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19 de dezembro de 2022

As ofensivas sobre a educação básica no Brasil: da educação integral à educação domiciliar

Mônica Monteiro

Este texto examina os movimentos que indicam rupturas em relação aos processos de expansão e de consolidação de políticas públicas sociais - com a ampliação de uma agenda programática neoliberal - experimentados no Brasil no período pós-golpe, como referido pelo sociólogo Jessé Souza em seu livro A Radiografia do Golpe, desde a assunção do governo Michel Temer (2016-2018) até o governo Bolsonaro (2018-2022). Nesse período, o ideal de educação e formação integral dos indivíduos, à luz de políticas públicas implementadas a partir da Constituição Federal de 1988 até os anos 2016, é desmantelado e novas políticas de educação foram anunciadas.

 

Refletimos, portanto, como a educação pública no Brasil passa a representar um ponto de inflexão em relação à perspectiva da educação enquanto direito social, de acordo com o que está previsto no art. 6º da Constituição Federal. Ao tratar da educação nacional e das bases para a educação integral, em um primeiro movimento, para a ampliação da jornada de permanência do aluno na escola, referimo-nos à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN/96), que mesmo seguindo orientações da política neoliberal dos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) inaugura, em nível federal, a normatização sobre educação em tempo integral para o ensino fundamental, associada à ideia de ampliação do tempo de permanência na escola, como se lê em seu texto:

Art. 34. A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola. § 1º São ressalvados os casos do ensino noturno e das formas alternativas de organização autorizadas nesta Lei; §2º O ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino (BRASIL, 1996). 

Vale destacar também que, talvez, não por acaso, as seções sobre Educação, Cultura e Desporto, estabelecidas na Constituição Federal do Brasil (CF/88), integram um dos capítulos da Carta Magna, anunciando o que poderia ser a intenção de tratar de forma complementar e integrada as ações de educação, cultura e esportes na perspectiva de formação integral do indivíduo. 

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Foto: Lei de Diretrizes de Base, Aprovada pelo Congresso Nacional em 1996

Segue-se à CF um conjunto normativo, em que destacamos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n.º 8069/90 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDBN n.º 9.394/96. Destaque-se que o ECA trata do direito à educação e à cultura; ao esporte e ao lazer; à liberdade de criação e ao acesso às fontes de cultura, configurando a noção do aprender para além do âmbito da escola, atribuindo à União, aos estados e aos municípios a responsabilidade de facilitar o acesso das crianças e adolescentes a espaços culturais, esportivos e de lazer; enquanto a LDBN trata das bases da educação nacional, reforçando o campo de ampliação e abrangência dos processos formativos que se desenvolvem na vida familiar; na convivência humana; no trabalho; nas instituições de ensino e pesquisa; nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais para o desenvolvimento do educando, visando o exercício de sua cidadania e sua qualificação para o trabalho.
 

Consolida-se, por meio desse conjunto normativo que inclui outras medidas legislativas a exemplo dos Planos Nacionais de Educação (2001-2010 e 2014-2022); do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB, 2007) e do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE, 2007), o ideal de que a educação integral contempla noções e estratégias que combinam tempos e conteúdos com vista à formação integral do indivíduo.

 

Esse aporte legal, acima referido, permitiu e até condicionou ações do poder público a fim de cumprir com o previsto na legislação, representando a inscrição, permanência e afirmação da temática da educação integral nas agendas públicas.

 

Exemplo desses esforços são verificados na formulação de programas como o Programa Mais Educação (2007), na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e podem ser contrastados com as ações da gestão Michel Temer (2016-2018), com relação tanto ao Programa Novo Mais Educação como ao Novo Ensino Médio. É importante assinalar que o cenário econômico, político e institucional brasileiro pós-golpe de 2016 foi fortemente marcado pela edição da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/16 convertida na Emenda Constitucional 95/16 instituindo o Novo Regime Fiscal, a partir de dezembro de 2016, que impôs um teto rígido para gastos, inclusive com educação e saúde, pelo período de 20 anos.

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O redirecionamento das políticas públicas de educação, que se inicia no governo Temer e se intensifica sob o governo Bolsonaro, informa que projetos anunciados como “Novo”, para os ensinos fundamental e médio, apresentam propósitos de natureza e sentido regressivos em relação às políticas de educação integral efetivadas no Brasil, a partir de 2007.

 

Com efeito, os esforços das referidas políticas de educação integral vigentes até 2016 contribuíram para o avanço de um campo identificado com concepções emancipatórias de educação.

 

Nesse sentido, a educação deveria contemplar o pleno desenvolvimento dos homens e das mulheres, dotando-os de capacidade para se libertarem da realidade opressiva e se livrarem das injustiças, como nos aponta o educador Paulo Freire (2016), na perspectiva do ideal da educação integral, politécnica e omnilateral, conforme exposto na obra Textos sobre a Educação e Ensino, dos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels. Ora, é justamente essa perspectiva emancipatória que dará elementos de formação para que os homens e mulheres se oponham à herança histórica dominante do pragmatismo, tecnicismo e economicismo que marcam a educação unilateral, como tem apontado o educador Gaudêncio Frigotto

Educação domiciliar no contexto do “Novo Ensino Médio” 

Diante disso, qual o sentido de uma educação tecnicista, como proposto na política do Novo Ensino Médio?

 

O programa, nascido por meio de Medida Provisória 746/2016 e convertido na Lei n.º 15.415, de fevereiro de 2017, enfrentou forte reação de alunos secundaristas e especialistas, materializada sob a forma de ocupação de escolas e universidades, durante longo período no ano de 2016.

 

As principais críticas à proposta do “Novo Ensino Médio” residem na limitação ao direito de aprender do aluno, na medida em que o programa flexibiliza a oferta de disciplinas da área das humanidades, a exemplo da sociologia, tornando-a eletiva, além de reforçar  a natureza conteudista do aprendizado.

 

Assim, as discussões sobre as alterações propostas na MPV 746/2016, convertida na Lei 13.415/2017, reforçam e retornam os debates sobre formação técnica versus formação tecnicista, na perspectiva de que as mudanças reduzem a importância da formação humanista, que privilegia o modelo crítico e dialógico, reabrindo também a discussão sobre a finalidade instrumental da educação com vista à inserção no mundo produtivo.

 

As novas orientações previstas na Lei 13.415/2017, dentre muitos dos aspectos que regulamentam, atuam no sentido de limitar ou invisibilizar o debate sobre temáticas ligadas à formação da identidade brasileira, como sugeriram Robson Oliveira Gonçalves e Vinícius Silva Bonfim em trabalho sobre o tema apresentado em evento realizado em 2017 - e a sua consequente prática no ambiente da escola - num movimento de reforço da matriz colonial de educação, empobrecendo a dimensão cultural no contexto da educação e favorecendo a tendência a um ideal de ‘cidadania homogênea’, já criticada por Carlos Alberto Torres em seu livro Democracia, Educação e Multiculturalismo, na medida em que tal referência não contempla a diversidade e o pluralismo presentes no mundo real da escola.

 

As investidas contra um modelo de formação integral na educação básica também atingem o locus escola. A partir da instalação do governo Bolsonaro, em 2019, discursos e pronunciamentos públicos indicam que questões de moral, costumes e religião se sobrepõem às questões educacionais e sociais e se verifica a ascensão de grupos ideológicos (liberais na economia e conservadores nos costumes), disputando espaços públicos para realizarem a mediação de assuntos relacionados à educação pública.  

 

Nesse contexto, uma nova proposta para a educação, identificada como educação domiciliar (homeschooling), ganha impulso. A defesa desse modelo de educação se centra na liberdade de escolha das famílias para educarem seus filhos em casa. Essa tese encontra muitas resistências, tendo em vista o papel institucional da escola enquanto meio socializador e, principalmente, o contexto que conforma a realidade da educação pública no Brasil e a correlação positiva entre desigualdades sociais e desigualdades educacionais, como assinala Eveline Algebaile em seu livro sobre A Escola Pública e a Pobreza no Brasil, de 2009.  

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Foto: Ao artigo de Sueli Veiga Melo “Prejuízos da Educação Domiciliar ou “Homeschooling”

Ademais, resta evidenciar que o esforço de educar em domicílio não é um poder de escolha de todos, como a oferta da escola pública, e se trata de uma modalidade de educação que exige disponibilidade, recursos e condição de escolaridade aos pais. Como será possível legalizar uma prática educacional como a da educação domiciliar se uma das condições verificadas entre os pais-educadores, segundo aponta André de Holanda Padilha Vieira em sua monografia sobre a adoção desse modelo de educação no Brasil, é o seu alto capital cultural?

 

Ao se contrapor ao projeto de escola e às questões sobre princípios e valores que essa instituição contempla, a educação domiciliar pode ser um artifício para autorizar pais e mães a promoverem uma educação à imagem e semelhança de suas convicções, na medida em que entendem que a escola não deve abordar questões políticas, ideológicas, e mesmo religiosas, que possam vir a se confrontar com os ideais das famílias.

 

Ao abordar algumas das políticas para a educação básica implantadas no Brasil desde o Programa Mais Educação, o Novo Mais Educação, o Novo Ensino Médio e a Educação Domiciliar, identificamos pelo menos dois movimentos de ruptura em relação ao ideal da formação omnilateral: a ênfase ao tecnicismo, nas formas e conteúdos propostos e o direcionamento religioso, confrontando o ideal da educação pública e laica.   

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Foto: Reunião da Comissão Mista do Congresso Nacional para debater a MP 746/16. Foto: Senado Federal   

As políticas propostas não ensejam ou encaminham discussões acerca da melhoria dos processos de aprendizagem, estes, situados na perspectiva de responder às questões sobre o que aprender, para quê e como aprender, além dos debates sobre os sujeitos desse aprendizado e como as políticas públicas contribuem ou restringem a melhoria desses processos.

 

Dessa maneira, as políticas públicas para a educação básica, propostas desde 2016, atuam no sentido de restringir as possibilidades de formação integral, na visão omnilateral da concepção marxista de formação polivalente e operam no sentido da visão instrumental da educação, aproximada à teoria do capital humano e à concepção pedagógica produtivista.

 

A prevalência da perspectiva de educação instrumental - que produz conformidade e consensos -, como já assinou o filósofo hungaro István Mészáros em sua obra A Educação Para Além do Capital, nos encaminha à reflexão sobre quem propõe, interfere e ganha com as políticas propostas nessa quadra da história.

 

O reconhecimento da natureza política da educação e das lutas travadas no Brasil nos informa sobre avanços e recuos das políticas públicas destinadas a essa área social, revelando as marcas dos processos que atuam no sentido da ruptura da natureza das relações sociais versus àqueles que se movem no sentido da manutenção da velha ordem social.  

 

Nessa direção, pode-se inferir que as medidas em curso sobre a escola; os professores e professoras; os alunos e alunas, revelam a perda da autonomia do professor e da escola e, nessa perspectiva, como destacado por Moacir Gadotti em seu livro Pensamento Pedagógico Brasileiro, a escola sem autonomia não possui capacidade em educar para a realidade.

PARA SABER MAIS

ALGEBAILE, E. Escola Pública e Pobreza no Brasil: a ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina, Faperj, 2009. 

BRASIL. Lei nº 9.394, de 30 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Câmara dos Deputados, 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 3 jun. 2016.

_______. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Ed.Saraiva, 2006.

FREIRE. P. Conscientização. Tradução de Tiago José Risi Leme. São Paulo: Cortez Editora, 2016.

GADOTTI, M. Pensamento Pedagógico Brasileiro. 8°edição. São Paulo: Ática, 2006.

MARX, K.; ENGELS, F. Textos sobre Educação e Ensino. Tradução Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2004.

FRIGOTO. G. Teoria e práxis e o antagonismo entre a formação politécnica e as relações sociais capitalistas. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 7, Suplemento, p.67-82, 2009a. Disponível em: <http://www.revista.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=NumeroAnterior&Num=41>. Acesso em: 21 mar. 2018.

________. G. Prefácio. In: ALGEBAILE, E. Escola Pública e Pobreza no Brasil: a ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina, Faperj, 2009b.

________. G. Educação e a Crise do capitalismo Real. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

MÉSZÁROS, I. A Educação Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2008.

OLIVEIRA, G. R., BONFIM, V. S. A Decolonialidade na Educação em Direitos: a reforma do ensino brasileiro. In: Jornadas Bolivares: A educação na América Latina e 100 anos de Córdoba, 13., Florianópolis, 2017. Anais… Florianópolis: Instituto de estudos Latino-Americano, UFSC, maio 2017. Disponível em:<http://www.iela.ufsc.br/jornadas-bolivarianas/xiii-edicao/anais-da-xiii-edicao-das-jornadas-bolivarianas/jornadas-10> Acesso em: 10 dez. 2017.

SOUZA. J. A Radiografia do Golpe. Rio de Janeiro: Leya, 2016.

TORRES, C. A. Democracia, educação e multiculturalismo. Dilemas da cidadania em um mundo globalizado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

VIEIRA, A.de H.P. Escola? Não, obrigado: um retrato do homeschooling no Brasil. Disponível em  http://bdm.unb.br/bitstream/10483/3946/1/2012_AndredeHolandaPadilhaVieira.pdf. Acesso em 11 abr. 2019.

A AUTORA

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Mônica Porto Carreiro Monteiro é graduada em Administração com Especialização em C&T e Mestre em Administração. Atua como Analista em C&T da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Foi Coordenadora Geral de Ações do Programa Mais Cultura, no Ministério da Cultura (2008/2011) e do Plano de Desenvolvimento Institucional da Fundaj (2013-2014). Doutorou-se em Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Maranhão.

COMO CITAR ESSE TEXTO

MONTEIRO, Mônica. As ofensivas sobre a educação básica no Brasil: da educação integral à educação domiciliar. Coletiva, Recife, n. 31 Coletiva. set.out.nov.dez. 2022. Disponível em <https://www.coletiva.org/dossie-reforma-do-ensino-medio-n31-artigo-as-ofensivas-sobre-a-educacao-basica-monica-monteiro>. ISSN 2179-1287.

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