Sociedade
Arte e
Editores Temáticos: Moacir dos Anjos e Paulo Marcondes
nº 14 | 09 de setembro de 2024
Arte, temporalidades e pulsações da vida
Paulo Marcondes Ferreira Soares
A tríade arte, tempo e vida foi um mote surgido em uma longa conversa com um amigo psicanalista. Não que tivéssemos combinado nada para um bate-papo, apenas algo que fruiu de uma conversa amena, às vezes séria, às vezes às gargalhadas. Foi da anamnese dessa conversa que percebi a frequência com a qual questões da arte e do tempo, da arte no tempo e da vida e seus pulsares, nesses tempos sombrios, foram pontos que se fizeram presentes.
Fiquei a matutar a respeito e passei a tomar notas. Passado um tempo, retomei a leitura do que tinha escrito e vi que tudo ali não passava de um mar de especulações sobre os pulsares da vida. Daí, segui o caminho que julguei possível, que foi o da elaboração de notas avulsas, desde que razoavelmente concatenadas, de modo que eu mantivesse o tom das questões na circunscrição do meu nicho metafísico.
Uma questão que de imediato me chegou foi uma reflexão a respeito da ideia de uma arte desinteressada. Uma antiga e recorrente proposição relacionada à ideia de autonomia da arte, frente aos riscos de sua submissão à cultura do utilitarismo – enredada que é num certo pragmatismo ávido por perguntas do tipo “arte serve para quê?”
Pergunta que não camufla o desejo de ver a arte capturada e em completa rendição aos ditames do mercado, via indústria cultural, embalada na forma de mercadoria, ainda que de uma mercadoria especial, como diriam Adorno-Horkheimer, criadores do conceito, no livro Dialética do Esclarecimento, onde analisam o status da razão instrumental sob os ares da modernidade, do Iluminismo ao mercado cultural, dentre outros assombros.
Embora essa não seja uma discussão nova, posto que diretamente ligada ao mote da sociedade de consumo, mais do que nunca ela tem se mostrado recorrente e atual, a reclamar sua audiência em questões relacionadas ao meio ambiente, em especial à crise climática; às novas relações de trabalho e sua desregulamentação; à sociedade da obsolescência e diversos outros pontos de interrogação sobre a sustentabilidade da vida no planeta.
Com relação à arte, mais especificamente, uma referência primeira é a que nos remete ao movimento da arte pela arte, bem como, posteriormente, às experiências mais radicais das vanguardas históricas, e em manifestações contemporâneas de performatividade artística, por exemplo, em instalações e outros meios – ainda que em nenhum desses casos, a arte se encontre imune à sua cooptação pelo mercado.
Mas, por mais frágil que possa parecer, o grande desafio e estranhamento programáticos naqueles movimentos foi a bandeira da arte como recusa a se tornar útil em última instância. Em cada uma dessas experiências, a arte tendeu a uma poética da inutilidade e, sob certo aspecto, em expressões mais radicais, a uma apropriação e inutilização de objetos do mundo prosaico.
Não me cabe, contudo, historiar esse processo, quero apenas referenciar, aqui e ali, uma e outra questão relevante, seja com relação a dinâmicas mais gerais da modernidade e do contemporâneo, seja como fenômeno, tal como foi tratado por alguns intérpretes.
Figura 1- Roda de Bicicleta, Marcel Duchamp, 1913
Figura 2 - "Cadeau" ou Ferro de engomar de Man Ray, 1921/1963 - dez exemplares assinados e numerados
Outro ponto a ressaltar diz respeito a como as diversas modalidades ou estéticas da arte estiveram e estão relacionadas ao problema da mímesis. Na modernidade, essa relação põe em pauta a própria crise de representação: seja por procedimentos que a um só tempo assimilaram e modificaram modelos clássicos de representação, seja por abstrações anti-representacionistas, que podem ser identificadas como mímesis de produção (que eu comumente nomeio de anti-mímesis).
O embate modernista a respeito da mímesis, em muito se pautou pela oposição entre realismo (ilusionismo) e materialismo (anti-ilusionismo) da obra – o realismo na obra de arte fora muitas vezes acusado de ilusionismo e de prestidigitação do objeto representado na obra, como se fosse um reflexo da realidade.
Por outro lado, a vontade do materialismo era a de pautar sua fundamentação numa arte cuja autonomia se expressava na própria fisicalidade de que se constituía a sua linguagem (as matérias de que se compunha a obra, sem alusão direta a um referente).
Evidentemente, essas não são as únicas modalidades de posicionamento da arte em relação ao procedimento mimético, mas, meu propósito está longe de querer prosseguir com esse ponto. A rigor, os termos centrais da mímesis, que nos possibilita escapar ao dualismo representação versus anti-representação, a meu ver, situam a questão nos moldes como se seguem: a arte nem é puro reflexo do mundo, nem expressão absoluta de autonomia.
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Reservo aqui um espaço para lembrar que a arte não se constroi por si mesma, não é uma essência a priori. Sem dúvida, essa é uma afirmação trivial, que parte do pressuposto da arte como uma construção social. Apesar do tom fortemente antiessencialista dessa afirmação, essa máxima construtivista não interpreta absolutamente nada do produto final dessa construção, daquilo que convencionalmente chamamos de obra ou manifestação artística, particularmente, sobre aquilo que ela supostamente diz. Um elemento forte desse argumento antiessencialista é o da negação da arte como valor universal e, consequentemente, atemporal.
Há, por exemplo, uma vasta discussão sobre como não se pode discutir arte sem que se tenha sobre ela um olhar direcionado ao espaço social em que ela acontece, e se produz. Sem isso, o que quer que identifiquemos como arte não se sustenta como tal, ou seja, seria nada, se não comungasse de certas convenções conflituosamente integradas à instituição-arte, ainda que de modo assimétrico entre valores que formam o cânone artístico de uma época e os que se encontram numa linha marginal àqueles valores.
Arte é linguagem, logo, constituída por convenções sociais, mesmo quando formas radicais do experimentalismo logram causar estranhamentos e choques em seu público fruidor.
É um truísmo dizer, mas, a tessitura dessas convenções se dá num espaço mediado por interações sociais, ou seja, num estado de coisas que podemos chamar de “mundos da arte”, tal como o conceitua o sociólogo Howard Becker, em seu livro homônimo Mundos da Arte.
Falar de convenções não significa unicamente apontar para um mundo dado e instituído. Há, por certo, margens instituídas nesse mundo, mas há igualmente processos instituintes, nos termos que o filósofo Cornelius Castoriadis argumenta em A Instituição Imaginária da Sociedade.
No fundo, a condição instituinte na sociedade se refere a algo que diz respeito à dinâmica processual da experiência coletiva/mundo, de sua capacidade de reinventar linguagens, de quebrar convenções, ainda que no esforço de se instituir outras, num processo imaginário constitutivo da vida social.
Afinal, não seria forçoso identificar no mundo da arte a existência do que poderíamos chamar de convenção da anti-convenção, assim como já se falou de moda da antimoda. Ainda assim, são de fato os fatores instituintes a própria dinâmica da transformação no mundo, algo que contempla o espaço da arte.
Figura 3: A persistência da memória (1931) — Salvador Dalí (Foto reprodução)
Figura 4: Colagem da artista dadaísta Hannah Höch. (Reprodução/Wikimedia Commons)
É o mesmo Becker que afirma serem os mundos da arte resultantes de ações coletivas que se compõem de artistas e de elos cooperativos: os sujeitos não artistas que dão caráter formativo a tais mundos.
Nesse sentido, aos mundos da arte corresponderiam ao menos dois tipos específicos de artistas que ele julga mais relevantes: os integrados e os inconformistas. No geral, se os primeiros parecem seguir o modelo canônico das convenções artísticas, os inconformistas seriam aqueles que buscam uma ruptura frente ao instituído.
Gosto também de uma passagem em que o sociólogo Pierre Bourdieu, em uma de suas lições sobre Manet, fala da existência de uma relação dupla entre o campo artístico e os seus agentes e entre as disposições/habitus desse agente para com o campo, constituindo-se assim o que ele chama de espaço simbólico dos possíveis.
Neste ponto, seu alerta é o de que o artista, embora imerso num espaço existente da arte, que ele chama de campo, onde pode adquirir um habitus culto, encontra-se igualmente num mundo estético-artístico fora do campo, com agentes com modos outros do fazer artístico, que podem lhe servir de “faróis”, termo que ele toma de empréstimo a Baudelaire.
Essas duas referências a maneiras de abordar sociologicamente a arte, embora escolhidas arbitrariamente, tiveram unicamente o propósito de exemplificar modos de condicionamentos e constrangimentos sociais envolvidos no fazer artístico.
Por outro lado, ainda que em suas considerações sobre o estético Theodor Adorno procure mostrar que a arte não se encontra imune às influências exteriores, ao processo de reificação que se insurge no próprio ato da criação artística, ao controle administrativo pela indústria cultural e sua consequente fetichização como mercadoria, e por fim, ao dirigismo da ideologia dominante, ele procura pensar a arte a partir de uma abordagem internalista da obra, não fazendo distinção, portanto, entre forma e conteúdo.
Trata-se de analisar a obra de arte na estrutura de sua linguagem, em sua escritura, em seu material, na maneira como foi composta: observando-se, aí, as transformações da realidade empírica, nas relações arte-mundo.
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Outra questão que me veio à tona foi a necessidade de situar alguma reflexão concernente aos esforços de determinadas tendências estéticas quanto à afirmação da autonomia da arte – como foi o caso do movimento da arte pela arte e de certas manifestações no âmbito das vanguardas históricas, como já referido.
Tratava-se de pensar como essa autonomia pode se dar, ainda que relativa, frente a uma sociedade de mercado capitalista, cujo fundamento tem como imperativo central uma lógica cultural utilitarista.
Nesse sentido, útil não é o valor de uso que alguma coisa pode ter, mas um valor instrumentalizado e administrado para a troca, na forma de mercadoria, necessária à geração do capital – isso se encontra largamente definido na teoria crítica, desde Marx.
Não é de hoje que podemos extrair da arte um conjunto de manifestações que se traduziram e se traduzem como uma negação e um afrontamento a esse primado cultural capitulado pelo utilitarismo tão essencial à sociedade de consumo.
Desde a emergência do capitalismo moderno até os dias atuais da modernidade tardia, vivemos um mundo de alta aceleração social, extrema obsolescência e do ultra-utilitarismo.
Tudo deve ser essencialmente útil, mas, também, rapidamente descartável. As tecnologias inovadoras nos prometem, minuto a minuto, um avanço, uma felicidade renovada, um sempre atualizado modo de estar no mundo.
Cria-se, assim, uma fantasmagoria para os objetos: a de que, consumindo-os, vamos nos manter eternamente atuais. E mais, que o sentido de atualidade passa a ser o mesmo de se manter jovem. Daí as novas tecnologias terem uma forte aliada na elaboração dessa ideia do ser atual: a moda. A moda, por sua vez, tem o seu principal apoio, para se manter em evidência, na publicidade.
Minha argumentação não é a de que as inovações tecnológicas sejam um engodo, uma balela, uma inverdade ou que, no fundo, não sirvam para nada. Longe disso, as inovações tecnológicas se mostram como algo sério, que trazem muitas das respostas para os nossos problemas, e nos têm proporcionado muito conforto e satisfação. Muitos benefícios.
A questão a ser levantada é a de que as inovações não são benéficas por si só. Dependem do uso que delas se faz. Tecnologias podem ser usadas como modo de inovar ações de destruição; podem vincular estados de felicidade a modos de possuir: ter é poder, é o passaporte da felicidade – ao possuir, você é domado a sentir a sensação de que tudo pode.
A reflexão sobre como as tecnologias têm estado a serviço de interesses não claramente revelados, ou de como elas passam a compor a agenda oculta de interesses puramente mercadológicos de consumo, se nos impõe como a opção a não aderirmos pura e simplesmente a tudo que se nos apresentam sob o signo do novo e do redentor.
O mercado precisa se expandir, multiplicando suas ofertas no que diz respeito à ampla diversidade de produtos e serviços, com capacidade para atingir um contingente cada vez maior de consumidores – e isso inclui a arte.
Independente de sexo, idade, cor ou etnia, somos transformados no típico, desde que tenhamos poder de compra: seremos sempre jovens, dos oito aos oitenta, como já se disse. E isso inclui o disciplinamento do nosso tempo livre, numa forma de lazer construído, em que o tempo do não-trabalho se converte em tempo de consumir.
Descartam-se produtos, reciclam-se ideias, com toques de restauração. O démodé vira a nova onda, o supérfluo a nova essência. Manifestações culturais tidas como expressão mediana e de mau gosto, transmudam-se em fenômenos Cult.
Mas, logo a novidade fica obsoleta e a obsolescência ganha ares de novidade, como que para saciar nossa ávida compulsão pelo novo, que beira a um estado de angústia.
Para isso, a publicidade é chamada a fazer a sua parte. Como dizem os estudiosos: na sua origem, a publicidade de um produto era elaborada pela mescla de informação e fantasia. Ou seja, embora criasse uma fantasmagoria sobre o produto, ela não era desprovida de informação relevante. A publicidade hoje parece ter tomado o caminho da pura fantasmagoria em torno da marca ou grife, sem informações específicas do produto.
Trata-se de vincular o produto exclusivamente a um estilo de vida. Não importa as propriedades que um produto dispõe, mas a sua assinatura. A rubrica é o que o autoriza, é o que afirma o produto como expressão da última geração da moda. E em tudo se reitera uma forte ideologia utilitarista. Mas, diante disso, quem nos garante a gratuidade e a espontaneidade das coisas?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed: 1985.
ADORNO, Theodor. Notas sobre Literatura I. São Paulo, Duas Cidades; Ed. 34: 2003.
BECKER, Howard S. Mundos da Arte. Lisboa, Livros Horizonte: 2010.
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 2008.
BOURDIEU, Pierre. Manet, uma revolução simbólica. São Paulo, EDUSP, 2023, p. 396-397.
O AUTOR
Paulo Marcondes Ferreira Soares é sociólogo e professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desenvolve pesquisa em Sociologia da Arte (artes plásticas, cinema, literatura e música), com artigos publicados na área, e leciona as disciplinas Problemas Centrais de Sociologia da Arte (nas graduações de Ciências Sociais e de Museologia), Arte e Política no Brasil e Sociologia da Arte (na pós-graduação em Sociologia). É poeta e compositor, com livros de poesias publicados e um CD de poesia em áudio, disponível nas plataformas. Como letrista, tem uma produção significativa de músicas gravadas por seus parceiros.
COMO CITAR ESSE TEXTO
SOARES, Paulo Marcondes F. Arte, temporalidades e pulsações da vida (Artigo). In: Revista Coletiva - Arte e Sociedade. nº 14. Publicado em 09 de setembro de 2024. Disponível em: <coletiva.org/arte-temporalidade-pulsações-da-vida-por-paulo-marcondes>. ISSN 2179-1287.
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