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Imagem criada a partir de obras de arte publicadas no instagram da artista Panmela Castro.

Sociedade

Arte e

Editores Temáticos: Moacir dos Anjos e Paulo Marcondes 

nº 11| 04 de outubro de 2023

Notas avulsas sobre arte e violência 

Paulo Marcondes 

Não faz muito tempo, li uma matéria intitulada “Vítima de violência doméstica usa grafite para informar meninas sobre a Lei Maria da Penha”, assinada por Renata Mendonça, da BBC Brasil – São Paulo. A matéria fala da trajetória da artista e ativista Panmela Castro, desde o episódio em que foi vítima de violência doméstica até sua passagem pela pichação, o grafite e o trabalho com a pintura.

A matéria está recheada de falas de Castro. Em uma delas, quando aborda o preconceito sofrido por ser mulher num grupo predominantemente masculino, como foi o caso do período de pichação, mas também, quando migrou para o grafite, ela revela a estratégia que assumiu de masculinizar a sua arte, a fim de ser aceita no grupo, até o momento da virada, que se deu na fase em que praticava o grafite.

A mudança de estratégia só aconteceu no momento em que, nos seus termos, a artista passou a ter um maior entendimento das relações de poder no grafite. Foi o entendimento dessas relações que a levou a politizar seu trabalho, ao assumir o propósito de introduzir o feminino num espaço de arte que é, em grande medida, masculino. Só então ela passou a perceber que foi pela transgressão, e não pela obediência, que seu trabalho como artista passou a ser reconhecido.  

Isso me levou a refletir sobre um ponto intrigante na relação entre violência e poder, desde as formas legitimadas de violência, atribuída ao Estado e suas instituições, até aquelas assumidas por grupos hegemonizados, seja por representações sociais de gênero, cor, orientação sexual heteronormativa, poder econômico e político, força armada e miliciana, entre outros.

A matéria nos permite identificar nuanças da violência estrutural, mas nem sempre assim percebida, como algo que opera em nível sistêmico. A violência doméstica apresentada na matéria é escandalosamente aberta, envolvendo cárcere privado e agressões físicas praticadas pelo então marido da artista. Aliás, uma perversa realidade que tem vergonhosamente vitimado um número astronômico de mulheres, inclusive, com uma alta taxa de feminicídio.

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Noutra passagem, embora o espaço masculinizante do grafite deva ser identificado como uma violência, mesmo não tendo a expressividade que se pode extrair de uma agressão aberta, ainda assim, trata-se de uma violência igualmente estrutural e sistêmica. Daí que a bandeira do feminino, com todos os reveses da condição da mulher em nossa sociedade, mostrou-se como o ponto de ruptura e transgressão, algo que foi reconhecido pela própria artista e que lhe permitiu ter sua própria assinatura e afirmação no grafite.

Se a violência aberta tem uma configuração dramática muito forte e é da ordem do escandaloso, a que é perpetrada por regimes de representação de identidade social, finda, muitas vezes, por ser dissimulada e se legitimar em valores, historicamente construídos, cuja finalidade é a da dominação e do controle numa sociedade desigual.

 

Felizmente, cresce vertiginosamente um movimento de pensamento e de ação que não apenas denuncia essas formas de violência estrutural como assume uma prática ativa de ruptura no próprio espaço das estruturas de dominação.

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E a arte é um espaço privilegiado para isso. Sua potência política manifesta-se mais fortemente nos seus modos de dizer, não supostamente pelo jargão usado. Por exemplo, é justamente quando Castro deixa de masculinizar sua arte e passa a introduzir o feminino no interior do espaço do grafite que ela produz o choque e, assim, passa a ter reconhecimento como artista.

Ora, se minha argumentação até aqui é válida, a indissociabilidade entre a política e a violência (por mais que se justifique a legitimidade de certa violência outorgada às instituições, como modo de controle da violência aberta) é algo que vigora de modo efetivo no campo da instituição-arte – só para ficarmos mais restritos ao debate que nos interessa aqui.

Quando penso a relação entre arte e violência, logo me vem à mente uma situação um tanto ambivalente, que carece de algum tipo de especificação da parte de quem está empenhado em estabelecer tal relação, posto que as formas de representação na arte traduzem uma tensão permanente entre o prosaico e a poiesis, num espaço de disputa entre o instituído e o instituinte, para me valer do conceito usado pelo filósofo Cornelius Castoriadis.

Embora isso soe bastante abstrato, penso que quando falamos de violência e arte, normalmente, somos levados, de forma mais direta, às representações da violência nas manifestações artísticas em termos de denúncia e/ou protesto de uma situação injusta, em algum momento ou lugar; sem percebermos, muitas vezes, esse ou aquele experimento artístico como o momento de uma mudança de padrão mais substantiva.

Diversas são as formas de manifestação da violência na arte, inclusive, em sua relação com circuitos midiáticos. Não é o caso de sair a pontuar esses tipos, visto que não há espaço neste artigo para isso. Seja como for, é possível falar do uso midiático como modo de exploração sensacionalista de temáticas tabus, bizarras e/ou atrativas, cuja finalidade, centrada no entretenimento, tem objetivos claramente mercadológicos.

Por outro lado, a violência pode se expressar na arte por maneiras bem mais insidiosas, posto que, muitas vezes, ela é dissimulada, legitimada, vista como natural ou fundada na ideia de verossimilhanças dos costumes. Em suma, uma violência na arte pode ser de natureza cognitiva, colonialista, justificadora de uma linguagem da dominação – seja dominação étnico-cultural ou relacionada à cor da pele ou à condição de gênero e sexualidade ou, de resto, por outras formas de conhecimento humano não diretamente relacionado à arte.

Com relação ao conhecimento e aos modelos de racionalidade científica, pode-se afirmar que até eles se encontram enredados nalgum tipo de violência, uma violência epistêmica, para usar uma expressão cara ao pensamento decolonial. Mas lembro igualmente da passagem em que Walter Benjamin atesta que todo documento de cultura é um documento de barbárie.

Noutro ângulo, do ponto de vista de uma associação específica de arte e violência a partir de uma suposta condição do autor, seja por trauma ou opção ético-estética, creio que o ponto de fragilidade se encontra em estabelecermos uma relação direta entre a condição pessoal/subjetiva do autor e a expressão da violência que sua arte está a traduzir, mesmo se levarmos em consideração os diversos modos de um fazer artístico de cunho confessional, tão presente num conjunto de experiências na arte contemporânea.

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Não estou, com isso, a negar que o fazer artístico de empenho confessional não esteja mediado pela experiência de mundo do/a artista, afirmo unicamente que sua obra não é, necessariamente, o exercício de um espelhamento do mundo, de seu mundo. Antes, está mais para uma mimesis produtiva, de invenção poética.

Evidentemente, num mundo sombrio e injusto, como o que vivemos, com padrões de segregação em diversas esferas da vida social, a arte manifestará versões do mundo, em muito, mediadas pelo modo como o/a artista o lê, de modo ético-estético e moralmente, sobretudo, numa sociedade consumista, de mercado capitalista avassalador, como a que vivemos, o/a artista vivencia desafios diversos, numa situação bastante complexa.

Uma delas talvez seja a de como se mover no espaço da instituição-arte, com proposições de uma destrutividade alegre (Benjamin), capaz de impactar, em alguma medida, os regimes constitutivos e hegemônicos dessa mesma instituição-arte.

O AUTOR

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Paulo Marcondes Ferreira Soares é sociólogo e professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desenvolve pesquisa em Sociologia da Arte (artes plásticas, cinema, literatura e música), com artigos publicados na área, e leciona as disciplinas Problemas Centrais de Sociologia da Arte (nas graduações de Ciências Sociais e de Museologia), Arte e Política no Brasil e Sociologia da Arte (na pós-graduação em Sociologia). É poeta e compositor, com livros de poesias publicados e um CD de poesia em áudio, disponível nas plataformas. Como letrista, tem uma produção significativa de músicas gravadas por seus parceiros.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SOARES, Paulo Marcondes F. Notas avulsas sobre arte e violência. (Artigo). In: Coletiva - Arte e Sociedade. nº 11. Publicado em 04 out. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/arte-e-sociedade-notas-avulsas-sobre-arte-e-violencia>. ISSN 2179-1287.

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