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Todas as imagens são de Alik Wunder

Educação e 

Diferenças e...

Editores Temáticos: Alik Wunder e

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

nº24 | 10 de abril de 2023

Cobra grande multiétnica e a festa da transformação [1]

Alik Wunder

Ela rastejava silenciosamente por baixo da aldeia, desde o fundo da terra, entre as raízes e o escuro, desde o cerrado que cresce invisível por baixo do chão. De lá, ouviu cantos de muitos povos – Guarani, Mebêngôkré [2], Krahô, Fulni-ô, Kariri-Xocó, Yawalapiti, Kamayurá, Waurá, Awe Uptabi [3], Huni Kuin, Kune Koin, gente da comunidade quilombola Kalunga, gente da cidade... Desde aquele lugar quieto e arejado pelas raízes, ouviu o som das risadas, das crianças brincando e cantos de muitos rituais. Ouviu tudo, lembrou-se de diversas histórias.

 

A Cobra Grande, velha ancestral, tinha em sua pele a memória de muitos lugares. Lembrou-se de que, um dia, passou pelo mundo em que os vegetais cantam: o mundo das batatas do povo Krahô. Já havia passado pela vasta Terra sem Males, onde tudo que é vivo pode coexistir pacificamente, terra que os Guarani procuram e encontram diariamente na casa de reza. Passara muitas vezes por uma terra que sonha, de lá onde nascem toda noite os cantos do povo Awe Uptabi. Nadou pelo rio profundo que alimenta a voz dos Fulni-ô e Kariri-Xocó, esteve nas festas do Kuarup no Xingu, quando diversos povos dançam e celebram a vida dos que partiram.

 

Lembrou-se de sua presença constante nas mirações que guiam a vida do povo Huni Kuin, lembrou-se que passou muitas vezes pela Kalunga Grande, oceano da memória quilombola, e de que, um dia, passou pelo buraco aberto pelo grande Tatu Ancestral, a passagem que liga a vida de baixo e de cima no mundo Mebêngôkré. Animada com tantas boas lembranças, colocou sua grande cabeça para fora, rastejou pelo chão daquela singular Aldeia Multiétnica e parou num canto para olhar. 

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No meio de tanta gente alegre em festa, deixou-se transformar, trocou de pele e convidou toda a gente para cantar e grafar sua nova aparência. Pelas mãos do artista [4], do cal da terra sobre o vermelho do barro, renasceu ali na forma de duas linhas brancas. As mulheres foram as primeiras a perceber sua presença e a aceitar seu convite. Ficaram ali junto dela, por um dia inteiro, fazendo-a aparecer com mais força. A serpente fez, assim, sua reluzente chegança na aldeia e apareceu aos olhos de quem ainda estava distraído. 

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Os jovens e as jovens dos diversos povos daquele lugar, aqueles que estão também trocando de pele, foram chamados e chamadas para conduzir essa festa da transformação. Jovens, educadores, educadoras, cineastas, produtoras e produtores iniciaram os trabalhos. Nessa roda, cada um e cada uma ofereceu à cobra algo de si: uma história, um canto, uma dúvida, uma inquietação, um traço...

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Depois de ouvir, a cobra desafiou a todos a fazer coisas inesperadas, ainda não realizadas: transformar um canto em desenho; uma história em um filme; uma inquietação numa colagem; misturar o canto de um povo com outro; maracá com ritmos eletrônicos... E disse: “tudo isso caberá na minha nova pele”. Muito rapidamente, todo mundo saiu a fazer coisas que ainda não sabia.

 

Um povo foi convidado a se abrir ao canto de outro, ao traço do outro, a história do outro e tudo foi se misturando: jenipapo, máquina fotográfica, canto, mesa de som, gravador, cal, carvão, microfone, filmadora, canto, rabeca, grafismo, fotografia, palavra, batata, terra, impressora e gente. Os Kariri-Xocó decidiram fazer um filme sobre o encontro entre os Xocó e os Kariri, que deu origem a um novo povo nas margens do rio Opara, conhecido pelos brancos como São Francisco. Correria para criar roteiro, encontrar um local de gravação, criar cenas e personagens. Os Krahô decidiram contar a todos a história da Festa da Batata, na forma de um filme: o Hotxua – palhaço da aldeia - andando pela roça e aprendendo com o canto entoado pelas batatas de baixo da terra. Outra correria para achar roça, personagem, figurino, e lá se foi trabalhar uma outra equipe de cinema.

Os Fulni-ô decidiram trazer para a pele da cobra a trama de suas cestarias e, vagarosamente, fio a fio, as tramas viraram traços, em meio a cantos entoados para dar ânimos aos desenhistas. Os Guarani Mbya e Guarani Nhandeva misturaram suas histórias, decidiram marcar na cobra o rosto daqueles que um dia foram assassinados nos ataques a seus territórios [5], trouxeram a força das mulheres Kaiowá [6] e a luta diária que se faz na casa de reza com o Pytyngua (caximbo) e os cantos sagrados do povo Guarani Mbya. 

Os Kalunga chamaram seu professor para fazer poesia quilombola no corpo da serpente. Os Mebêngôkré decidiram que seriam as mulheres que comporiam desenhos, aqueles que fazem também em seus corpos e nas crianças, para enfeitá-las e protegê-las. A cobra renascia, se enfeitava e se protegia para sua nova vida. Os Kune Koin e Huni Kuin marcaram a sua pele com linhas e cores.  A cada traço, um canto para fazer tudo dançar. Os Kamayurá e Yawalapiti deixaram seus traços fortes e as cores vivas do Xingu. Canto e traço, canto e filmagem, canto e colagem: o canto guiou a criação de cada imagem. O artista, a todo momento, provia as cores feitas de barro branco, amarelo, marrom, carvão e cal. 

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Na noite do ritual da transformação, a cobra ficou contente ao receber na sua pele tanta mistura e criação. Sua nova aparição tinha filme, banda de música, grafismo, colagem, canto. Tinha alegria e tristeza, luta e celebração, encontro de línguas, terras e traços e mais tudo aquilo que não se viu, nem ouviu. A cobra, mestra do movimento e da transformação, ficou ali sentindo tudo no seu grande corpo. Decidiu não voltar para o fundo da terra, aninhou-se no grande muro da aldeia.

 

Na manhã fria, depois da festa da transformação, o sol nasceu sob a neblina da montanha, acordando a Cobra Grande e sua pele dourada. Ainda cansada de tantos acontecimentos, ela olhava admirada para aquele povo todo, que voltava para as suas casas. Parada em sua nova toca, viu partir de lá muita gente. Um aglomerado movente de homens, barracas, mochilas, mulheres, cestas, colares, redes, crianças, malas... As pessoas, como ela, levavam consigo reluzentes memórias, todas admiradas com sua nova pele tracejada de vida, criação e alegria.

NOTAS

[1] Este conto e este ensaio fotográfico foram construídos a partir da minha experiência na residência artística ocorrida na Aldeia Multiétnica, entre 7 e 14 de julho de 2022. Participei da equipe de produção, coordenada por Pedro Guimarães e da equipe de apoio do artista Jhon Bermond, responsável pela criação visual. A obra coletiva foi criada pelos jovens e pelas jovens dos povos indígenas e comunidade quilombola que fazem parte da Aldeia Multiétnica e pela equipe de produção formada por cineastas, músicos, educadores (as), pintores e produtores (as). A proposta foi criar uma grande cobra em um muro de adobe, misturando diversas linguagens - música, pintura, cinema, colagem, poesia – bem como as diferentes referências da vida dos (as) jovens dessas comunidades. “A Aldeia Multiétnica é um território na Chapada dos Veadeiros dedicado ao fortalecimento das culturas e lutas políticas dos povos indígenas e quilombolas. Lançada em 2007, tornou-se um ponto de encontro entre diferentes povos indígenas e entrou no calendário anual de representantes de muitos povos indígenas como Kayapó/Mebêngôkré (PA); Avá Canoeiro (GO); Krahô (TO); Fulni-ô (PE); Guarani Mbyá (SC); Xavante (MT); e Yawalapiti, Kamayurá e Waurá, do Alto Xingu (MT). O projeto é realizado pela Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge e coordenado por Juliano Barros.” fonte:  https://www.aldeiamultietnica.com.br/.

[2]  Povo Kayapó

[3] Povo Xavante

[4] Jhon Bermond

[5] Um dos retratados foi Marçal de Souza, liderança guarani assassinada por sua luta pela retomada de terras guarani no Mato Grosso do Sul.

[6] As colagens com imagens das mulheres Kaiowá foram realizadas a partir de frames do filme Ava Kuña, Aty Kuña; mulher indígena, mulher política realizado por Fabiane Medina, Julia Zulian & Guilherme (2020). 

 

A  AUTORA

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Alik Wunder é professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. É fotógrafa e faz parte do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos Audiovisuais – Olho. Pesquisa as relações entre imagem, educação e filosofia contemporânea e tem realizado criações artísticas com povos indígenas. Coordenou a Caiapi – Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos indígenas, ligada a Diretoria de Direitos Humanos da Unicamp. 

Alik Wunder

COMO CITAR ESSE TEXTO

WUNDER, Alik. Cobra grande multiétnica e a festa da transformação. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e… nº 24. Publicado em 10 abr. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-cobra-grande-multietnica-e-a-festa-da-transformacao-na-aldeia-multietni>. ISSN 2179-1287.

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