Pássaro mensageiro Acauã, pedras que assentam entidades, cachimbos adornados com serpentes onde a fumaça tem a força de adentrar reinos encantados e cultuados na Jurema Sagrada marcam a natureza mística da exposição Invenção dos Reinos, na Oficina Brennand, no Recife. Esses elementos, saberes e artefatos marcam a religiosidade de povos e comunidades tradicionais indígenas e afrodiaspóricas gestada desde antes da colonização. São cosmologias e modos de vida representando um forte pertencimento ao território e convívio em harmonia com o meio ambiente.
A exposição — que segue aberta até setembro de 2024 — traça diálogos entre as obras do ceramista Francisco Brennand e de mais de 28 artistas contemporâneos, de diferentes gerações, do Norte e Nordeste brasileiros, que tem como uma de suas referências a Jurema Sagrada. Contra a realidade forjada pelo olhar do colonizador, narrativas descentradas e decoloniais vêm ganhando destaque, sendo a primeira vez que a Instituição abriga o trabalho de outros artistas com cosmologias que encantam aves, matas e rios.
A “invenção do reino brennandiano” no bairro da Várzea insere o museu não mais nas “matas de Brennand” como propriedade privada, mas nas matas que povos tabajaras habitaram; matas também situadas no Quilombo do Catucá, conhecida por seus atuais moradores como “mata do catimbó”, devido à entrega de oferendas. Terras também nomeadas de “mata do segredo” pelo próprio Francisco Brennand, que afirmava que esta lhe era inacessível em razão de seus mistérios e enigmas inconfessáveis. Todos esses codinomes foram o ponto de partida para a pesquisa da curadoria da exposição, que resultou na seleção das obras e dos artistas participantes.
A mostra traz implícitamente a rediscussão do papel do museu ao romper com o antagonismo clássico entre cultura e natureza —esta última mais associada às comunidades tradicionais e àquela, ao museu como equipamento colonial. Para Henrique Falcão, assistente de curadoria, pesquisador da Jurema e juremeiro de nascença, a instituição vive um momento ímpar ao abrigar obras com outras cosmologias vinculadas às matrizes de terreiro. Esse espaço representa, ao longo da trajetória, a “saída da subalternidade da Jurema, essa virada de apresentar a jurema como um culto que, até então, era unicamente representado como baixo espiritismo”.
Henrique, que foi nosso guia durante a visita à exposição, menciona os contextos em que aconteciam as conversas para seleção das obras, que eram bem situadas nas experiências particulares que os curadores têm com a Jurema. “As reuniões de curadoria eram atravessadas o tempo inteiro por conversas que envolviam espiritualidade, território, e como a gente não consegue desassociar cosmologia e território; de como foram essas memórias afetivas, de ter uma formação de terreiro na família, [que levaram] às práticas que a gente faz hoje”. O juremeiro afirma que o público de terreiro reconhecerá as simbologias e perceberá as nuances dessa exposição, sentindo-se pertencente a ela.
Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera
Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera
Uma das peças escolhidas, que se apresenta à primeira vista no salão da exposição, é um cachimbo serpenteado por uma cobra coral, de autoria de Reginaldo de Mestre Manoel Quebra Pedra (PE). Reginaldo produz artefatos sob a influência da Ciência Sagrada, repassada por seu Mestre, que cumprem sobretudo uma função litúrgica. “A intuição de qual material ele precisa para ser usado em determinada peça litúrgica vai ajudar no trabalho daquela entidade, trazendo força, energia e ciência para ela trabalhar e cumprir aquele trabalho com muito êxito dentro do culto da Jurema Sagrada”, indica o artista sobre o processo de criação. A serpente utilizada na ornamentação do cachimbo traz toda a encantaria do seu guia protetor, o Caboclo Cobra Coral.
Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera
Ateliê de Reginaldo de Manoel Quebra Pedra. Créditos: Foto divulgação
Reginaldo afirma que “a cobra trata de força, de ciência, de encantaria usada pelos grandes pajés.Os indígenas usavam muito isso, porque os caboclos também se encantavam em forma de animais”. Assim, o cachimbo é um dos artefatos centrais para saber se a Jurema é “de força”, como na toada abaixo, ponto do mestre Manoel quebra-pedra.
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foi uma fumaça ao contrária mandada por Quebra Pedra…
Sou eu sou eu Manoel Quebra Pedra sou…
Henrique ressalta que “a fumaça é o elemento sagrado. É através dela que conseguimos fazer a comunicação entre os mundos e ter acesso à ancestralidade. Fazer catimbó é fazer fumaça”, enfatiza o pesquisador sobre a natureza da Jurema, que passa a ser assim nomeada em razão de um movimento de valorização da comunidade contra o estigma e o preconceito.
Dividindo as atenções, está outro cachimbo conhecido como Xanduca Katuá, do artista Fakhô Fulni-ô, pertencente ao grupo étnico Fulni-ô, situado em Águas Belas (PE). Fakhô tem sua obra mantida em sua língua natal, o Yaathe, como um dos princípios da curadoria: de zelar e preservar a identidade das obras. O cachimbo que traz a força da jiboia como animal de encanto tem a aparência de escamas, produzido na técnica da palha trançada, que bem caracteriza a ritualística do povo Fulni-ô.
Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera
Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera
Logo ao lado, há três peças criadas pelo multiartista Fykyá Pankararu. Assim como Fakhô Fulni-ô, Fykyá também utiliza uma técnica representativa de seu povo. Neste caso, a cerâmica, que é uma prática tradicional do povo Pankararu, que adquire formas artísticas e não meramente utilitárias na exposição. As peças que compõem a obra representam Acauã, que é um pássaro mensageiro que indica os períodos de seca e de chuvas para essa etnia e o Mestre Gavião , que enxerga longe e , simbolicamente, novos horizontes. Na tradição da Jurema, Acauã não tem um sentido trágico, de pressagiar a morte, mas sim de reverência a essa grande ave de rapina.
O Coan, outro modo de nomear o pássaro ancestral dos Pankararu, está ao lado de uma divindade importante para diversos povos originários: o Praiá. O artista Bezinho Kambiwá talha a madeira linha por linha, como se fossem palha de caroá, e entalha o adorno como se fossem penas no topo da cabeça, para caracterizar um espírito encantado, o Maracanã. Os Praiás, segundo Henrique, são figuras relacionadas ao território e à cosmologia indígena que invocam os Encantados. “Ele é feito para representar justamente a entrada na mata”, complementa.
Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera
No outro lado da exposição, estão três tríptico de fotografias de performances intitulado Anhanguêra mosykyîe oré nã abé, de Abiniel J. Nascimento. As fotos foram realizadas na mata do entorno da Oficina Brennand, a convite da própria instituição. No trabalho, Abiniel reúne os ritos da Jurema contemporânea às memórias familiares e aos registros de ritos indígenas de saudação aos espíritos encantados, os Anhangás.
“Há alguns anos tenho me firmado efetivamente na Jurema enquanto espiritualidade. Esse firmamento me deu e me dá possibilidades de entrever as relações entre os mundos visíveis e invisíveis, os quais atravessam meu trabalho de forma categórica. Não há Jurema sem consciência política, de identidade, de território”, conta o artista, para o qual essa memória da terra afeta o seu presente, mas tem o corte da cana atravessando suas origens na cidade de Carpina, na Mata Norte de Pernambuco.
Créditos: Foto divulgação
Nas imagens, a simbologia da Jurema aflora com elementos de oferta incorporados à mata e ao corpo do artista. Há nas imagens rolos de fumo preto espalhados pelo chão, uma prática para pedir permissão aos espíritos antes de adentrar em uma mata. Para Henrique, o fumo de rolo também serviria “como se o trauma colonial pudesse ser minimamente amenizado com a espiritualidade", já que a memória do engenho ainda se faz tão presente nas matas da oficina. Na obra que compõem o conjunto, também há o mel usado nas oferendas, que aparece banhando o artista. “Também utilizo a cana de açúcar e o carvão como matérias que apontam para um passado do território [a mata de Brennand] quando ele se estabelece como engenho de cana de açúcar”, diz.
Créditos: Foto divulgação
No último tríptico, vê-se uma imensidão de flores e penas sendo carregadas pelo artista. As flores são crisântemos brancos, muito presentes em rituais fúnebres. Para Abiniel, a escolha das flores cria uma conexão entre os tempos de vida e de morte. “Devo dizer que o trabalho é uma grande costura de tempos, um vórtice”, afirma ele.