juventude de comunidades que integram a Bacia do Beberibe. “A gente quer fazer a conexão entre moradores, juventude e especialistas com suas pesquisas, ter essa troca. Eu gosto muito quando a academia chega para esses lugares, porque a pesquisa chega às pessoas e os pesquisadores entendem as demandas da população”, declara Victor.
A ideia é sempre fazer uma rede. “Pode ser um caminho para eles entenderem que fazem parte de algo muito maior; que têm as dificuldades particulares, mas integram uma coletividade que tem problemas parecidos, tem vivências muito parecidas. Então, por que não a gente se unir?”, completa o jornalista.
Várzea: assistencialismo onde o Poder Público não dá assistência
Foi com o intuito de proporcionar um espaço terapêutico, lúdico e recreativo para crianças e adolescentes que em 2018 surgiu o Gris Solidário. Com base de atuação na Vila Arraes, no bairro da Várzea, na zona oeste da capital pernambucana, Joice Paixão e a dupla Artur Eugênio e Tia Joicinha uniram forças para materializar a organização.
Joice Paixão na premiação Periferia Viva 2024. Foto: Reprodução de redes sociais
Cientista Social, Joice Paixão é quem permanece hoje na coordenação da entidade. Ela, que morou na comunidade durante sua graduação na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), conta que se surpreendeu quando retornou ao território e percebeu o quão vulnerável os moradores e moradoras estavam diante da carência de serviços diversos. E foi isso que motivou a criação do Gris Solidário.
A instituição passou pouco mais de um ano servindo aos seus fins originais, mas logo os integrantes se deram conta que precisavam ampliar o público-alvo. “Foi quando a gente teve o ‘clique’ que não adiantava trabalhar só com as crianças e os adolescentes se não trabalhar com os responsáveis primários deles. Em boa parte das situações, a gente meio que estava ‘enxugando gelo’. Então, a partir do segundo ano, tivemos a ideia de fazer o acolhimento familiar”, relata Joice.Em 2020, mais uma virada de chave: a pandemia de Covid-19 exigiu do grupo um posicionamento fundamentalmente assistencialista. Distribuição de kits de higiene e cestas básicas, ações como a instalação de pias em pontos de grande movimentação da Vila Arraes e mediação com unidades de saúde foram algumas das tarefas assumidas pelo Gris naquele período.
A comunicação, por sua vez, também foi uma frente de atuação da ONG. “Criamos uma estratégia de comunicação que fosse mais eficiente e que não fosse terrorista – que ficasse assustando as pessoas sem um processo de resolutividade. A gente gravou vários spots que ficava com aquela bicicletinha de som passando na comunidade”, conta a coordenadora do Gris.
Em maio de 2022, vários bairros do Recife foram atingidos por enchentes em decorrência de chuvas em proporções muito superiores ao esperadopara o período. Ao todo, Pernambuco teve 133 vítimas fatais, e a Vila Arraes foi uma das comunidades mais prejudicadas. Mais uma vez, o Gris Solidário precisou se adaptar às novas necessidades e garantir o acolhimento das famílias. Além disso, a pauta ambiental mostrou-se urgente para a organização.
Nos últimos dois anos, Joice e companhia têm se tornado referência de planos e ações para comunidades vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas e no combate ao racismo ambiental. Entre as principais iniciativas, estão a produção de documentários, o censo comunitário, oficinas diversas para crianças e adultos e a introdução da metodologia do mapeamento participativo do território.Junto com professores e estudantes da UFPE, a comunidade da Vila Arraes elaborou um relatório detalhado das peculiaridades da região. Ao todo 178 casas situadas em áreas mais vulneráveis foram mapeadas por um força-tarefa que envolveu arquitetos, engenheiros e integrantes dos projetos TropoClima* e TIG Periferia**, da UFPE. Para isso, um processo de letramento climático foi primordial para garantir a integração dos moradores e moradoras. “A ideia foi a gente criar um processo de letramento climático dividido em duas etapas. A primeira é conversar justamente sobre o que é racismo ambiental, vindo dessa estrutura do racismo institucional; fazer esse entendimento de que o racismo ambiental não é só meio ambiente, mas faz parte de uma rede toda estruturada que envolve saúde, educação, moradia, enfim todo o restante. A segunda parte é mais técnica, falando, por exemplo, sobre riscos”, explica Joice.
Durante a formação, a comunidade pôde se apropriar de conceitos como os que se referem ao grau de risco da residência, contribuir com a construção de rotas de fuga em caso de emergência, fazer a leitura de mapas e manusear aplicativos que ajudam na prevenção de desastres. “Eu lembro que a gente fez essa oficina numa quarta-feira, e no final de semana choveu; e as mulheres mandaram para mim o print da imagem do satélite identificando o risco”, conta a coordenadora do Gris.
Outra iniciativa foi a confecção de pluviômetros caseiros com garrafas PET. O instrumento permite mensurar o que representa para o território determinada quantidade de chuva. “Se a casa for na rua General Polidoro, onde tem sistema de drenagem funcionando direito, 100 milímetros de chuva vão ter um efeito. Mas se for aqui na Vila Arraes, nas Malvinas, Império ou Beira Rio, vão ter outro efeito completamente diferente”, defende Joice ao se referir aos impactos diferentes das chuvas de 2022 em localidades tão próximas, mas com realidades muito distintas.
Para Joice, o mapeamento participativo potencializa as reivindicações da comunidade, permitindo que a própria população tenha ciência do que precisa e do que é possível fazer para resolver a situação de vulnerabilidade. “A ideia é criar uma rede de monitoramento mesmo, e que seja construída com os territórios e pelos territórios, para que a gente consiga inclusive transformar isso em dados e a partir daí estabelecer uma negociação com o Poder Público”, afirma.
A cultura como ponto de partida no Ibura
* O Grupo de Estudos em Climatologia Tropical e Eventos Extremos (TropoClima) é ligado ao Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Seu objetivo investigar os sistemas climáticos e a ocorrência de eventos extremos, com foco na interação oceano-atmosfera e energética da atmosfera. As pesquisas são realizadas por meio de dados observacionais, de sensoriamento remoto e de modelos numéricos de previsão do tempo e clima, bem como atividades de campo, com coleta de dados, com o intuito de gerar conhecimento sobre a temática pesquisada subsidiando tomadas de decisão para políticas públicas de curto, médio e longo prazo.
**Tecnologia de Informações Geográficas nas Periferias (TIG Periferia) é um projeto de extensão do Departamento de Ciências Geográficas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) dedicado a levar às comunidades periféricas o conhecimento produzido na academia para que a população possa aplicá-lo de acordo com suas demandas.
Foto: Isabela Alcântara/ Multilab-Fundaj
O Ibura, na Zona Sul da capital pernambucana, é o 6º bairro mais populoso da cidade, de acordo com o censo de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2016, ocupava a 5ª posição em relação à quantidade de jovens entre 15 e 29 anos, ao mesmo tempo era o bairro que acumulava mais homicídios de pessoas nesta faixa etária.Diante desses dados, a advogada Lídia Lins e outros residentes do bairro perceberam que o incentivo a espaços de lazer abertos às diversas manifestações culturais da região poderiam subverter a realidade de violência e desigualdade. “A gente começou a se organizar para tentar gerar impacto e transformação social dentro das nossas comunidades por meio da arte, da cultura, da educação, da tecnologia”, ela conta.
Lídia Lins esteve presente na COP29 no Azerbaijão em 2024.
Foto: Reprodução de redes sociais
Dessa movimentação, surge o coletivo Ibura Mais Cultura. A organização aos poucos precisou abraçar outras demandas de acordo com a necessidade de seu território berço. Assim como o Gris, a pandemia, e logo depois as chuvas de 2022, exigiram um posicionamento assistencialista.O Ibura foi o bairro que sofreu o maior número de mortes em decorrência das enchentes e deslizamentos naquele período. Com arrecadação de itens e a montagem de uma cozinha solidária quando a comunidade ficou sem fornecimento de energia e água, Lídia e seus companheiros de coletivo contribuíram para a sobrevivência de seus pares. “Desde o primeiro momento começamos a atuar, porque além de ser um coletivo, uma organização que está dentro da comunidade, traçando projetos e buscando fazer enfrentamento dos diversos tipos de violência, nós também somos moradores. Então naquele momento nós também fomos atingidos de alguma maneira. Não podíamos ficar de braços cruzados”, aponta a advogada.
Nesse cenário, o despertar para o problema da injustiça climática que atinge as áreas de morro e as periferias em geral foi inevitável. “A gente percebeu que nossa atuação não poderia se alimentar só naquele momento emergencial, e precisávamos também voltar nossos esforços para essa capilaridade política para fazer a incidência mais contínua na pauta, entendendo que aquele evento climático extremo no inverno em 2022 não foi algo pontual, e poderia acontecer novamente”, relata Lídia.Dali em diante, articulações importantes se somaram a essa luta. Em 2024, o Ibura Mais Cultura, ao lado de mais nove coletivos pernambucanos, como o Caranguejo Tabaiares e o Centro Popular de Direitos Humanos, passou a integrar a Rede por Adaptação Climática Antirracista, formada por mais de 50 organizações distribuídas em 15 estados brasileiros.Com isso, o coletivo contribuiu com uma das propostas a serem votadas para integrar o Plano Nacional sobre Mudança do Clima (Plano Clima), que terá validade entre 2025 e 2035. “Nós apresentamos o conceito de Adaptação climática antirracista. Apresentamos a proposta de que esse conceito seja levado em consideração na construção do plano e das políticas que virão a partir dele, o que inclui a redução de desigualdades, a produção de dados de desabrigados indicando gênero e raça e a diversidade territorial e de biomas. Além disso, o próprio combate ao racismo que é fato gerador das lógicas que são construídas na sociedade e que resultam nesse processo de segregação e de acesso ou não a políticas públicas”,pontua Lídia.
Lídia também faz parte da Rede Vozes Negras pelo Clima, com a qual levou as demandas do Ibura para eventos internacionais, como a COP28, em Dubai, a Conferência de Bonn, na Alemanha – intermediárias entre as COPs – e a COP29, no Azerbaijão.
Foto: Isabela Alcântara/ Multilab-Fundaj
As ações do Ibura mais cultura renderam ainda ao coletivo o primeiro lugar da primeira edição do Prêmio Periferia Viva, realizado pelo Ministério das Cidades, através da Secretaria Nacional de Periferias. A colaboração com o órgão federal também se deu durante a Caravana das Periferias, em que representantes da secretaria percorreram várias regiões do território nacional para reconhecer agentes das comunidades e diagnosticar necessidades locais. Lídia e seus colegas receberam não só o projeto, mas uma ‘pré-caravana’ – uma espécie de aquecimento para a itinerância.
Para Lídia, essas conexões refletem a potência da articulação coletiva. “Para nós é muito importante enquanto o coletivo fizer esse movimento, porque o coletivo começou nessa atuação local.Hoje a gente consegue ter uma capilaridade nacional, e agora também vem galgando e ocupando espaços internacionais de discussão”, destaca.
Uma chuva no meio do caminho
Entre os dias 27 e 28 de maio de 2022, a Região Metropolitana do Recife foi atingida por chuvas em proporções não previstas para a época do ano. Ao todo 133 pessoas perderam a vida por deslizamento de terra. O evento climático extremo evidenciava aquilo que as periferias já vinham enfrentando há anos: o descaso com a vida. Para os coletivos locais, agir não era opção, e sim sobrevivência.
A Redes do Beberibe ainda não existia oficialmente em 2022, mas Victor, morador de área de alto risco, sentiu junto com sua comunidade os impactos da falta de infraestrutura adequada para resistir aos períodos chuvosos. “A gente tem regras no inverno, como não poder lavar prato quando tá chovendo, porque a pia fica muito próxima à encosta, não lavar roupa. Tem todas as regras que os meus pais falavam: ‘olha, daqui tu não passa, porque é perigoso’. Nesse processo, você ficava olhando a paisagem, vendo quando a chuva vem e o caminho que ela está fazendo; qual o momento que eu tenho que sair porque ela vai vir, ou eu tenho que me resguardar. É muito [o caso] de entender esse processo geográfico, climático”, conta o jornalista.
Já o Gris Solidário precisou adaptar sua proposta inicial à necessidade de luta por justiça climática da Vila Arraes a partir de 2022. Joice evidencia as dificuldades do acolhimento das pessoas em situação emergencial pela ausência de cuidados básicos do serviço público. “As pessoas não sabiam que remédio tomavam. Nós fomos até a unidade de saúde básica e quando chegamos lá para tentar resgatar o prontuário dessas pessoas para saber o que elas tomavam, não conseguimos ter acesso ou estava muito desatualizado”, comenta ela. A experiência levou a campanhas pela ‘bolsa sobrevivência’, que consiste em preparar um conjunto de roupas, documentos, medicação e o que mais for necessário, de forma emergencial, para casos em que for preciso deixar a residência de imediato. O Gris também passou a se disponibilizar para digitalizar a documentação da comunidade e manter o registro.
Para o Ibura Mais Cultura, a reivindicação para que a tragédia de 2022 não se repita ganhou ainda mais um capítulo. Um de seus integrantes, Túlio Seabra, foi detido em 2023 durante um ato pacífico em referência às vítimas. Lídia não tem dúvidas em definir o que aconteceu: “um homem negro retinto foi o único manifestante detido naquele ato”.
As diversas facetas do racismo atingiram as periferias naquele contexto. “A gente é vítima do racismo ambiental dentro desse contexto da ausência de políticas públicas socioambientais para você conseguir conviver num meio ambiente saudável e equilibrado, que envolvem uma série de outras políticas para garantia de direito à moradia, segurança etc.”, defende Lídia. E o mesmo governo ausente na prevenção é o que pune a reivindicação. “Para a gente foi muito simbólico, porque o município de Recife, que tinha responsabilidade de prestar apoio a essas vítimas das chuvas e fazer toda a atuação e aparato, não fez naquele momento, em 2022”, completa.
A resistência que vem das periferias
Medidas de mitigação para a crise climática vêm sendo discutidas no mundo todo, ao mesmo tempo que há desafios impostos pelos interesses estritamente econômicos para que negociações nesse sentido avancem. Enquanto isso, os territórios periféricos já sofrem com os efeitos do problema e não podem ficar parados. Aílton Krenak nos lembra que o mundo em que vivemos hoje é aquele moldado por nossos antepassados recentes. Da mesma forma, o que estamos construindo hoje será o que deixaremos para os nossos descendentes. Assim, ele propõe uma espécie de paraquedas colorido, e até divertido, para suavizar a queda, mas sem de forma alguma ignorar que ela está em andamento.
A Redes do Beberibe, o Gris Solidário e o Ibura Mais Cultura são alguns exemplos de como as periferias têm se movimentado no Recife para pensar e materializar medidas de adaptação para sua comunidade. Victor, Joice e Lídia não têm dúvidas que a grande potência da atuação dos coletivos está nas iniciativas idealizadas por quem vive aquela realidade.
Para Victor, a comunicação comunitária se diferencia por ser feita de dentro do território por aqueles que também são beneficiados por ela. “O jornalista historicamente está sempre visitando lugares: ele vai com a comunidade, vai prestar um serviço, ouvir a demanda do morador. Mas quando a gente está aqui no dia a dia consegue observar alguns detalhes, consegue aprimorar a nossa apuração”, afirma. Colocar em foco os problemas locais o tempo todo é outra característica. “Por exemplo, eu apuro áreas de morro o ano inteiro, mas historicamente a mídia foca em área de morro no período entre março e junho, que é o período chuvoso. E [eu estou] entendendo não só meio ambiente, mas entendendo moradia, como as coisas são interligadas”, continua.
Essa comunicação hiperlocal ultrapassa ainda as barreiras do jornalismo. “Você não pode ser só ser jornalista. Na comunicação periférica, você precisa ser assistente social em alguns momentos, precisa ser psicólogo em alguns momentos; e você ajuda por entender as dinâmicas. Às vezes, você não vai contar aquela história que pode expor o morador, pode ser perigoso; ou também vai levar e encaminhar aquela história para um advogado, para o Ministério Público, para os órgãos competentes. Você auxilia aquela comunidade, aquele morador, porque, pelo contexto de vulnerabilidade, muitas vezes as pessoas não sabem a quem procurar”, completa o criador da Redes do Beberibe.
Para Joice, o movimento é de diminuir a verticalização das decisões. “Eu acho que a maior potência está em replicar o que cada território faz. Então, por exemplo, o plano que a gente fez aqui, todo o material que a gente produz aqui, é basicamente uma tecnologia aberta”, declara. Ela pontua que o relatório elaborado com participação da comunidade em todo o processo pode servir inclusive para guiar o poder público e, claro, também para outros bairros. “A ideia é replicar esses conhecimentos em outros territórios, e eu acho que, para além de tudo, a partir do momento que a gente consegue girar essa chave pras pessoas começarem a fazer essa leitura mais crítica, você consegue ter mais pessoas incidindo politicamente”, conclui.
Lídia também defende uma gestão mais participativa. “O conceito de adaptação está em disputa. Se você for pensar em alguns países, as pessoas estão discutindo a adaptação climática pensando em seguro de casa. Como é que você vai pensar numa realidade dessa num lugar que você nem tem casa ou que você mora de aluguel? Essa solução não é válida. Pensar em adaptação é pensar nas características locais, não tem como ser receita de bolo, não tem como ser uma proposta já pronta. E a gente não tem tempo a perder, porque esse tempo custa a vida da gente, ele custa saúde mental, ele custa a segurança, ele custa a trajetória de vida das pessoas”, pontua.
Nesse sentido, a representante do Ibura Mais Cultura acredita que é fundamental o incentivo às iniciativas que já vêm dando certo. “Precisa ter espaço, precisam ser construídas condições objetivas para essas pessoas participarem. O governo brasileiro precisa pensar em estruturas de apoio para essas organizações que estão nos territórios, que estão lidando diretamente, fazendo muitas vezes o papel que é do Estado, mas de forma sobrecarregada por estarem nesses espaços. O papel da sociedade civil é importante e deve existir, mas não deve se confundir com o papel do Estado. Nunca! O Estado precisa garantir e assumir suas responsabilidades”, reflete.
Enquanto isso, medidas paliativas, como instalação de lonas plásticas em barreiras e remoção de famílias de seus territórios têm sido os principais meios de intervenção por parte do poder público. A tendência de agravamento dos eventos climáticos extremos e a dificuldade de acordos internacionais que resolvam o impasse globalmente, entretanto, evidenciam que apenas resiliência não é mais suficiente. É preciso dar soluções efetivas para os territórios periféricos, e isso, como demonstram os coletivos, só será possível ouvindo as demandas das populações locais.
Afinal, pensar em território é considerar a vida das pessoas em todos os sentidos, desde a sobrevivência até a rede de afetos. Joice define as políticas de remoção como violentas. “[As remoções] não levam em consideração que toda a história de vida da pessoa está naquele território. Se você faz esse recorte virado para as mulheres, por exemplo, você tem a rede de apoio daquela mulher que está no território; muitas vezes a questão financeira dela está lá, é uma mulher que é empreendedora, faz unha, faz sobrancelha, faz cabelo, vende Avon. Enfim, aquele território é o local também de trabalho dela. Quando você pega arbitrariamente essa mulher com essas crianças e coloca a 4 km de distância, num habitacional, você quebra toda a história que aquela pessoa tem, porque normalmente quem mora em casa tem um quintalzinho, um corredor de casas em que todos são parentes ou se conhecem, que é uma área segura para as crianças brincarem porque tá dentro do seu território. Quando vai para o habitacional, essa criança não tem mais local para brincar, ela fica confinada. Se tira dessa mulher a rede de apoio que ela tem para cuidar das crianças, coloca essas crianças longe da escola”, explica.
Além disso, o recurso ofertado para pessoas removidas costuma ser insuficiente e promover mais vulnerabilidade. “Quando você tira essa pessoa desse lugar e coloca ela no auxílio moradia de R$ 300,00, ela não consegue alugar nada. Ela consegue até alugar uma casa tão precarizada quanto a que morava, também em local de risco. Então, o que se faz é uma dança das cadeiras com o risco, só que esse risco é a vida das pessoas”, desabafa Joice.
Moradora do Ibura desde que nasceu, Lídia acredita que o pertencimento é um elemento fundamental nesse debate: “O território da gente tem a ver com a nossa identidade, tem a ver com a nossa própria essência. Então, quando tentam tirar isso da gente, mexem diretamente com a nossa vida, com esse processo dessa identidade que a gente vai construindo coletivamente”.
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