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Trabalho Imaterial e Precarização

Henrique Amorim

Começo pelo seguinte questionamento: a precarização do trabalho é um fenômeno social recente ou remonta a outros períodos da história da sociedade capitalista?

Há, pelo menos, duas formas, não excludentes, de compreendermos a questão da precarização do trabalho. A primeira delas está relacionada à estrutura de organização da sociedade capitalista em classes sociais. A primeira divisão do trabalho, como nos sugere Karl Marx, em “O Capital” (1988), constitui a sociedade capitalista como uma sociedade estruturalmente desigual. Na medida em que a formação social capitalista pressupõe a existência de uma classe que detém os meios de produção da vida e outra que está apartada desses meios de produção, pode-se concluir que o trabalho do tipo assalariado, trabalho típico da sociedade capitalista, em seu nascedouro, se constitui estruturalmente como um trabalho precário. Precário no sentido em que se trata de uma atividade forçada (não livre) e que remete à subordinação e à exploração da classe trabalhadora pela classe capitalista.

No entanto, o trabalho assalariado não nasce abstratamente. Ele é uma forma histórica e concreta que tem como objetivo central a reprodução dessa divisão em classes, isto é, que tem por objetivo, com base na produção de mercadorias, reproduzir as formas de exploração e dominação capitalistas. Em sua constituição tipicamente capitalista, a forma histórica do trabalho assalariado tem algumas características que remontam à produção baseada na maquinaria. Esse tipo de produção, desenvolvido, sobretudo, no século XVIII e radicalizado nos séculos XIX, XX e XXI, passa por variadas transformações sociais. De um lado, podemos observar transformações técnicas e tecnológicas, de outro, transformações gerenciais, organizacionais e produtivas.

Tais transformações, aparentemente técnicas, são, na verdade, processos de reorganização da subalternidade da classe trabalhadora, isto é, esses processos de reestruturação da produção, as chamadas reestruturações produtivas, têm um duplo objetivo: ao mesmo tempo em que o capital procura aumentar a produtividade do trabalho com a introdução de um aparato técnico, tecnológico e gerencial, procura, também, para atingir a recuperação ou o aumento da produtividade, desvalorizar e desqualificar os coletivos de trabalho. Na medida em que os processos de reestruturação da produção são intrínsecos e necessários à reprodução social da classe capitalista, haja vista sua necessidade de expandir suas formas de lucro, impõe-se um processo de desvalorização e desqualificação profissional da classe trabalhadora.

Portanto, a precarização do trabalho é um processo constante e necessário à reprodução do capital. No entanto, tal processo assume múltiplas formas que devem ser historicizadas. Por exemplo, na Inglaterra, no início da industrialização no século XVIII, as jornadas de trabalho eram de até 18 horas diárias, as condições de trabalho e de moradia eram degradantes e os salários, por conta da grande oferta de trabalho, muito baixos. No final do século XIX e início do século XX, com a introdução do taylorismo e do fordismo nos Estados Unidos e depois na Europa, temos um outro exemplo de precarização do trabalho.

 

Com a introdução do taylorismo, o saber-fazer produtivo foi retirado da classe trabalhadora e transferido para a gerência e para a engenharia de produção. O trabalhador, que antes tinha um conhecimento mais integral da produção, passa apenas a executar tarefas simples e repetitivas. Ou seja, restou aos coletivos de trabalho, sob a lógica da produção taylorista, executar o trabalho, passando, a partir de então, a ser elaborado por setores alheios à intervenção do trabalhador coletivo ou individual.

Tem-se, assim, um processo de precarização do trabalho que passa, como já dissemos, pela desqualificação profissional e pela desvalorização da força de trabalho, o que por consequência remete à maior intensidade produtiva, com menores salários. Já nos anos 1960 e 1970, outra reestruturação produtiva, a toyotista, atingiu a classe trabalhadora.

 

A introdução de tecnologias microeletrônicas, com a automação e a robótica, proporcionou uma enorme redução, sobretudo na Europa, Estados Unidos e Japão, do contingente de trabalhadores necessários à produção de mercadorias. Houve, com isso, um aumento das taxas de desemprego, do aumento dos empregos informais que foram sustentados por medidas políticas neoliberais que, em síntese, diminuíram os direitos e garantias trabalhistas, precarizando o trabalho em suas mais variadas frentes.

Do que foi dito até aqui, podemos tirar duas conclusões intermediárias: a primeira é que o trabalho assalariado é estruturalmente precário, a segunda, é a que as formas históricas de precarização do trabalho se referem a perdas da classe trabalhadora frente a sua pretérita condição de trabalho e de vida. Isto é, todas as vezes que se afirma que o trabalho e as condições de trabalho foram precarizados devemos remeter, necessariamente, à condição historicamente anterior dos coletivos de trabalho de uma formação social específica. Por exemplo, o trabalhador especializado que nasce com a reestruturação taylor-fordista pode ser considerado mais precário que o trabalhador artesão que precedeu a implantação do taylor-fordismo do ponto de vista do controle do processo de trabalho.

Não obstante, há um elemento que aprofunda nossa discussão. Todos esses processos históricos são marcados por contradições e conflitos sociais que nos remetem à luta entre capital e trabalho. De um lado, o capital procura aumentar suas margens de lucro pela desvalorização do trabalho, de outro, o trabalho (as classes trabalhadoras) procura ampliar suas condições de trabalho e de vida. Na medida em que a classe trabalhadora aumenta suas condições de trabalho e vida, o capital reduz suas taxas de lucro.

 

São, então, as conquistas políticas e econômicas da classe trabalhadora que são objeto do capital para voltar a se valorizar e, portanto, que nos informam historicamente se um trabalho, em uma dada conjuntura, é ou não mais precário que aquele que o precedeu na conjuntura anterior. Nesse sentido, falar historicamente em precarização do trabalho é pensar em quão exitosas foram as estratégias política e econômica do capital, numa dada conjuntura, para desqualificar e desvalorizar a força de trabalho, procurando, assim, restaurar as taxas de lucro a níveis aceitáveis pelas próprias classes capitalistas em presença.

Feita essa sumária introdução sobre o que entendemos por precarização do trabalho, chegamos ao nosso tema central, o trabalho imaterial. Esse tipo de trabalho foi atingido pela precarização do trabalho?

Uma primeira observação se refere a um ponto que discutimos acima. O trabalho imaterial seria ainda regido sob a lógica de valorização do capital? Ou seja, ele seria uma forma assalariada de trabalho que produz lucro aos capitalistas? Ou ele foge à lógica de valorização do capital e estabelece uma nova ordem social, sem exploração e subordinação do trabalho, sem criação de mais-valia e que atende aos anseios dos trabalhadores, com jornadas de trabalho decididas pelo trabalhador coletivo, com altas remunerações, que superam apenas o custo de reprodução social do trabalhador, e com políticas estatais de qualificação profissional que extravasam as necessidades de acumulação capitalista e que tenham como norte a estruturação de um modo de vida para além da lógica do capital?

Nos parece que nesse sentido nada mudou. Estruturalmente, todas as formas de trabalho respondem ainda direta ou indiretamente à lógica de valorização do capital. Vivemos em uma sociedade capitalista e se há acordo sobre isso, devemos concordar que, para que a sociedade capitalista se reproduza é necessário se reproduzir as formas estruturais que dão sentido a essa sociedade, isto é, devemos acordar que a divisão em classes sociais se reproduz e que a exploração da classe trabalhadora nos processos de produção de mercadorias é a forma central e necessária para a manutenção dessa forma social de vida.

Essa constatação nos leva ao exame do trabalho imaterial como uma forma de trabalho assalariado, mais do que isso, como um trabalho que também se caracteriza como uma forma típica de trabalho no capitalismo, o trabalho abstrato, nos termos de Marx. No entanto, mesmo sendo o trabalho imaterial uma forma de trabalho abstrato que produz mais-valia, com base na exploração do tempo de trabalho, ele tem características particulares, como indico no artigo “O tempo de trabalho: uma chave analítica” (2013). Portanto, do ponto de vista do trabalho concreto, ele se difere de outros tipos de trabalho.

 

Por exemplo, o trabalho do programador de software é diferente do trabalho da indústria de agronegócios, o trabalho do digitador é diferente do trabalho do ferramenteiro da fábrica de carros, o do trabalhador de teleatendimento é diferente do trabalho operário das indústrias de eletrodomésticos. Há uma diferença central aqui. De um lado, o programador, o digitador, e o tele-operador têm, como matéria-prima específica de sua produção, o conhecimento, a informação, a comunicação; enquanto, o operário agrícola, o ferramenteiro e o operário da indústria de eletrodomésticos operam com a terra, máquinas de cultivo e montagem de ferramentas físicas em linhas de produção.

Assim, mesmo que sob a lógica de produção de mercadorias, enquanto alguns tipos de trabalhadores operam com uma matéria-prima intangível (não-física) e produzem mercadorias intangíveis (não-físicas), outros operam com uma matéria-prima tangível (física) e produzem mercadorias tangíveis (físicas), como indico no texto: “As teorias do trabalho imaterial: uma reflexão crítica a partir de Marx” (2014). No entanto, para alguns autores, com o desenvolvimento da produção e do trabalho imaterial, operar matérias-primas e produzir mercadorias intangíveis estabeleceria um novo paradigma produtivo que se descolaria da produção tipicamente capitalista. A imaterialidade da produção e do trabalho foi, então, considerada, por se utilizar do conhecimento, da informação e da comunicação, como uma alternativa produtiva à produção capitalista.

Essa indicação se baseia em dois argumentos: 1) não seria mais possível medir, pelo tempo de trabalho, o trabalho e produção imaterial e, por consequência, 2) tal produção romperia com a lógica de valorização do capital, baseada na exploração do tempo de trabalho. O filósofo austro-francês André Gorz, em “O imaterial: conhecimento, valor e capital” (2005), conclui, por exemplo, que a produção e o trabalho imaterial seriam tendencialmente centrais para as sociedades contemporâneas, desenvolvendo-se uma “economia do conhecimento” que tendencialmente constituiria um “comunismo do saber”.

Contrariamente, entendemos que a produção baseada no conhecimento, informação e comunicação, em vez de romper com a lógica capitalista de produção, foi radicalizada. Ou seja, o capital aprendeu a explorar também as formas de trabalho intelectuais. Avançou em uma nova fronteira produtiva, como aponto em “Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo” (2009).

Se até os anos 1950 e 1960 a dimensão física se apresentava como a força produtiva central que o capital se utilizava para exploração do trabalho e para a produção de lucro, hoje, a essa produção física, se soma a produção não-física, isto é, imaterial. Ela, obedecendo à mesma lógica, também reproduz as formas de precarização do trabalho. No Brasil dos últimos anos, por exemplo, os teleoperadores de indústrias de teleatendimento têm uma das mais altas taxas de rotatividades no trabalho, permanecendo em média apenas oito meses no trabalho. Além disso, têm condições de trabalho com alta intensidade produtiva, controle gerencial despótico, metas produtivas também altas e índices de doenças por estresse e psíquicas. Somado a isso o valor da força de trabalho desse segmento profissional é um dos mais baixos do Brasil.

Portanto, o capital, de uma forma global, além de reproduzir as formas tradicionais taylor-fordistas de exploração, controle e precarização em trabalhos nos quais predominam atividades manuais passou a explorar também e combinadamente os trabalhos nos quais predominam as atividades intelectuais.

PARA SABER MAIS 

AMORIM, Henrique. As teorias do trabalho imaterial: uma reflexão crítica a partir de Marx. Caderno CRH (UFBA. Impresso), v.27, p.31 – 45, 2014.

_______. O tempo de trabalho: uma chave analítica. Revista Sociedade e Estado, Brasília, UnB, v. 28, n. 03, p. 503-518, 2013.

_______. Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo. São Paulo: Annablume, 2009.

GORZ, André. O Imaterial: Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005.

MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Nova Cultural, 1998.

O AUTOR

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Henrique Amorim é professor Adjunto de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (UNIFESP-Campus Guarulhos) e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais (UNIFESP-Campus Baixada Santista) da Universidade Federal de São Paulo. É coordenador do Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho (GPCT). Atua na área de Sociologia, com ênfase em sociologia do trabalho e teoria social, pesquisando principalmente os temas: trabalho, trabalho imaterial e precarização do trabalho, classes e movimentos sociais, produção, processos de trabalho e valor.

COMO CITAR ESSE TEXTO

AMORIM, Henrique. Trabalho Imaterial e Precarização. Revista Coletiva, Recife, n. 19, maio.jun.jul.ago. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-precarizacao-e-trabalho-n19-trabalho-imaterial-e-precarizacao-por-henrique-amorim>. ISSN 2179-1287.

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