Educação e
Diferenças e...
n º 14 | 13 de novembro de 2020
Editores Temáticos: Alik Wunder e
Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
Imolação (história) – Sidney Amaral – Enfim encontrei você!
Diego Alexandre de Souza
Sidney Amaral é o nome artístico de Sidney Carlos do Amaral, nascido em 1973 e falecido em 2017. Foi um artista visual e professor paulistano, possuidor de uma vasta produção que lidou com variadas linguagens e com diversos discursos poéticos. Aqui apreciaremos três imagens bidimensionais, muito embora o artista tenha se dedicado com muita intensidade também ao tridimensional, à escultura em suas tipologias tradicionais: o mármore e o bronze. Em seu trabalho pictórico construiu significativas pinturas em aquarela, tinta acrílica e lápis, cujo desenho era artesanalmente erigido. Em sua poética o artista problematizou questões referentes à identidade, alargando as perspectivas das discussões que fazem frente à representação do homem negro brasileiro.
No início da década de 1990, o artista, então por volta dos vinte e poucos anos, estudou no prestigiado Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo.
Tradicional instituição de ensino que, oferecendo cursos de excelência, permitiu a muitos o primeiro e qualificado contato com o aprendizado da arte e com os rigores e métodos acadêmicos de ensino do desenho e da pintura. A disciplina sensivelmente assimilada resultou em apuro técnico que pode ser observado no vigor da figuração naturalista dos desenhos e pinturas de Amaral, habilidade estimulada nas lições do seu então professor Giovanni Bagnolli. Esse período se estende entre os anos 1990 e 1992; o artista tinha 18 anos de idade quando iniciava ali seus estudos. (MUSEU AFRO BRASIL, 2015, p. 11).
Estudou também na Escola Panamericana de Artes, na ECOS Escola de fotografia (instituição privada que não existe mais) e se graduou em Educação Artística pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) no final da referida década. Durante todo o seu desenvolvimento artístico (após ter se habilitado em licenciatura), Sidney foi professor na escola pública brasileira. Teve sua primeira exposição individual em 2001, realizada no Centro Cultural de São Paulo (CCSP).
Sidney Amaral construiu muitos trabalhos com tônica autorreferencial, aos quais a partir de fotografias o artista se entrega a desenhos e pinturas. Nessa entrega, e por que não, nesse devir, a corporeidade do artista transborda de si mesmo para atravessar corpos e existências que se inter-relacionam através de convivências margeadas por afetos tristes, muitas vezes por uma gritante solidão, e por uma individualidade imbricada pela experiência coletiva de ser homem negro no Brasil contemporâneo.
Muitas vezes o artista se retrata nas obras que cria em situações conflitantes. No trabalho Imolação, a arte que o artista construiu – uma pintura – expõe um auto sacrifício do artista quanto a sua existência, claramente enredada pelos conscientes/inconsequentes “pactos narcísicos da branquitude” que consiste num acordo silencioso entre pessoas brancas que se contratam, se premiam, se aplaudem, se protegem.
A
Narciso remonta aos mitos da Grécia antiga (mitos fundamentais para o “ocidente” e para os tempos contemporâneos envoltos pelas esteiras psicanalíticas), era um jovem caçador e se achava tão belo que só conseguiu se apaixonar pela própria imagem. No espelho narcísico, pessoas brancas vivem num mundo onde sua imagem positiva é representada de modo predominante. Na televisão, nos jornais, nas redações, nos shoppings, nas campanhas publicitárias, nos círculos de elite das cidades do interior, nas festas coloniais de um mundo não colonial na Bahia e adjacências, a cor é branca e isso não choca. Além do mais, isso sequer é questionado, ao passo que quando uma pessoa negra altiva entra no recinto “que não lhe pertence” passa a ser notada por todos, muitas vezes com exotização, muitas vezes com incômodo, esse triste complexo citado, muito corrobora para a solidão do homem e da mulher negra brasileiros. No caso de Sidney, o homem está na imagem e, para a apreciação da obra do artista, é importante notar o homem negro em suas dores, angústias e seus embates com o feminino, numa sociedade machista que oprime o homem quanto a sua feminilidade, e que no caso específico do homem negro têm dimensões singulares.
A refletida referência histórica contida no trabalho Imolação faz frente às condições ultrajantes e desumanas às quais eram conformados os escravizados no Brasil. A autoimolação entre escravizados foi uma prática muito pouco divulgada. Observo que isso se deu por motivos de não se reconhecer os sofrimentos dos oprimidos, para não reconhecer a depressão das pessoas negras, para mantê-las como não-humanas, num processo de autocegamento e apagamento do não-branco. Hoje, pesquisas contemporâneas como “Loucos e pecadores: Suicídio na Bahia do Século XIX”, de Jackson André da Silva Ferreira; e “Suicídios de Escravos em Campinas e na Província de São Paulo: 1870-1888” , de Saulo Veiga de Oliveira, revelam que muitos escravizados negros e indígenas decidiam morrer a ter que passar toda a vida como propriedades de outrem. O que remonta até mesmo à literatura de Toni Morrison, que em seus livros trata com extremada sensibilidade de significativa e fundamental parcela da dolorosa história dos Estados Unidos, que assim como na história do Brasil, é caracterizada pelos horrores do período da escravidão que dizimou a população indígena (nativa) e subjugou pessoas negras.
Neste sentido do âmbito psíquico das pessoas negras, ao qual Imolação de Sidney Amaral alude, chegamos ao primeiro texto em língua portuguesa a dedicar-se especialmente à saúde dos escravizados. Chego a esse texto e compartilho um pouco deste escrito para nutrir o campo de possibilidades promovido pela criação artística de Sidney, o texto intitulado “Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a Costa d’África e o Brazil”, publicado em 1793 por de Luiz António de Oliveira Mendes, que o apresentou à Real Academia de Ciências de Lisboa. Segundo o pesquisador Saulo de Oliveira, neste livro, o autor, que nasceu na Bahia, se formou em leis por Coimbra e era possuidor de conhecimentos de medicina, tratou detalhadamente dos transtornos que poderiam acometer a saúde dos negros capturados como escravos, desde a África, na sua travessia atlântica, na chegada aos portos brasileiros e em sua nova vida no país, bem como os meios de saná-los e preveni-los. A obra é muito rica em descrições de doenças dos escravos, como o mal de Luanda, o mal do bicho, febres, bexigas, etc. No capítulo V, prefaciado por Mendes, o autor considera:
Uma, e das principais moléstias crônicas, que sofrem os escravos, a qual pelo decurso do tempo os leva à sepultura, vem a ser o banzo. O banzo é um ressentimento entranhado por qualquer princípio, por exemplo: a saudade dos seus, e da sua pátria; o amor devido a alguém; a ingratidão, e a aleivosia, que outro lhe fizera; a cogitação profunda sobre a perda da liberdade; a meditação continuada da aspereza, com que o tratam; o mesmo mau trato, que suportam; e tudo aquilo, que pode melancolizar. É uma paixão da alma, a que se entregam, que só é extinta com a morte: por isso disse, que os pretos africanos eram extremosos, fiéis, resolutos, constantíssimos, e susceptíveis no último extremo do amor, e do ódio (...). (CAPELA, 1977, p. 7-18)
Palavras do próprio artista em entrevista concedida ajudam a compreender aspectos de sua criação pictórica: “Ao ver no meio da tela um homem com uma arma apontada para a cabeça a primeira coisa que se pensa é que a pessoa representada no quadro quer se matar. Mas não é verdade. Justamente por isso eu coloco o nome de Imolação. Imolação é aquilo que se faz por uma coisa maior. Você não está se matando por ser um deprimido. Você está se matando porque não quer ser escravo, não quer perder sua identidade, sua liberdade”.
Em “História do sanitarismo no Brasil (o trono do rei)”, de 2014, trabalho feito em aquarela sobre papel, o artista revisita memórias silenciadas do nosso país, e emaranha história e arte, estabelecendo diálogos capazes de confundir fronteiras e temporalidades. Gilberto Freyre, em Casa Grande e Sanzala, conta que:
Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos por tigres. Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada ou em um outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés. Foram funções, essas e várias outras, quase tão vis, desempenhadas pelo escravo africano com uma passividade animal. Entretanto, não foi com o negro que se introduziu no Brasil o piolho; nem a "mão de coçar"4; nem o percevejo de cama. E é de presumir que o escravo africano, principalmente o de origem maometana, muitas vezes experimentasse verdadeira repugnância pelos hábitos menos asseados dos senhores brancos.
Sidney evoca os tempos das cidades brasileiras sem água encanada e sem esgoto. Tempos aqueles, em que a branquitude vigente condenou homens a servirem de cloacas. As “águas servidas” eram os dejetos (fezes, urina, saliva e escarros humanos) produzidos nas grandes cidades brasileiras do século XIX que, não havendo esgoto, eram contidas em vasos e barris e descartados em terrenos desocupados, mangues, rios ou no mar. Incumbiram os homens negros escravizados a dar fim às “águas servidas”. Na Tese da historiadora Francielly Dossin, encontramos que:
Com as ruas cada vez mais cheias, era comum a cena desagradável das barricas que, ao transbordar, espalhavam fezes nos corpos dos escravos e negros de ganho. Ao ver um tigre passar, as pessoas levavam lenços aos narizes, os caminhantes se esquivavam, viravam o rosto ou se encolhiam. O medo do esbarrão era algo sempre presente para os passantes, afinal, ninguém queria ser “premiado” com um banho de excrementos. Fala-se que os tigreiros alertavam de longe os moradores com os gritos de: Vira! Vira! Abre o olho! Abre o olho! (p. 112).
É importante ressaltar que a figura do homem tigre foi retratada por Jean-Baptiste Debret e amplamente satirizada por jornais da época como o carioca “A Semana Ilustrada”. Ao reativar essa imagem de dor e realidade, humilhação e reprodutibilidade o artista com uma privada sobre a cabeça discursa silêncios melodiosos de horror urdidos por tramas do cotidiano que não cessam de reatualizações.
Em Enfim encontrei você! (As afinidades eletivas) de 2014, trabalho feito com aquarela e lápis sobre papel ), o artista se deslinda em doçura e humildade,
"Senhores, sou um poeta, um multipétalo, um uivo, um defeito!
E ando com a camisa de vento ao contrário do esqueleto!
Sou um instantâneo das coisas apanhadas em delito de paixão.
Sou uma imprudência à mesa posta de um verso onde eu possa escrever.
Oh, subalimentados dos sonhos, a poesia é para comer!"
Ajoelhado, com copiosas embalagens de paçoca (doce de amendoim compactado), numa cena solitária, com fundo branco, sem linhas que estabeleçam uma base (um chão), com os olhos fechados, o artista parece querer compartilhar AMOR (marca do produto paçoca), num devir-criança que o faz quase naïf , num deslocamento de momentos e idades que na imagem estática deslizam pelo menino, moleque, homem-feito, maduro; homenino a brincar com doces, não é o garoto no corpo amadurecido, “não é a criança que torna-se adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal” (DELEUZE & GUATTARI, 2007, p. 69); um homem grande atravessado pelo doce e pelo que comprime, uma imagem que remonta aos desdobramentos dos estereótipos que recaem sobre o homem negro e a imposição de uma masculinidade. Há sofrimento e violência quando o corpo do homem negro é objetificado e reduzido aos âmbitos da compleição física, por exemplo numa generalização falocêntrica, ou numa generalização da força, da capacidade física. Nesta imagem de Sidney Amaral, o AMOR, está circunscrito em pequenos pacotes, em doses pequeninas, um amor em porções, uma ração de afetos, uma suave evocação a capitalismo e esquizofrenia.
O homem com doces enovela-se em ambiguidades, brinca com a colorida repetição dos pacotinhos de AMOR ou prostra-se conjunto ao doce economicamente porcionado, ou...
E + uma infinidade de possibilidades proporcionadas pela singela imagem de um homem ajoelhado com doces bicolores ao seu redor e por sobre as suas mãos.
Para saber mais
Morrison, Toni. Amada. São Paulo, Cia. Das Letras, 2007.
NABOR JR. "Meu passado (não) me condena: memória, raça e identidade nas pinturas de Sidney
Amaral". in O Menelik Segundo Ato. São Paulo: ano 5, ed. 017, out/dez., 2015. Págs. 16/21.
BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia da USP, São Paulo-SP, 2002.
CAPELA, J. Prefácio. In: Mendes, Luiz António de Oliveira. Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a Costa d’África e o Brazil, apresentada à Real Academia de Ciências de Lisboa, 1793. Porto, Publicações Escorpião, 1977.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia Vol. 4. São Paulo-SP: Editora 34, 2007.
DOSSIN, F. R. Entre evidências visuais e novas histórias: Arte africana contemporânea como descolonização estética 1990-2010. Tese de doutorado (História). Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis-SC, UFSC, 2016.
FERREIRA, J. A. S. Loucos e pecadores: suicídio na Bahia do século XIX. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2004.
FREYRE, G. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo – SP: Editora Global, 2006.
MUSEU AFRO BRASIL. O Banzo, o Amor e a Cozinha de Casa / Sidney Amaral: curadoria de Claudinei Roberto. São Paulo: IPSIS, 2015.
OLIVEIRA, S. V. O Suicídio de escravos em Campinas e na província de São Paulo (1870-88). Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas-SP, 2007.
AUTOR
Diego Alexandre de Souza é graduado em Artes Visuais (bacharel e licenciatura) pelo Instituto de Artes - UNICAMP, é mestre em Educação pela Faculdade de Educação -UNICAMP e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo- USP. É artista visual e se dedica à literatura
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