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A Invenção dos Reinos em terras de Jurema Sagrada: a força do catimbó 

Reportagem: Marcela de Aquino

Entrevista: Marcela de Aquino e Maria Carolina Santos 

Revisão: Mylena de Paula 

Edição: Cristiano Borba

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Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

Pássaro mensageiro Acauã, pedras que assentam entidades, cachimbos adornados com serpentes onde a fumaça tem a força de adentrar reinos encantados e cultuados na Jurema Sagrada marcam a natureza mística da exposição Invenção dos Reinos, na Oficina Brennand, no Recife. Esses elementos, saberes e artefatos marcam a religiosidade de povos e comunidades tradicionais indígenas e afrodiaspóricas gestada desde antes da colonização. São cosmologias e modos de vida representando um forte pertencimento ao território e convívio em harmonia com o meio ambiente. 

 

A exposição — que segue aberta até setembro de 2024 — traça diálogos entre as obras do ceramista Francisco Brennand e de mais de 28 artistas contemporâneos, de diferentes gerações, do Norte e Nordeste brasileiros, que tem como uma de suas referências a Jurema Sagrada. Contra a realidade forjada pelo olhar do colonizador, narrativas descentradas e decoloniais vêm ganhando destaque, sendo a primeira vez que a Instituição abriga o trabalho de outros artistas com cosmologias que encantam aves, matas e rios

 

A “invenção do reino brennandiano” no bairro da Várzea insere o museu não mais nas “matas de Brennand” como propriedade privada, mas nas matas que povos tabajaras habitaram; matas também situadas no Quilombo do Catucá, conhecida por seus atuais moradores como “mata do catimbó”, devido à entrega de oferendas. Terras também nomeadas de “mata do segredo” pelo próprio Francisco Brennand, que afirmava que esta lhe era inacessível em razão de seus mistérios e enigmas inconfessáveis.  Todos esses codinomes foram o ponto de partida para a pesquisa da curadoria da exposição, que resultou na seleção das obras e dos artistas participantes.

 

A mostra traz implícitamente a rediscussão do papel do museu ao romper com o antagonismo clássico entre cultura e natureza —esta última mais associada às comunidades tradicionais e àquela, ao museu como equipamento colonial. Para Henrique Falcão, assistente de curadoria, pesquisador da Jurema e juremeiro de nascença, a instituição vive um momento ímpar ao abrigar obras com outras cosmologias vinculadas às matrizes de terreiro. Esse espaço representa, ao longo da trajetória, a “saída da subalternidade da Jurema, essa virada de apresentar a jurema como um culto que, até então, era unicamente representado como baixo espiritismo”. 

 

Henrique, que foi nosso guia durante a visita à exposição, menciona os contextos em que aconteciam as conversas para seleção das obras, que eram bem situadas nas experiências particulares que os curadores têm com a Jurema. “As reuniões de curadoria eram atravessadas o tempo inteiro por conversas que envolviam espiritualidade, território, e como a gente não consegue desassociar cosmologia e território; de como foram essas memórias afetivas, de ter uma formação de terreiro na família, [que levaram] às práticas que a gente faz hoje”. O juremeiro afirma que o público de terreiro reconhecerá as simbologias e perceberá as nuances dessa exposição, sentindo-se pertencente a ela. 

 

 

 

 

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

Uma das peças escolhidas, que se apresenta à primeira vista no salão da exposição, é um cachimbo serpenteado por uma cobra coral, de autoria de Reginaldo de Mestre Manoel Quebra Pedra (PE). Reginaldo produz artefatos sob a influência da Ciência Sagrada, repassada por seu Mestre, que cumprem sobretudo uma função litúrgica. “A intuição de qual material ele precisa para ser usado em determinada peça litúrgica vai ajudar no trabalho daquela entidade, trazendo força, energia e ciência para ela trabalhar e cumprir aquele trabalho com muito êxito dentro do culto da Jurema Sagrada”, indica o artista sobre o processo de criação. A serpente utilizada na ornamentação do cachimbo traz toda a encantaria do seu guia protetor, o Caboclo Cobra Coral. 

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

 Ateliê de Reginaldo de Manoel Quebra Pedra. Créditos: Foto divulgação

Reginaldo afirma que “a cobra trata de força, de ciência, de encantaria usada pelos grandes pajés.Os indígenas usavam muito isso, porque os caboclos também se encantavam em forma de animais”. Assim, o cachimbo é um dos artefatos centrais para saber se a Jurema é “de força”, como na toada abaixo, ponto do mestre Manoel quebra-pedra.

 

No Pina Boa Viagem os guardas quais que lê pegam 

foi uma fumaça ao contrária mandada por Quebra Pedra…

Sou eu sou eu Manoel Quebra Pedra sou…

 

 

 

 

 

 

 

Henrique ressalta que “a fumaça é o elemento sagrado.  É através dela que conseguimos fazer a comunicação entre os mundos e ter acesso à ancestralidade. Fazer catimbó é fazer fumaça”, enfatiza o pesquisador sobre a natureza da Jurema, que passa a ser assim nomeada em razão de um movimento de valorização da comunidade contra o estigma e o preconceito.  

 

Dividindo as atenções, está outro cachimbo conhecido como Xanduca Katuá, do artista  Fakhô Fulni-ô, pertencente ao grupo étnico Fulni-ô, situado em Águas Belas (PE). Fakhô tem sua obra mantida em sua língua natal, o Yaathe, como um dos princípios da curadoria: de zelar e preservar a identidade das obras. O cachimbo que traz a força da jiboia como animal de encanto tem a aparência de escamas, produzido na técnica da palha trançada, que bem caracteriza a ritualística do povo Fulni-ô. 

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

 

 

Logo ao lado, há três peças criadas pelo multiartista Fykyá Pankararu. Assim como Fakhô Fulni-ô, Fykyá também utiliza uma técnica representativa de seu povo. Neste caso, a cerâmica, que é uma prática tradicional do povo Pankararu,  que adquire formas artísticas e não meramente utilitárias na exposição. As  peças que compõem a obra representam Acauã, que é um pássaro mensageiro que indica os períodos de seca e de chuvas para essa etnia e o Mestre Gavião , que enxerga longe e , simbolicamente, novos horizontes. Na tradição da Jurema, Acauã não tem um sentido trágico, de pressagiar a morte, mas sim de reverência a essa grande ave de rapina.

 

 

 

 

O Coan, outro modo de nomear o pássaro ancestral dos Pankararu, está ao lado de uma divindade importante para diversos povos originários: o Praiá. O artista Bezinho Kambiwá talha a madeira linha por linha, como se fossem palha de caroá, e entalha o adorno como se fossem penas no topo da cabeça, para caracterizar um espírito encantado, o Maracanã. Os Praiás, segundo Henrique, são figuras relacionadas ao território e à cosmologia indígena que invocam os Encantados. “Ele é feito para representar justamente a entrada na mata”, complementa.

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

 

 

No outro lado da exposição, estão três tríptico de fotografias de performances intitulado Anhanguêra mosykyîe oré nã abé, de Abiniel J. Nascimento. As fotos foram realizadas na mata do entorno da Oficina Brennand, a convite da própria instituição. No trabalho, Abiniel reúne os ritos da Jurema contemporânea às memórias familiares e aos registros de ritos indígenas de saudação aos espíritos encantados, os Anhangás.

“Há alguns anos tenho me firmado efetivamente na Jurema enquanto espiritualidade. Esse firmamento me deu e me dá possibilidades de entrever as relações entre os mundos visíveis e invisíveis, os quais atravessam meu trabalho de forma categórica. Não há Jurema sem consciência política, de identidade, de território”, conta o artista, para o qual essa memória da terra afeta o seu presente, mas tem o corte da cana atravessando suas origens na cidade de  Carpina, na Mata Norte de Pernambuco.

 

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Créditos: Foto divulgação

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Nas imagens, a simbologia da Jurema aflora com elementos de oferta incorporados à mata e ao corpo do artista. Há nas imagens rolos de fumo preto espalhados pelo chão, uma prática para pedir permissão aos espíritos antes de adentrar em uma mata. Para Henrique, o fumo de rolo também serviria “como se o trauma colonial pudesse ser minimamente amenizado com a espiritualidade", já que a memória do engenho ainda se faz tão presente nas matas da oficina. Na obra que compõem o conjunto, também há o mel usado nas oferendas, que aparece banhando o artista. “Também utilizo a cana de açúcar e o carvão como matérias que apontam para um passado do território [a mata de Brennand] quando ele se estabelece como engenho de cana de açúcar”, diz. 

 

Créditos: Foto divulgação

 

 

No último tríptico, vê-se uma imensidão de flores e penas sendo carregadas pelo artista. As flores são crisântemos brancos, muito presentes em rituais fúnebres. Para Abiniel, a escolha das flores cria uma conexão entre os tempos de vida e de morte. “Devo dizer que o trabalho é uma grande costura de tempos, um vórtice”, afirma ele. 

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Créditos: Foto divulgação

 

 

Outras obras de arte que precisam ser destacadas e que chamam a atenção pelo seu aspecto surrealista são os quadros de Bozó Bacamarte, que além de tornar a Jurema fonte de pesquisa e de inspiração artística, também a cultua no dia a dia. Em sua obra, as figuras são dispostas de forma caótica e jocosa, com elementos bem simbólicos da caatinga. No quadro A Chegada do Ocultar da Terra de Reis, uma cobra toca maraca; um cavalo se adorna com bengala e chapéu, assemelhando-se a um Mestre da Jurema; há velas nos altares e nas beiras dos caminhos, taças de príncipe e princesa que assentam entidades, estrela de sete pontas que ligam os planos espirituais como setes cidades para arruar quando do tombamento de seus iniciados e algumas serpentes se movendo em círculo, em busca da própria cauda. Tudo isso ilustra o cenário imagético do universo da Jurema Sagrada.

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

 

 

 

 

No segundo quadro, intitulado A Oferta do Princípio, Henrique menciona a concepção do ovo como conceito primordial da criação, tanto na obra de Brennand quanto na tradição do catimbó. Ele também faz referência a uma conversa com Bozó,  na qual o artista afirmou a precedência dessa construção como sendo dos povos originários. “Bozó vai dizer ‘ok, o ovo é um símbolo de criação, mas nessa criação brennandianda, os povos indígenas estavam primeiro’. Quase como se fosse, ‘antes do ovo de Brennand, já tinha o [ovo] dos povos indígenas’”.

Créditos: Breno Laprovitera e Gabriel Laprovitera

 

 

Invenção dos Reinos, que tem mais de 100 obras selecionadas, é representativa do interesse crescente pela religiosidade de matriz afroindígena, presente em exposições de outros museus e instituições de cultura, inclusive na Fundação Joaquim Nabuco.  A representatividade das entidades femininas da Jurema, num claro recorte de gênero em retratar através da ancestralidade na cultura visual, marca a tentativa de reparação com forte teor político que atravessa o sagrado e suas teias de significação.Com imagens em papel de bagaço de cana, a Capela do Engenho Massagana recebe as mulheres outrora escravizadas, como entidades das pombas-giras e das Mestras libertas e senhoras de si mesmas, que iniciam a construção de uma tradição por essa riscadura.

 

 

“E a jurema se abriu toda em flor”:  Mostra na Fundação Joaquim Nabuco representa a força das entidades femininas 

 

 

Fotografias de amas de leite dos séculos XIX e XX ilustradas digitalmente como Senhoras da Jurema imprimem novas releituras na exposição A sua casa não tem porta e nem janela,  no Engenho Massangana, equipamento educativo e cultural da Fundação Joaquim Nabuco no litoral sul de Pernambuco. As imagens da coleção Francisco Rodrigues foram cedidas pelo Centro de Estudos da História Brasileira (Cehibra) da Fundaj, no qual a artista visual e arte educadora Amanda de Souza pôde reimprimir em seu processo criativo a força própria de entidades femininas a partir de sua religiosidade. “Eu estava começando a inserir elementos que tinham a ver com a minha identidade religiosa, tinham a ver com o meu pertencimento, com o meu entendimento do que é ser uma mulher negra, candomblecista e juremeira,” afirma Amanda.

Para a artista, a necessidade atual de se construir uma imagética e uma heráldica pelos povos indígenas e africanizados que passaram por um genocídio influencia as suas escolhas. É este o caso na técnica de riscadura afroameríndia nos moldes pensados pelo artista Rubem Valentim em seu Manifesto ainda que tardio, na busca pela construção de uma tradição.  “Pensando no meu trabalho, já venho realizando, há pelo menos dois anos, a revisão de imagens para reivindicar esse passado de reescrita: pegar os arquivos e fazer minha intervenção em cima deles”, ressalta. 

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Muitas características inseridas nas pinturas digitais retratam entidades bem conhecidas da Jurema, como as pombagiras. São elementos que trazem a  força e o poder a essas mulheres retratadas. “Eu percebi, naquelas sete, semelhanças físicas e uma carga de personalidade que se conectavam às mulheres com que tenho essa intimidade dentro da Jurema Sagrada, as entidades femininas. E os elementos da Jurema que eu trouxe para elas foram vários. Tem as rosas, tem as cigarrilhas, tem os chapéus, as vestimentas, e outros elementos que a gente costuma oferecer em sacrifício, como o bode”. 

 

A exposição foi ambientada na capela de São Mateus, no antigo engenho de cana-de-açúcar, com o desejo da artista de “que as pessoas se sentissem provocadas a buscar um pouco mais sobre o que é a Jurema” a partir de sua obra. A exposição nesse local procurou valorizar o sincretismo, ao mesmo tempo que representou um ato político de denúncia de uma arcaica concepção  da Igreja no período colonial: de que amamentar era um ato libidinoso destinado às escravizadas. “O símbolo daquela capela é de um discurso que foi utilizado para violentar mulheres negras no passado, mulheres que foram mães, que tiveram seus filhos retirados do seu colo e foram obrigadas a abandonar seus filhos para amamentar outros”, enfatiza Amanda. 

 

A capela está em uma área de dez hectares, sendo o ponto alto do conjunto arquitetônico e  construída no final do século XVIII,integrando o conjunto Engenho Massangana — nome de origem africana. Tombado pelo estado de Pernambuco, o Engenho passou a ser considerado Parque Nacional da Abolição. 

 

 

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