
Confluências do capim-dourado. Instalação montada pelo Grupo Quilombo Mumbuca de Pesquisa (GQMP) na ocasião da defesa da dissertação de mestrado intitulada Uma escrita contra-colonialista do quilombo Mumbuca (Jalapão-TO). Fonte: acervo pessoal do autor.
Diversidade
Socioambiental
Editor temático: Pedro Silveira
nº 12 | 18 de março de 2020
Retomando o Quilombismo no fim das conciliações
Guilherme Moura Fagundes
Há ideias cuja maior força reside na sua capacidade de emergir em situações de perturbação. À semelhança de algumas plantas savânicas, cuja dormência da semente é quebrada pela passagem do fogo, ideias-forças deste tipo tendem a despontar sempre que determinadas configurações sociais se esgotem ao calor das chamas. Uma delas é o quilombismo, proposição cunhada pelo intelectual, artista e parlamentar afro-brasileiro Abdias do Nascimento.
Abdias formulou sua proposição quilombista na década de 1980, concebendo-a como um conceito operador de vínculos de solidariedade combativa junto aos povos da diáspora africana. Extrapolando a conotação etnográfica posteriormente adquirida pelos quilombos, circunscrita às formas de organização territorial das comunidades tradicionais afro-brasileiras, a proposição de Nascimento tomava os quilombos como toda e qualquer agremiação negra alinhada às lutas de emancipação, dos vilarejos rurais às favelas.
Em meio a efervescentes debates no interior da tradição de pensamento pan-africanista, bastante polarizados entre alternativas socialistas e nacionalistas, Abdias propôs fazer do quilombismo a imagem primordial da resistência afro-americana. Tratava-se, ainda, de um receituário programático: ao mesmo tempo princípio ativo para a organização das lutas diaspóricas e antídoto contra o genocídio negro nas Américas.
Mas por que a antropologia deveria retomar o quilombismo hoje? Enquanto antropólogos brasileiros comprometidos com a pesquisa e a defesa das formas de vida quilombola, ao menos dois movimentos contemporâneos têm nos impulsionado a este gesto. O primeiro deles é a conjuntura política internacional, que atesta o reavivamento de uma era de extremos. Está cada vez mais evidente o esgotamento de antigas estratégias de conciliação entre interesses antagônicos, que fundamentavam tanto a social-democracia no mundo ocidental quanto o pacto da nova república no Brasil.
Num cenário onde o levante da extrema-direita não é exclusividade brasileira, um dos grandes desafios consiste em disputar um horizonte de transformações comuns, no qual a carência de proposições negras contribui para a renovação dos velhos totalitarismos brancos. A potência do programa quilombista reside justamente em sua característica propositiva, não apenas defensiva ou reativa, de colocar o movimento quilombola em constelação com outras lutas emancipatórias da diáspora africana.
Mas qual seria o papel da antropologia nessa retomada do quilombismo? A primeira tarefa consiste em contribuir para a reabertura de debates no interior das variadas correntes do pensamento pan-africanista. Conceber os quilombos em conjunto com outras lutas emancipatórias também significa ampliar o espectro político da igualdade racial e manutenção dos direitos territoriais assegurados pela Constituição brasileira de 1988. Para avançar essa proposição, é necessário relembrar o que ficou conhecido como a “ressemantização” do conceito de quilombo no Brasil e o papel exercido pelos antropólogos nesse processo.
O trabalho da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) junto a parlamentares e ativistas do movimento negro foi muito eficaz na tradução da noção de “remanescentes de quilombos” em marcos legais compatíveis com a diversidade de formas de associação e territorialidade afro-brasileiras. A própria elaboração do Decreto nº 4.887/2003, responsável pela regulamentação do artigo constitucional que garante os direitos territoriais às comunidades quilombolas, resulta desse gesto de public anthropology. No entanto, com a esperança de efetivação do texto constitucional, a antropologia brasileira também contribuiu para a conversão do quilombismo em demandas por reconhecimento e justiça distributiva contextualmente localizadas. Traduzida pelos estudos de etnicidade e pela vasta literatura nacional sobre o campesinato, a proposição quilombista foi purificada de seu aspecto mais radical, associado à agenda pan-africanista.
Mas a conjuntura de agora é outra, bem menos inebriada pelo compromisso conciliatório que marcou a celebração da carta constitucional de 1988. Em publicação recente, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a organização Terra de Direitos demonstram que, entre os anos de 2008 e 2017, ocorreram 38 assassinatos em comunidades quilombolas motivados por racismo e violência relacionada a disputas pela titulação territorial. Vale ainda destacar a variação de 350% no número de assassinatos de quilombolas entre os anos de 2016 e 2017, passando de 4 para 18.
Em paralelo, está em marcha um processo de sucateamento do aparato estatal de promoção de políticas públicas e efetivação dos direitos assegurados às populações tradicionais. Em sua reestruturação administrativa, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), responsável pelos procedimentos de regularização dos territórios quilombolas, foi transferido do Ministério da Justiça para do Ministério da Agricultura, entregando à facção mais radical do agronegócio brasileiro o controle sobre a titulação destes territórios. Não por acaso, a dotação orçamentária de 2019 reservada às desapropriações é de apenas R$3.423.082,00, ou seja, pouco mais de 6% dos R$ 54.200.000,00 dotados no ano de 2010.
Tais dados são reveladores de uma verdadeira necropolítica dirigida a este segmento populacional, articulando “fazer morrer” e “deixar morrer”, genocídio e negligência. Ademais, com o despontar do bolsonarismo e sua guinada conservadora, já não há lugar para apelos de conciliação baseados no pacto republicano e no respeito aos grupos minoritários. O que segue no Brasil hoje é uma explícita ofensiva contra a população afro-brasileira, tanto no campo quanto nas periferias das cidades. Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro foi inocentado de uma ação promovida do Ministério Público Federal que o acusava de afirmações racistas justamente contra quilombolas. Em abril de 2017, o então pré-candidato à presidência afirmou em evento público que “quilombola não serve nem para procriar”, além de comparar afrodescentes a animais que pesam “7 arrobas”. Neste contexto, nada é mais pueril que esperar do aparelho estatal qualquer condição de amparo à resistência quilombola.
Para finalizar este texto, gostaria de insistir num segundo movimento contemporâneo que tem nos impelido, enquanto antropólogos, a reativar o quilombismo. Esse outro, certamente ainda mais provocativo à tradição etnográfica, consiste em levar a sério o modo como os próprios quilombolas estão reatualizando a proposição quilombista. Cada vez mais presentes em cadeiras de graduação e pós-graduação, a juventude quilombola experimenta um processo criativo de apropriação de literaturas afro-americanas. Em minha própria experiência de pesquisa, junto a comunidades quilombolas na região do Jalapão (TO), tenho acompanhado o modo como a juventude tem buscado retomar a proposição quilombista em suas monografias e dissertações de conclusão de curso. E eles o fazem de maneira bastante original, articulando-a com a produção intelectual de pensadores quilombolas contemporâneos, como o mestre Antônio Bispo e sua proposição “contra-colonial”.
Digamos que este também seja um efeito não premeditado da política de ações afirmativas no Brasil: se coube aos próprios quilombolas retomar o quilombismo, cabe à antropologia aprender com eles como resistir à época do fim das conciliações.
NOTAS:
[1] Texto originalmente publicado na série 'Hot Spots', da Society for Cultural Anthropology. Ver: Fagundes, Guilherme Moura. 2020. "Reclaiming Quilombismo in the End of the Conciliations." Hot Spots, Fieldsights, January 28. https://culanth.org/fieldsights/reclaiming-quilombismo-in-the-end-of-the-conciliations?fbclid=IwAR1uUpG6vMBKRuab-q9J1p8lfc2AnGTQDHjpKc4ohxaTnbglHsRThZttZZU.
A versão em inglês contou com auxílio de tradução de Rodrigo Charafeddine Bulamah e comentários preciosos de Lucas Coelho Pereira e dos editores da revista. Além destes, expresso meu profundo agradecimento às conversas e confluências junto a Ana Mumbuca e Antônio Bispo.
PARA SABER MAIS:
ARRUTI, José Maurício. 2006. Mocambo: Antropologia e história do processo de formação quilombola. 1. ed. Bauru: Edusc, 368p.
BOUKARI-YABARA, Amzat. 2014. Africa unite! une histoire du panafricanisme. Paris: La Découverte.
CONAQ; Terra de direitos (org.). 2018. Racismo e violência contra quilombos no Brasil. Curitiba: Terra de Direitos, 196 p.
MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture, 15, 2003, p. 11-40.
NASCIMENTO, Abdias do. 2002. O Quilombismo. Rio de Janeiro: Fundação Palmares/OR Editor Produtor Editor. (2ªed. Brasília).
SANTOS, Antônio Bispo. 2015. Colonização, Quilombos. Modos e Significações. Brasília: Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa.
SILVA, Ana Claudia Matos da. 2019. Uma escrita contra-colonialista do quilombo Mumbuca Jalapão-TO. 2019. Dissertação (Mestrado em Mestrado em Des. Sustentável, Povos e Terras Tradicionais) - Universidade de Brasília.
O AUTOR

Guilherme Moura Fagundes é antropólogo-cineasta e pesquisador de pós-doutorado (PNPD / CAPES) na Universidade de Brasília (UnB), onde está associado ao Laboratório de Antropologia da Ciência e Técnica (LACT). Sua pesquisa atual se concentra nos saberes e práticas de ecologia e manejo do fogo no Cerrado, envolvendo comunidades quilombolas, brigadistas e gestores ambientais.
Anteriores
COMO CITAR ESSE TEXTO
FAGUNDES, Guilherme Moura. Retomando o Quilombismo no fim das conciliações. Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. Publicado em 18 março 2020. Disponível em: https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n12-retomando-o-quilombismo-por-guilherme-fagundes. ISSN 2179-1287.
Cristiano Wellington Noberto Ramalho
| nº 11 | 03 de janeiro de 2020
Ana Cláudia Rodrigues
| nº 10 | 22 de agosto de 2019
Ricardo Alexandre Pereira de Oliveira e Emmanuel Duarte Almada
| nº 9 | 19 de julho de 2019