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07.12.2020

SIRÉ OBÁ  

A FESTA DO REI

Um texto de Onisajé com co-autoria de Thiago Romero


 

PERSONAGENS:

 

ATUANTE 01 – Mulher

ATUANTE 02 – Homem ou Mulher

ATUANTE 03 – Homem ou Mulher

ATUANTE 04 – Homem ou Mulher

ATUANTE 05 – Homem ou Mulher (Atuante que cante)

CENA 1: A DIVINDADE DO HUMANO

 

(Atuantes surgem cantando para Exu, realizando um Cortejo de Abertura). 

Canto para Exu:

 

Ibarabô, agô  mojubá

Egbá koxé

Exu Akesan ê mojubá

Ê mabé koikó, Legbá bê, ê mojubá

Legbara Exu Lonan

 

(Finalizado o Cortejo de Abertura, atuantes entram no espaço de representação e iniciam o Ijexá de Acolhimento cantando para Oxum).

 

Canto para Oxum

É rum malé                                                                                                                              iabô quabô

Nitauechê

 

(A música segue, espectadores procuram seus lugares. Quando o público está todo acomodado, a música acelera, atuantes invadem o espaço de representação. A música diminui de ritmo e de volume, Atuante 1 fala).

 

ATUANTE 1: Na minha casa, eu sempre ouvi os mais velhos falarem como tudo começou. Quem venceu quem na história da humanidade.

 

ATUANTE 2: Ouvia o meu pai reclamando sempre que o que está oficial é uma das versões e que as outras versões ninguém nunca pôde ouvir.

 

ATUANTE 3: Brigava com o vizinho e dizia que comigo ia ser diferente. Eu iria crescer sabendo das outras versões e iria poder escolher qual verdade eleger.

 

ATUANTE 4: Minha mãe tirava da palavra e educava pela ação. Pela manhã, invocava Exu para abrir minha inteligência e Ogum para alargar meus caminhos, trabalhando meus medos, meus conceitos e preconceitos e mostrando enfim, a minha verdadeira história ancestre.

 

ATUANTE 1: Ao sair para a escola, minha mãe me entregava a Oxum para que eu escolhesse ser artista e contasse essa história nos palcos da vida e para todas as plateias. 

 

(Atmosfera muda, fica misteriosa. A luz baixa de intensidade, atuantes vocalizam “Ibiti eniá kosi kosi imalê”. As Divindades tomam o espaço. Caminham até formarem uma fila ao fundo do espaço de representação. Coreografia Humanos/Divindades. A coreografia deverá culminar numa roda. 

 

ATUANTES: Terra!

 

Canto para Nanã

 

A eni alaoré

Ai totoloxê

 

ATUANTE 5: Terra! Comece a enraizar-se! Atento! Olhando pra fora e sentido a energia subindo por todo o seu corpo. Se faça corpo! Firme! Com o pé na terra se tornando terra, procure sentir o cheiro da água tocando a terra e fazendo o barro. É isso que te fez, senhor! Essa é sua massa, seu ingrediente primordial. É disso que você veio e é pra aí que você vai voltar. Gire! Solte o seu corpo e sinta o eco. Grite! Volte à terra. A firmeza da terra no seu movimento primordial. Concentre-se na sua raiz. É daí, minha senhora. É daí meu senhor! É isso que está em você. Encontre a sua firmeza. Sobre a pele do tempo. O seu tempo veio da terra. Sua raiz é seu relógio. Sinta seus ponteiros. Seu ponteiro e sua raiz. Dos seus pés, o grande relógio. Agora o eu se fez corpo. Porque é da terra que você saiu, e é pra terra que você vai voltar. E é daqui! É da terra que brota a sua fertilidade. Balance o seu quadril e grite. Você está agora girando. Girando no movimento do seu elemento terra. É preciso ser terra para aceitar os outros elementos. Fogo, água, ar. Se encontre na terra. No seu movimento ancestral. O seu transe está na terra e no que ela vai te provocar. É preciso ser muito terra para completar o seu ciclo. Agora grite! E que seu suor se torne lama, barro e possa te reconstruir. Isso! Agora eu posso te ver exatamente como és: Terra!

 

(Sons de atabaque. Atores vão ao chão, aos poucos sentam-se formando uma roda em torno da Atuante 1.)

 

ATUANTE 1: Ibiti eniá kosi kosi imalé! (repete três vezes) Sem humano não há divindade! Assim diz um ditado africano. Contam os antigos que da mão de Nanã saiu o barro, matéria prima dada a Oxalá para fazer a humanidade. Nem de pedra, nem de madeira, nem de ferro, nem de água, nem de ar, mas de barro. O corpo sendo moldado, desenhado pela mão da divindade criadora, à espera do sopro da vida. O barro soprado por Olodumare virou carne pulsante. Exposta ao Sol da criação, seca e assa. Está pronta para a existência.

 

(Atuantes levantam-se lentamente)

 

ATUANTE 2: No início, a carne. Onde tudo se faz corpo, corpo imaterial, energia que me passeia trazendo um passado-presente. Corpo por onde se dança, por onde eu consigo ir ao mais íntimo das emoções.

 

(Atuantes estão totalmente de pé)

 

ATUANTE 2: O lugar de onde vim, onde se originou cada célula que constituem os tecidos que me perfazem. Raiz profunda trazida na cor, na tez, no nariz, na boca...

 

ATUANTE 4: Tronco matriz na minha carne, não larga, está impresso, faz parte...

Ancestre, história, cultura, memória

Profundo e antigo.

 

ATUANTES: Umbigo!

 

ATUANTE 1: Meu umbigo constituído desse suor, sangue inicial. Um óvulo fecundado que me gerou, me criou e o sangue da placenta alimenta e fortalece todo o ser.

 

TODOS(AS): Carne! Escuramente acesa!

 

ATUANTE 1: Carne constituída, pedaços de uma vida, minha leitura de mundo é a carne viva, lugar de onde vim.

 

ATUANTE 2: Está aqui, em cada osso, cada ranger dos dentes. É dessa história que somos feitos, do sangue na saliva.

Saliva com gosto de memória. 

Na origem, em toda epiderme, poros que querem saber da minha ancestralidade.

 

(Toque de agogô).

 

ATUANTE 3: O que eu tenho aqui são marcas, identidade do meu rei. Por onde ele se faz carne, onde ele me faz forte, provocando um emaranhado de sensações. O que trago aqui (toca a pele) são os poros que perfazem a minha existência. Legendando meu corpo e a caminhada do meu povo para o existir, comunico-me com as danças sagradas dos Orixás. Carrego em meu ará a herança ancestre que construiu o mundo. O que tenho aqui é o traço e o traçado do meu povo. As mãos consagradas da yalorixá ralam o amassi que purificará o meu corpo. Essas mesmas mãos abrirão o obi que alimentará meu ori. Meus olhos fecham e a natureza do invisível alinha-se, eu olho para dentro e minha divindade olha para dentro e para fora de mim. O que trago aqui são memórias... marcas, caminhos, histórias. Eu estou pronto e, no siré, nós dançamos, dançamos e dançamos...


 

CENA 2:EXU

 

(Atuantes espalham-se pela área de representação, formam uma encruzilhada, Atuante 2 de costas para o público, fora da área de representação. Atuante repetem o texto a seguir, quase formando um mantra malemolente.)

 

ATOR 4: Odara! Odara! (repete continuamente)

 

ATOR 2: Ojá, Ojá, Ojá! (repete continuamente)

 

ATUANTE 1 e 4: Ibá Esú odara

                  Obá ni Ilê Ketu

                    Lanyan Hamana

                  Ko lá ko rá o ba ona oja ile su (2 vezes)

 

(Dobrada de rum, introdução de um Bravum)

 

ATUANTE 5: Laroiê! 

 

(Música – funk de Exu)

 

Sim sim! Não não!

 

ATUANTE 1: Laroiê! Está sentado à esquerda da porta de entrada. 

              O primeiro e nunca vai deixar de ser, a ele se saúda antes de tudo.

            Exu não teme nada, não pergunta, observa, e aprende tudo.

            Exu, dono da porta por onde entram todas as riquezas da casa.

            A comunicação, o movimento, o desejo, o prazer o sexo.

 

ATUANTE 2: Líquido quente que pulsa por dentro, escorre lavando a alma de lascívia e despudores.

A fome sem fim, o desejo profundo de devorar

Exu faz o que faz, é o que é.

Aquele que cria rupturas, dono do movimento da dinâmica da vida humana, no mais humano que o humano pode ser. Ele transforma em incertas todas as certezas.

Está na passagem, na íris dos olhos de cada um.

Caso precise de algo está aqui, sentado a esquerda da porta de entrada.

 

(Música, funk de Exu)

 

CENA 3: OGUM

 

(Vocalização dos Atuantes. Atuante 4 atravessa a cena com um banco, posiciona-o no centro do espaço de representação, aponta para o Atuante 3, os dois fazem reverência ao banco e um para o outro. Atuante 3 senta-se e direciona-se para a plateia).

 

ATUANTES: Ê ê ê ê ê...

ATUANTE 3: Quando eu era criança escutava minha vó contar, que eu tinha no corpo a beleza e a força de um Deus. Muito difícil de compreender.

Falava com olhos ternos e um sorriso nos lábios da voz possante que esse Deus tinha e que eu também teria. Contou-me cada passo deste suposto eu no futuro.

Orgulhosa, enchia a boca para pronunciar seu nome: Ogun! Ogun! Alertou-me para nunca deixar morrer a história que contava.

Ela me acordava de manhã. Enquanto me banhava cantava:

 

(Atuante 1 entra e, ao pé do ouvido do ator, sussurra)

 

Ê awa de lodê coroumbelé

 

(continua sussurrando até o fim do texto)

 

ATUANTE 3: Cantava baixinho no meu ouvido.

Eu escutava tudo com curiosidade, não entendendo muitas das coisas que ela falava, mas admirado com a força e com as batalhas que ela narrava como se estivesse lá ao lado dele. Tudo parecia só história de vó. Fui crescendo, só tinha lembranças até que conheci...

 

(Música potente, toque para Ogun, apenas os instrumentos. Ogun entra no espaço de representação. Coreografia).

 

CENA 4: OXOSSI

 

(Oxossi aparece e traçando uma caçada, em diagonal.)

 

ATUANTE 1: Era ele! Chamado às pressas para resolver aquele impasse. A festa do rei estava comprometida. O pássaro gigante espalhava o terror para toda a tribo. Mais de cem flechas haviam sido lançadas e nenhum dos exímios caçadores de Ketu havia conseguido aniquilar o inimigo.

 O kê arô! 

 

ATUANTE 2 – O grande caçador, aquele que aprendeu com Ogum a arte da caça.

Aquele que é protegido por Ogun. Oxóssi, o provedor.

 

ATUANTE 1: Ele estava ali à espreita, só tinha uma flecha. Era conhecido por “Oxotokan xanxô”, o caçador de uma flecha só.

Ninguém mais acreditava que algo pudesse ser feito.

Ele mirou, e atirou bem no peito.

 

ATUANTE 2: O protetor dos caçadores.

Aquele que carrega o ofá e habita as florestas.

Orixá que tendo bloqueado o caminho, não o desimpede.

 

ATUANTE 1: O pássaro grunhiu alto, e voando para bem longe desapareceu.

Oxossi continuou ali, à espreita esperando sua próxima caçada para prover sua tribo.

 

ATUANTE 1 e 2: Oxóssi! Gbá mi ô!


CENA 5: OSSÃE

 

(Atuante 3 entra em cena com um balaio de folhas. Demais atuantes fazem uma roda em torno do balaio, saúdam cada um a seu modo as folhas e dançam para Ossãe). 

 

Canto para Ossãe

Ewê ni a saconjé

Ewê ni bobo nissá

Ewê ni a saconjé

Ewê ni bobo nissá

Ossãe ni a saconjé babá

Ewê ni bobo nissá

 

(Sons de agogôs)

 

ATUANTE 4: De lá ele não quer mais sair.

Fica envolto pelas folhas, sentindo cada uma delas.

Sabe o nome de cada raiz, de cada planta.

Resolveu não mais sair.

Recebeu título maior por deter todo esse conhecimento.

Macera as folhas, prepara chás, rala raízes e faz pós curantes.

Ele diz que seu lugar é na mata.

Lá não tem parceiros fica só o tempo inteiro.

É trazido à aldeia só em caso de doença.

Ossãe lida com a morte.

Vê renascer em seus braços aquele que definhava outrora.

Sem folha...

 

ATUANTE 1: Não tem vida, festa

 

ATUANTE 4: Não tem nada.


CENA 6: OMOLÚ

(Luz baixa, atores vocalizam, uma vocalidade densa, terrosa, atmosfera de mistério, luz e sombra).

 

ATUANTE 2: Um rastro. Ora de cura, ora de saúde, ora de doença. Orixá forte. Serás assim chamado: Senhor das pérolas. Árvore de mim. Terra firme sob meus pés. A coroa do sol coberta por palhas. Serás assim chamado: Senhor do Daomé. Orixá que pune a mãe e o filho. Orixá que não teme. A morte é apenas o início, caminho de transmutação contínua. O filho, o irmão, o Rei. Voz em que se misturam e se confundem traços de uma possível identidade. Aquela linha sem fim. A poeira que carrega a semente até florescer. Raiz forte fecundada na terra para conter o vento, ou talvez a tempestade, que carrega o que meu corpo perdeu. O sol que nasce e se põe em paralelo ao seu trajeto. O sol que nasce e se põe também sob a vida humana, a cada dia, a cada suspiro, a cada convicção jogada fora. Serás assim chamado: Senhor da Terra. No silêncio, um grito sem voz.

 

(Omolú dança, espalhando a cura.)

 

CENA 7: OXUMARÉ

 

(Oxumarê entra em cena com uma saia que toma todo o espaço cênico.Os atores abrem a saia e dançam em torno dele.)

 

ATUANTE 5: Quando chove ele está presente

A água escorre!

Amamentando o ayê fazendo brotar a vida.

Transita pelo céu em suas cores jubilosas e sua sensualidade extasiante.

Molhe meu corpo e inunde meu ser com suas cores e seu existir! 

Traga pra mim o líquido essencial, que me manterá pronto para escorrer terra adentro e lá encontrar as divindades.

Dono de riquezas sem par, transportador preferido da água para o palácio de Xangô.

Quando chove é ele quem está falando.

Em cada gota que explode fecundando orgasmaticamente o ventre do solo.

Oxumarê se faz arco-íris e serpente.

Morde a própria cauda e une o começo e o fim num eterno ciclo da existência.

 

Canto para Oxumarê

Erô rum besseim erô rum

 

CENA 8: XANGÔ

 

(Atuante 5 atravessa o espaço de representação cantando para Xangô, Atuante 3 escolhe uma pessoa da platéia, senta-a num aperê – pequeno banco e passa a contar-lhe uma história.)

 

ATUANTE 5 – Xangô

Mojubá ilê

Baba ô, ô ni wa ló

Ewin já já 

Orixá oco erum male

oba xangô

mojuba ê ilê êê

ni wala obá coso

 

(Música vai baixando com a saída do Atuante 5 de cena).

 

ATUANTE 3: 05 de junho de 1997, data importante na minha vida: nascia no axé. Era apresentado à comunidade do povo de santo. Havia passado meses em processo de intimidade com a minha ancestre divindade. Revelei a ele o meu desconhecimento a seu respeito. Revelei todas as dúvidas, o pavor que havia me tomado por conta do encontro que nos era reservado. 

Eu já tinha escolhido o meu caminho, a minha verdade e não era com ele que eu estava querendo trilhar. Ele apareceu pra mim no dia em que diante do espelho eu o vi refletido em minha pele, na minha cor, nos meus traços. Relutei, rejeitei, discuti. Não encontrei em lugar nenhuma informação, queria livrar-me. Mas minha pele sorriu, Ele sorriu. O conheci numa tarde de setembro, num dia em que o chão me faltou e o ar também. Ele saiu de dentro de mim e era eu.

Fiquei entorpecido pela alegria, uma parte da deidade estava de volta à Terra e fui num misto de entrega e questionamento que quis me resguardar com ele. O medo também era meu companheiro. Havia chegado a hora tão adiada, a entrega o enlace.

Xangô em mim e eu nele os dois em transe de amor e regozijo. 

Dançamos encantados e encantamos o barracão.

Xangô incandesceu as coisas, as pessoas.

Seu alujá alimentava os atabaques com o som do trovão e convidava outras divindades, que imediatamente faziam-se presente.

O corpo era só êxtase e pulsação, naquela dança ele contava soberbo para mim e para quem o estava vendo fora de mim suas conquistas, nossa personalidade, nossos amores.

E eis que está diante dele de mãos nas cadeiras a rainha graciosa, a mais ousada, aquela que desassossegou seu ser. Que pode roubar o coração do rei e assim alimentar todas as fomes.

Eparrey Oyá! Todos gritaram. Ele não perdeu tempo embelezou-se ainda mais, espalhou por todos os cantos do barracão seu cheiro de homem viril e foi cortejar sua rainha predileta.

Dançaram e como dançaram!  Amaram-se diante de todos os olhos ávidos daquele lugar.

Voltaram para o Órun juntos como o tinha sido antes e assim Xangô o furor vulcânico que me faz vivo plenamente por hora deixou meu corpo, mas não minha alma.

Despertaram-me do transe, suado, afogueado percebendo em todos a mensagem que se fazia clara o Rei está entre nós!

 

TODOS(AS): Kabieci!

 

CENA 9: AS YABÁS

 

(Som de água, atuantes borrifam água perfumada acima das cabeças dos espectadores. As yabás entram e passeiam pelo espaço cênico).

 

ATUANTE 3 - A cabeça delas é feita de água. As unhas também. O dinheiro delas é feito de água. E brota da impossibilidade das pedras. A tintura das raízes escorre dos olhos e no corpo negro circunférico sem borrar os regatos. Elas se derramam em cobre, ouro e água pros caçadores passarem. E dança nas profundezas da riqueza. São tão belas, mas tão belas que não há no mundo quem se compare. 

 

ATUANTE 4 - Os Reis bebem nos poros das deusas da fertilidade. 

E se embriaga. E se esquece. O homem se esquece nos braços das mulheres-água. 

 A mulher guarda na vagina a umidade do mundo. 

 

ATUANTE 3 - Por mero acaso, não ria da umidade ou dos seios enormes ou mesmo dos pêlos da fêmea ao seu lado. Sim, pode ser essa ou qualquer outra. A umidade dela é tão antiga, mas tão antiga que peleja, goteja nos seus sonhos. E enquanto você dorme, crescem os lírios, os grãos e gira a terra.

(Yabás dançam e lentamente saem de cena, escuridão).

 

CENA 10: MACUMBEIROS!!!

 

(Escuridão, Atuante 3 diz:).

 

ATUANTE 3: A religião dita dos Orixás, o Candomblé, é na verdade, um culto demoníaco. Esses tais cultos afro-brasileiros deveriam ser caso de polícia, deveria dar cadeia. É coisa dos negros. Essa gente que parece doente da cabeça, adoradores do mal. Resista ao diabo, mudem suas vidas. Não se misturem com esses seguidores de satanás! Parecem um bando de porcos dentro do chiqueiro fazendo aqueles trabalhos malditos, um bando de macumbeiros. Macumbeiros, sim! Gente descarada! Tocador de macumba! Urubu de bozó! Macumbeiro! Macumbeiro! MACUMBEIRO!

 

(Som de berimbau. Atuantes tomam o espaço de representação, mas são interrompidos pelo Atuante 5 que pede para abrir a luz geral e lê uma carta manifesto contra o ódio religioso).

 

ATUANTE 5 – Senhores!

MARIELLE PRESENTE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Um atuante deste espetáculo realizando a divulgação do Siré Obá pela internet numa mala direta de contatos recebeu de resposta o seguinte email:

Escute aqui amigo!

1 – Não te conheço, nunca te vi mais gordo, nem sei onde você mora ou como vive.

2 – Não tenho nada com quem pratique cultos afros, mas como pessoa eu odeio, detesto, não suporto!

3 – Quem te deu a liberdade de me mandar este anúncio?

4 – Se você se entende como uma boa pessoa; por favor! Não me mande nada relativo a cultos afro ou coisa do gênero!

5 – De preferência, por favor apague o meu endereço da sua lista de mensagens!!!!

Grato!

Ele responde:

Caro David!

Talvez nem leia isso, mas fui obrigado a escrever.

Peço-te desculpas por incomodá-lo com o anúncio de um espetáculo teatral. A internet vem sendo um veículo interessante para divulgar a arte. Por favor, sua ação foi lamentosa.

Você tem o direito de não gostar, odiar e sei mais lá o quê, qualquer coisa que seja referente a assuntos afro, mas é incompreensível como existem tantas questões discutidas hoje acerca de raça, respeito às etnias e a sua cultura, envolvendo seu modo de vida, práticas, religiosidade, costumes, alimentação... E ainda existirem pessoas que em alto e bom tom diga que detesta o que é relacionado ao afro.

Bom meu nome é Daniel, sou ator e estou participando de um espetáculo onde a temática é a religiosidade de matriz africana sim!

Peço-te tranquilidade e com certeza anularei o seu e-mail da minha lista de contatos.

E se a temática não lhe interessa, existem outros espetáculos em cartaz. Assista teatro! Veja arte!

Eu sempre soube que cada um tem sua crença e sua forma de cuidar de seus sentimentos, espero que a sua seja adequada e não agrida pessoas que não tem nada a ver com o seu gosto pessoal.

Senhores!

Paramos este espetáculo para nos posicionar contra qualquer ato de racismo ou discriminação.

O espetáculo Siré Obá coloca-se contra qualquer ação de intolerância religiosa.

Muito obrigado!

 

(Volta o som de berimbau, Atuantes tomam o espaço de representação, dançam a coreografia do empoderamento).

 

ATUANTE 2: O dia mais feliz da minha vida foi quando eu nasci no axé. Xangô em mim e eu nele. Os dois em transe de amor...

 

ATUANTE 1: Ao sair para escola, minha mãe me entregava a Oxum para que eu escolhesse ser artista e contasse essa história para todas as plateias.

 

ATUANTE 3:ê awa dê lodê coroumbelé

 

ATUANTE 1: Ela me acordava de manhã, me banhava, ela cantava.

 

ATUANTE 4: (grito) sem folha, não tem vida, não tem festa, não tem nada. Sem folha não tem vida, não tem...

 

ATUANTES: (cada um a seu tempo) Está aqui dentro, está guardado em mim e eu não retiro!


CENA 11 – OXALÁ

 

(Som de adjá entra na arena a Yalorixá e canta para Oxalá. Atuantes fazem reverência a Yalorixá, ela ocupa o centro do espaço de representação).

 

Ê fururu, orerê airárá

Babá quenhém legibô 

ilê, ilê legibô babá 

Orixá uilá de mojibaô

Oluô é maó, é maó é mitaeuchê babá.

 

(Atuantes em círculo reverenciam Oxalá, saúdam o chão e batem a primeira palma do paó, black-out. Luz retorna Atuante 5 canta uma sequência de três cantigas para Oxalá, demais Atuantes convidam espectadores para o espaço de representação e forma-se uma grande roda de celebração).


 

Fim

Novembro de 2008

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ONISAJÉ (Fernanda Júlia) é Yakekerê (mãe pequena, segunda sacerdotisa do terreiro) no Ilê Axé Oyá L´adê Inan, da cidade de Alagoinhas, graduada no Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro da UFBA, mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós graduação em Artes Cênicas – PPGAC – UFBA, com a dissertação Ancestralidade em cena: Candomblé e Teatro na formação de uma encenadora, atualmente é doutoranda no mesmo programa. Diretora fundadora do Núcleo Afro brasileiro de Teatro de Alagoinhas - NATA, fundado em 17 de outubro de 1998 na cidade de Alagoinhas BA. Dramaturga, preparadora de atores, educadora e pesquisadora da cultura africana no Brasil com ênfase nas religiões de matriz africana o Candomblé.

AUTORES

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Thiago Romero é diretor, figurinista, diretor de arte, drag queen ator, arte-educador; licenciado em Arte Educação com habilitação em História da Arte pela UERJ e bacharel em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral. É mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia pesquisando a representação LGBTQI+ no Teatro Negro. 

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