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Reportagem

A importância do diálogo inter-religioso

Maria Luiza Alves

Conflitos religiosos são comuns tanto em Estados religiosos quanto em países onde o Estado é oficialmente neutro com relação à religião, os Estados laicos, como é o caso do Brasil.

Apesar destes conflitos, surgem também iniciativas de diálogo. Muitos religiosos acreditam que se pode alcançar um objetivo comum de convivência harmônica mesmo quando os preceitos e práticas religiosas são diferentes entre si, pensando-se no respeito às diferenças. Entre eles, há os teólogos pluralistas, estudiosos que desenvolvem reflexões acerca do pluralismo religioso e que defendem que as religiões do mundo compartilham de muitos valores semelhantes: o amor, a compaixão, a igualdade e a honestidade.

 

É nesse cenário que surge o diálogo inter-religioso, espaço que tem o objetivo de dar foco às riquezas de tradições de fé distintas e mostrar como elas são fundamentais umas às outras. Um dos princípios para a criação desse espaço é a busca por diálogos sobre os problemas mundiais da atualidade, como guerras, violência, pobreza, questões de gênero e violação dos direitos humanos.

Para Gilbraz Aragão, coordenador do Observatório das Religiões na cidade do Recife, o diálogo inter-religioso nasce como forma de resposta para a realidade dos tempos modernos. “Os processos de globalização e os estudos históricos levaram ao reconhecimento de que aquilo que uma tradição descobre como inspirador é por causa de outras religiões e é para todas as outras religiões também”, afirma. Ele aponta que o marco referencial foi o Parlamento Mundial das Religiões, realizado na cidade de Chicago, no ano de 1893. “Ali reuniram-se responsáveis das principais linhagens religiosas para mútuo conhecimento e para buscar o lugar das religiões no desenvolvimento da humanidade”, complementa.

Ainda nesse período, embora já existisse o diálogo entre cristãos, chamado de movimento ecumênico, as autoridades eclesiásticas católico-romanas recusavam-se a participar das iniciativas que visavam promover diálogo entre diferentes cultos. Apenas com o Papa João XXIII e a convocação do Concílio Vaticano II, em 1961, é que a Igreja Católica se coloca a favor do diálogo inter-religioso.

Na década de 70, diversos eventos inter-religiosos sobressaíram no cenário internacional, como a Conferência Mundial das Religiões em Favor da Paz, realizada no ano de 1970 em Kyoto, que continha na sua declaração final a convicção essencial da família e a necessidade de um compromisso das religiões em favor dos excluídos, e, também, a centralidade do tema da paz e da importância da união das religiões nesse processo.

INTOLERÂNCIA RELIGIOSA 

Um marco do diálogo inter-religioso no Brasil foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 1992 (Eco-92), na cidade do Rio de Janeiro, que contou com a presença de representantes de diversos credos como do hinduísmo, catolicismo, candomblé e judaísmo. “Foi uma experiência única para todos que participaram das atividades ocorridas na ‘aldeia sagrada’, que transformou o aterro do Flamengo com suas tendas espalhadas por todos os cantos: cerca de 3 mil fiéis de 25 religiões celebrando o compromisso com a defesa da integridade da Criação”, conta Gilbraz.

A importância desse diálogo se acentua diante da realidade de intolerância religiosa existente no Brasil. Os relatos de agressões são frequentes e se evidenciam face à maior visibilidade que é dada à diversidade religiosa atualmente. As queixas de discriminação religiosa são recebidas pelo disque 100, serviço que recebe demandas referentes a violações dos Direitos Humanos. No ano de 2015, essas denúncias tiveram um aumento de 273,15% em relação a 2014 e de 2015 para 2016 o número cresceu mais 36,51%, totalizando 759 denúncias. A maioria dos fatos ocorridos tem como vítimas membros de religiões afro-indígenas-brasileiras, que relatam ofensas dirigidas por praticantes de religiões cristãs contra seu espaços sagrados, membros e símbolos.

Apesar de serem alvo frequente de hostilização, os praticantes destas religiões apresentam uma propensão ao diálogo com outras religiões. É o caso dos membros do Terreiro de Santa Bárbara Nação de Xambá, mais conhecido como Casa de Xambá, localizado em um quilombo urbano que se organizou em torno do Terreiro, em Olinda, Pernambuco.

O Centro Cultural Bongar pertence à comunidade desse quilombo e localiza-se anexo ao Terminal de Ônibus Urbano Xambá, que ganhou o nome do Terreiro. Na Semana Santa de 2017, o centro cultural abriu suas portas para a encenação da “Paixão de Cristo” de uma escola da região. “Aqui nós conseguimos criar um respeito porque nos tornamos uma referência do bairro; ocorrem vacinações e projetos que beneficiam a comunidade. Existem Igrejas Protestantes e Paróquias próximas ao Terreiro e possuímos uma relação pacífica; ninguém nunca fez nada contra a nossa Casa”, relata Gleidson José da Silva, estudante de História e Direito e responsável pela administração dos projetos realizados pela Casa de Xambá.

Apesar disso, o cotidiano dos frequentadores do Centro Cultural Bongar é marcado por atitudes de desrespeito por parte de fiéis pentecostais que circulam diariamente pelo Terminal Integrado Xambá. O próprio nome do Terminal, na ocasião da inauguração em 2013, foi questionado em protestos de moradores evangélicos da região.

“Um padre que atuava nas proximidades do nosso terreiro realizava pregações na área descoberta da nossa Casa. Chegou a fazer cerca de dois ou três encontros e tinha um bom número de participantes. Mas, quando os responsáveis pela igreja souberam, ele foi afastado da Paróquia. O padre atual costuma promover discursos desrespeitosos e preconceituosos”, relata Gleidson.

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Foto: Acervo Xambá

Em 21 de janeiro comemora-se o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. É uma lembrança da morte de Mãe Gilda, do candomblé da Bahia, vítima de agressões cometidas por cristãos em 2000. “Pessoas evangélicas, muçulmanas e ciganas também foram agredidas, mas a intolerância religiosa no Brasil é muito racista e classista, refletindo uma negação da distribuição equânime dos Bens Comuns: valores cristãos são usurpados para se matar deuses e deusas dos índios e negros – e depois tirar suas terras ou desarticular suas lutas por direitos e dignidade”, acrescenta o coordenador do Observatório das Religiões, Gilbraz Aragão.

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Mãe Gilda de Ogum. Foto: Fundação Cultural Palmares.

Busto Mãe Gilda de Ogum. Foto: Foto: Elói Corrêa/GOVBA

A intolerância religiosa tem diversos componentes, entre eles os políticos e culturais. Exemplo disso são os fundamentalistas protestantes da América do Norte, que criaram um movimento político-teológico para ir contra cristãos liberais, que interpretam cientificamente a Bíblia e aceitam as causas do feminismo e do socialismo. A disseminação desse fundamentalismo tem criado um conservadorismo moral, que, ainda segundo Gilbraz, tem fundo aparentemente evangélico. “O movimento fundamentalista que cresce nas novas igrejas cristãs por aqui é como a migração de muçulmanos do Oriente para o Ocidente, em que o desejo desses grupos periféricos pelo consumo da cultura moderna vai se transmudando em ódio, aversão à ciência e à liberdade, perseguição de religiosidades e interpretações diferentes”, acrescenta.

A bancada cristã no parlamento brasileiro tem se mostrado a principal barreira na busca dos direitos de religiões de menor representação. Porém, alguns grupos vêm se articulando para reclamar esse espaço. “Atualmente existe uma forte presença de religiosos de matriz afro-brasileira em conselhos e grupos de trabalho em âmbito nacional e estadual, assim como o ativismo social vem ampliando as possibilidades deste segmento disputar espaço e representações sociais com outros grupos historicamente intolerantes”, afirma a antropóloga Christina Vital.

A formação da Frente Parlamentar de Terreiros no Congresso Nacional, no ano de 2011, trouxe mais visibilidade à causa, porém a representação ainda é pouca. Gleidson da Silva conta que um grande obstáculo é a falta de cumplicidade entre os grupos de Candomblés. “O momento em que vejo as nações darem as mãos é na caminhada dos terreiros, que acontece no mês de outubro e já está na oitava edição. Ali, antes de começar o ritual, com cada Pai de Santo representando uma nação, nós cantamos e depois saímos em caminhada todos de mãos dadas. Mas, no dia a dia, como cada grupo tem sua forma diferente de cultuar, então é cada um no seu gueto, sempre se tratando com respeito. Outro momento em que nos unimos é quando sabemos de alguma casa que foi invadida ou incendiada. As nações se unem junto com o Ministério Público, porque aquela pedra que caiu ali, pode um dia cair na minha cabeça”, relata.

“O direito de criticar dogmas e crenças, de quaisquer tradições religiosas ou convicções filosóficas, é assegurado como liberdade de expressão também pela nossa República e pelas democracias modernas, mas atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de crença ou de não ter religião são crimes inafiançáveis e imprescritíveis”, afirma Gilbraz Aragão. O desafio é encontrar a medida certa entre a liberdade de pensamento e o respeito pelo que é considerado sagrado para alguns grupos. “Felizmente, com a colaboração de espaços acadêmicos onde as pessoas podem tomar consciência da relatividade histórica das suas experiências absolutas do sagrado, tem crescido, junto com episódios violentos de intolerância, também o diálogo inter-religioso e intercultural. Os membros das diversas religiões têm percebido cada vez mais que os elementos que os unem são mais importantes do que os que os separam e é por aí que a intolerância religiosa pode ser enfrentada”, continua. Ele lembra também que o contrário da intolerância não é a tolerância e, sim, o respeito para um melhor diálogo e convivência.

Vários países ao redor do mundo incluíram cláusulas em suas constituições proibindo o estímulo e/ou prática de atos de intolerância religiosa. O Brasil é um deles, como se vê no Artigo 208 do Código Penal: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência”.

 MOVIMENTO INTER-RELIGIOSO

No Brasil, um dos grupos inter-religiosos que mais se destaca é o Movimento Inter-Religioso do Rio de Janeiro (MIR). Idealizado durante a Eco-92, evento que foi realizado por Dalai Lama e Dom Helder Câmara, o movimento surgiu com a ideia de criar um ambiente em que se pudesse trabalhar para um futuro de paz, harmonia e preservação e manutenção da vida e conta com a atuação de diversas matrizes religiosas: cristã, judaica, pagãs, afrodescendentes, indígenas e ordens de serviço.

“Com 25 anos de existência, o conceito trabalhado é o do articulador por área e por matriz. Trabalhando com as lideranças todas as semanas”, conta Graça Nascimento, coordenadora do movimento. Atualmente, o movimento recebe o apoio do Instituto de Estudos da Religião (ISER), Viva Rio e União das Religiões Unidas (URI).

O MIR possui cinco linhas de atuação, sendo a primeira delas, a chamada “Linha de Cura”, a qual entende que a espiritualidade é um meio pelo qual as pessoas buscam um suporte emocional e que existe uma diversidade de centros e locais onde esses indivíduos podem cuidar da sua espiritualidade e encontrar o seu caminho. A segunda é o “Ambiente”, que se dá pela participação do MIR em diversos conselhos da área ambiental, como os Conselhos Consultivos do Mosaico Carioca e do Parque Nacional da Tijuca, entre outros.

A terceira linha é a de “Direitos Humanos”, em que o MIR atua em conjunto com algumas instituições, uma delas é a Casa do Perdão, localizada no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, e liderada pela Mãe Flávia, conselheira nacional dos direitos humanos. Ali são debatidos assuntos sobre liberdade religiosa, sexualidade, entre outros.

Outra frente de ação é a “Linha da Cultura Viva”, que reconhece as antigas tradições que estão inviabilizadas por questões de dominância, entre elas estão as tradições pagãs, quilombolas, indígenas e de povos afrodescendentes. Por fim, há a área de eventos, em que o movimento é responsável pela realização de debates abertos ao público e das Aldeias Sagradas, onde se reúnem dezenas de tradições religiosas em dois ou três dias de atividades culturais, espirituais, terapêuticas e sociais, e se pratica a integração e o combate à intolerância.

Em tempos em que o Estado laico no Brasil é subvertido por meio de relações escusas entre religião, poder econômico e representação política, e em que o restante do mundo vê reforçadas as dimensões religiosas de conflitos entre povos, a luta contra a intolerância religiosa e a existência de iniciativas que promovem o diálogo inter-religioso se tornam ferramentas de transformação social da maior importância.

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