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Todas as imagens são de Francieli Garlet

Educação e 

Diferenças e...

Editores Temáticos: Alik Wunder e

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

nº 25 | 19 de junho de 2023

Composições de uma docência em obra: entre ciscos e diários-ninhos...

Francieli Regina Garlet

Marilda Oliveira de Oliveira

Há ruídos que rasgam o silêncio da noite e me jogam para fora do sono. 

Ontem, por exemplo, 

um desses ruídos me convidou a habitar as aventuras de uma folha seca... 

Peguei um gosto danado por aquelas que ficam à espreita do vento,

aquelas que o esperam silenciosas, prontas para dar o bote 

aquelas que quando percebem sua chegada, agarram-se nele, 

e ficam por horas a brincar de arranhar o asfalto

só para deixar para trás fragmentos de si por onde passam,

só para despedaçar-se, perder-se em mil direções e dar boas gargalhadas

Ficar miúda até se tornar outra coisa... 

quem sabe chão, quem sabe vento, 

ou quem sabe apenas um delírio

 de quem está à espreita do sono e não consegue agarrá-lo...

Em meio a travessia pelo doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria/RS (2014-2018), e a contratação como docente temporária no Curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá/PR (2017-2018), uma docência passou a obrar-se em composição com folhas secas, flores de sibipiruna, em suas andanças cotidianas nesses distintos territórios geográficos e em seus afetos e encontros. Junto ao encontro com o ruído de uma folha seca em meio a uma noite de insônia, essa docência foi tateando possibilidades de experimentação, com escritas em folhas de árvores recolhidas em meio às andarilhagens entre o apartamento onde morava e a universidade em que atuava.  As linhas e composições que aqui se apresentam são permeadas, assim, por diários visuais e escritos [1], produzidos em meio a esses processos de atuação como docente, que compuseram parte da materialidade da tese da autora, defendida em 2018, sob orientação da segunda autora. 

Em meio a essas travessias, uma docência foi sendo forjada na composição com escritas, imagens e sensações gestadas num movimento de cavar camadas de si para poder andarilhar [2]. Uma docência foi atentando ao que vinha chegando para compor com seu corpo-pensamento, abrindo brechas para operar outros possíveis, outros modos de dizer-se/mostrar-se/produzir-se, numa operação ‘menor’ de formação [3], acolhendo suas inquietudes, fragilidades e desencaixes, na esquiva de colocá-los em conformidade com uma docência dita ‘maior’. Uma docência foi, assim, afirmando esse território de formação menor, como “um espaço de resistência e de desconstrução de um suposto campo maior, o campo da Formação de Professores” [4] e produzindo-se junto aos “fragmentos, cacos e restos” que não cabem nas “Grandes Narrativas das Grandes Formações” [5].

Uma docência, ao andarilhar com outras docências em formação e ao investigar a si e a sua solidão povoada – “não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros” [6], encontros com intercessores, esses disparadores do pensamento/criação [7] – foi aliando versões de si produzidas nessa travessia, docências que se embaralham e vão reunindo também heterogêneos em seu caminhar, ao modo do “cisco”, que o poeta mato-grossense Manoel de Barros define como um “aglomerado que se iguala a restos” o qual, “depois de assentado em lugar próprio [...] produz material de construção para ninhos de passarinhos” [8].

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Diário visual produzido pela primeira autora junto à disciplina Espaços de Arte e Aprendizagem III que ministrou no Curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá/PR, 2017. Fonte: Acervo pessoal.

Nesses "ciscos", formados por versões de si, experiências educativas e elementos de outras ordens, reunidos em meio às andarilhagens (pela pesquisa, pela vida), essa docência foi encontrando materialidades com as quais foi produzindo composições entre imagens e escritas, dando língua aos afetos que pediam passagem [9], produzindo diários-ninhos visuais e escritos para acolher uma docência sempre em vias de se fazer, e que nunca se soube antes dos encontros que foi experienciando em seu caminhar-escrever-compor-inventar...

DA PRODUÇÃO DE DIÁRIOS-NINHOS... [10]

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Fragmento do diário visual da primeira autora produzido junto à disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais III ministrada no Curso de Artes Visuais da UEM/PR, 2018. Fonte: Acervo pessoal.

Com um ruído de folha seca, iniciou uma relação/atenção com as folhas de árvores caídas em meio aos seus percursos e, então, certo dia, ela (a docência) levou algumas para sua casa, experimentou escrever nas suas linhas frágeis, para que também as palavras pudessem brincar com as rajadas de vento, aventurando-se pelo chão, arrastando-se, ficando miúda, desfazendo-se na temporalidade da folha e experimentando, assim, modulações de si.

Caminhava e andarilhava atenta aos sinais, atenta ao chão e às paisagens singulares que se formavam nele a cada dia, a cada deslocamento entre seu apartamento e a universidade, mas também a cada aula/encontro com estudantes, com leituras, imagens, com colegas de profissão, com burocracias, com uma outra temporalidade que a contratação enquanto docente a colocava

Diário visual produzido pela primeira autora junto à disciplina de Espaços de Arte e Aprendizagem II ministrada no Curso de Artes Visuais da UEM/PR [11].  Fonte: Acervo pessoal.

Notou, certo dia, que o chão começava a amarelar e que os vazios que se alojavam em meio aos percursos abrigavam, a cada vez, outras composições em amarelo. Com isso, passou a devorar com a câmera um certo ponto do caminho que se repetia e, no entanto, nunca era o mesmo. Fotografava e arquivava, mas também devorava os arquivos produzidos, esburacava, compunha com eles paisagens outras, conectava com agulha, linha e palavras-afetos, cada registro singular impresso em papel translúcido, que além de permitir a sobreposição de cada registro, fazendo-os permear um ao outro ao ser colocado contra a luz, escancarava o lado avesso do bordado, um emaranhado que abrigava a parte não dita das palavras... Sua parte que permanecia em potência de produzir outros sentidos...

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Diário visual produzido pela primeira autora junto à disciplina de Espaços de Arte e Aprendizagem II ministrada no Curso de Artes Visuais da UEM/PR.  Fonte: Acervo pessoal.

Assim, ao passo que produzia sentidos junto à experiência vivenciada, produzia também o que não era possível dizer, ver. Como se as coisas, mesmo quando colocadas em palavras e imagens, permanecessem com uma parte não resolvida, em potência... E, então, no reencontro com o conceito de dobra [12], que atravessava uma das aulas, agenciado com os casulos do bicho da seda que ela encontrava num passeio de domingo, fez germinar os casulos-d(obras), enquanto planos que abraçam o não resolvido, que o deixa em suspenso, em processo de modificação…

 

As folhas das árvores que permeavam seus caminhos atuaram como materialidade a ser experimentada. Desta forma, operou com elas modos de produzir casulos, compostos por dobras que nada abrigavam dentro, mas que se colocavam, eles próprios, como corpos que se modificam na travessia temporal de sua existência. Uma modificação que abarcava a superfície que era produzida pelo dentro e pelo fora ao mesmo tempo [13]. Na superfície dos casulos, palavras foram inscritas, palavras cujo sentido poderiam ainda se transformar com a passagem do tempo colocando, assim, matéria e sentido em devir, nesse processo…

 

Depois disso, prendeu alguns desses casulos às mesmas árvores que lhe ofereciam matéria-prima, árvores que permeavam seu percurso diário até a universidade... apesar de ser um momento de parada (prender novamente a folha na árvore), algo permanecia em obra, em deslocamento, modificando a matéria, mudando a coloração da folha, ao mesmo tempo que as palavras ali inscritas poderiam operar outros sentidos. Como diz Deleuze [14], “nada mais perturbador que os movimentos incessantes do que parece imóvel”. Nessa experimentação, de casulo em casulo, ela ia abraçando inquietudes que diziam respeito a um processo de formação, uma formação menor [15], produzida desde a experiência [16], como acontecimento cuja modificação se dava a partir de uma duração temporal do que a afetava e inquietava em meio a um andarilhar docente...

Intervenção Casulo d(obra) - Formação como acontecimento. Fragmento do diário visual da primeira autora produzido junto à disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais III, ministrada no Curso de Artes Visuais da UEM/PR, 2018. Fonte: Acervo pessoal.

Em meio a esse processo, que se dava junto ao percurso docente de estudantes da licenciatura em Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá, questões a atravessavam: Como produzir moradas, casulos em diferentes lugares, em lugares que desconhecemos? Que inquietudes nos disparam a produzir, a cada vez, outros casulos, ou nos modificam em nosso próprio corpo/casulo? Como não atrapalhar o processo, os movimentos de dobras subjetivas, o movimento de produção de casulos singulares de formação de quem atravessa comigo esse trajeto? Como orientar estudantes em formação inicial nesse processo de produzir seus casulos, afirmando/acolhendo seus próprios movimentos de formação a partir de suas inquietudes? Como não fechar outras docências que fazem essa travessia comigo dentro do casulo que produzi? Como fazer ressonância com os casulos produzidos por quem atravessa esse processo formativo comigo, de modo a produzir uma relação intensiva que potencialize nossas movimentações e modificações singulares de formação?

 

Esse processo a convidava a pensar que dobrar era também um modo de acolher o fora/caos - essa tempestade de forças composta pelo não estratificado, pelo informe, esse “espaço anterior de singularidades, no qual as coisas não são ainda” [17] - e produzir com ele um abrigo, de modo que obrar um germe de ordem em meio a ele fosse possível. Um modo de experimentar a lentidão em meio ao turbilhão dos dias, como um movimento também necessário para que algo pudesse germinar, para que uma docência em d(obra) pudesse germinar infinitas vezes e de variados modos, a partir do que a atravessava em seus percursos menores e cotidianos.

UMA DOCÊNCIA-CISCO

Palavras (e imagens) têm que adoecer de mim para que se 

tornem mais saudáveis. 

Vou sendo incorporado pelas formas pelos 

cheiros pelo som pelas cores. 

Deambulo aos esgarços. 

Vou deixando pedaços de mim no cisco. 

O cisco tem agora para mim uma importância de Catedral.

(BARROS, 2015, p. 108, acréscimos nossos).

Esta escrita foi ensaiada junto às névoas que se ergueram ao passo que se escrevia sobre alguns dos percursos de pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Maria/RS (2014-2018), junto à forja de um recorte da tese que buscou investigar a seguinte questão: o que pode uma docência que cava vazios nos ditos e vistos que a estratifica? 

Recorte que, no encontro com o poema “cisco”, de Manoel de Barros, cinco anos depois, afirmou a aliança dessa escrita que nos permitiu, neste momento, pensar a referida produção de diários como uma certa lida com ciscos de uma travessia que foi nos permitindo ou abrindo caminhos para compor ninhos para docências por vir, já que o que se produziu como diários funciona não como uma verdade ou relato sobre o que se viveu, mas funciona como o lugar em que se reúnem elementos heterogêneos, fragmentos de experiências que não culminam em um todo sobre o que se viveu ou sobre o que se é, antes, se abrem à conexões, acolhendo uma docência sempre por vir, sempre por se fazer e que não se sabe antes do encontro. 

Produzir esses diários-ninhos, em meio ao turbilhão dos dias, entre docência e pesquisa, foi um modo de desacelerar, de forjar espaço para uma lentidão necessária para compor ninho, foi também um modo de espreitar em meio ao andarilhar (e suas velocidades e lentidões) o que poderia ser potente para aninhar uma docência menor. Para produzir, quem sabe, a cada vez, uma docência-cisco, desde dentro e à margem de uma docência maior.

NOTAS

[1] Os diários produzidos consistiram em pensar/forjar de modo textual e visual a travessia pela qual vamos nos produzindo docentes em meio a encontros com leituras, imagens e com quem vamos partilhando experiências educativas em uma disciplina, bem como com outros elementos que nos atravessam desde fora dela. Nessa produção é preciso inventar um formato, uma poética, que possa potencializar o pensamento junto ao que é experienciado e há também momentos de partilha do mesmo junto ao grupo, que acontecem em meio ao andamento e ao final do semestre. Mais sobre os diários de prática pedagógica (DPPs), também conhecidos como diários textuais e/ou visuais, pode ser acessado através dos seguintes textos (OLIVEIRA, 2011, 2013 e 2014) (CARDONETTI; OLIVEIRA, 2015) e (CARDONETT; GARLET; OLIVEIRA, 2021).

[2] Tais movimentos e composições podem ser acessados na tese Entre o visível e o enunciável em educação: o que pode uma docência que cava a si mesma? produzida pela primeira autora com orientação da segunda autora. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/15680.

[3] Anelice Ribetto (2011) forja a noção de “formação menor” a partir de uma torção conceitual que traz para o cenário da formação docente o que Deleuze (2010) menciona como ‘língua menor’, uma língua que arrasta em linhas de variação uma língua majoritária fazendo-a estrangeira de sua própria língua (DELEUZE; GUATTARI, 2014).

[4] Ver Ribetto (2011, p. 110).

[5] Ver Ribetto (2011, p. 116). 

[6] Ver Deleuze e Parnet (1998, p. 6).

[7] Ver Deleuze (1992).

[8] Ver Manoel de Barros (2015, p. 123).

[9] Ver Rolnik (2006).

[10] A escrita que compõe essa seção, com pequenas modificações, é parte de um texto produzido para leitura durante a apresentação oral da Tese defendida no dia 30 de julho de 2018. Tal escrita, posteriormente, compôs um artigo publicado na revista UIVO (GARLET, 2019).

[11] Diário produzido com fotografias, impressas em papel vegetal, de um mesmo ponto do percurso cotidiano entre seu apartamento e a universidade onde atuava. Tais fotografias foram recortadas e unidas pelo bordado de palavras que diziam de seu processo nas experiências educativas vivenciadas na universidade.

[12] Ver Deleuze (1992).

[13] Ver Deleuze (1992).

[14]  Ver Deleuze (1992, p. 195).

[15] Ver Ribetto (2011).

[16] Ver Larrosa (2011).

[17] Ver Levy (2011, p. 83).

AS  AUTORAS

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Francieli Regina Garlet é doutora em Educação na linha de pesquisa LP4-Educação e Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS/Brasil), com pós-doutorado pelo mesmo programa de pós-graduação e instituição. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC). Editora de Seção da Revista Digital do LAV (RDLAV).

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Marilda Oliveira de Oliveira é professora titular do Departamento de Metodologia do Ensino, Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria, (UFSM/ RS/Brasil). Doutora em História da Arte pela Universidad de Barcelona, Espanha. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC). Editora Chefe da Revista Digital do LAV (RDLAV).

COMO CITAR ESSE TEXTO

GARLET, Francieli; OLIVEIRA, Marilda. Composições de uma docência em obra: entre ciscos e diários-ninhos... (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e… nº 25. Publicado em 19 jun. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-composicoes-de-uma-docencia-em-obra-entre-ciscos-e-diarios-ninhos>ISSN 2179-1287.

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