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Imagem: Rose Gondim, 2023.

Sociedade

Arte e

Editores Temáticos: Moacir dos Anjos e Paulo Marcondes 

nº 12 | 23 de fevereiro de 2024

"Tudo está dentro, nada está fora"

Paulo Marcondes 

Em uma recente viagem pela Chapada Diamantina (BA), em outubro de 2023, num giro entre importantes cidades e pontos de visitação da região, deparei-me com algo que me chamou particular atenção e a de quem estava comigo no carro, quando estávamos de passagem pelo município de Palmeiras, na Chapada. Lá, nos defrontamos com um conjunto variado de objetos industrializados, já sem utilidades, agora transformados em artefatos de representação artística.

De lado a lado do trecho de uma rua, em frente a uma casa que fica de esquina com um terreno grande, há uma multiplicidade de objetos expostos, em forma de arte feita do lixo. No espaço, também fica uma picape estacionada e igualmente alegorizada com alguns desses mesmos objetos, com igual propósito de exposição de uma arte do lixo. 

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imagem 1: Rose Gondim, 2023.

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Imagem 2: Rose Gondim, 2023.

O que mais despertou a atenção, contudo, foi o fato de que essas obras são frutos de intervenções feitas pelo Grupo Ambientalista de Palmeiras - GAP, grupo envolvido em questões ambientais da região, com parcos recursos e ações predominantemente voluntárias.

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Imagem 3: Rose Gondim, 2023.

Imagem 4: Rose Gondim, 2023.

Frente a um cenário tão inusitado como aquele, resolvemos parar e especular um pouco mais o espaço. Para nossa sorte, um dos membros do GAP e morador da casa, Joás, que é o líder do grupo, apareceu no portão. Estava de saída para uma reunião, em algum órgão da prefeitura, mas resolveu adiá-la e nos convidou para visitar o espaço, que ele chama de "museu". Trata-se de um terreno abarrotado de obras de arte feitas do lixo, onde nos deslocamos como que por um verdadeiro labirinto.

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Imagem 5: Rose Gondim, 2023.

Pelo que nos foi revelado, algumas atividades são desenvolvidas pelo coletivo GAP, no espaço-residência de Joás, como a coleta, triagem, prensagem e entrega do lixo para reciclagem. Vi, posteriormente, em alguns vídeos divulgados pelo próprio GAP, no YouTube, que essa atividade envolve um número maior de pessoas voluntárias. Ainda assim, é uma atividade que fornece alguma renda aos participantes, muito embora seja de baixo valor.

A outra atividade é a que me avivou um interesse mais específico, justamente por se configurar como um espaço-atelier de produção e transformação do lixo em arte - ou museu, como prefere Joás. Na longa conversa que tivemos, enquanto visitávamos toda a área de ocupação do GAP, ele fez questão de dizer que o grupo tem consciência de que é preciso organizar melhor o espaço do museu que, de acordo com ele, encontra-se desorganizado.

Interpelei a propósito de ele reconhecer ou não a possibilidade daquela desordem ter rebatimento no caos da própria dinâmica da sociedade de mercado, que produz objetos de consumo para descarte rápido, na forma de lixo industrial. Como resposta, ele tornou mais claro o que estava a querer dizer: o fato de que aquele projeto de uma arte do lixo ter sido pensado, fundamentalmente, como um processo cujo princípio básico a seguir era o da performance. Nesse sentido, no modo como ele percebe, ainda seria necessário organizar o atelier-museu com a distribuição de pequenos espaços para cada artista participante, onde o visitante poderia obter maior informação sobre as obras, sua origem e a do artista.

Imagem 6: Rose Gondim, 2023.

Em suas falas em nome do GAP, Joás enfatiza a militância e a resiliência como a força motora do seu ativismo e do grupo. Embora tenha se queixado das adversidades que o grupo enfrenta, inclusive críticas de setores da comunidade e de autoridades, que não veem com bons olhos a presença exposta do lixo, seja ele o material para processamento ou o material de performatividade artística. Diante dessas dificuldades, Joás reage contra a prática de aterro do lixo, pois os aterros são ecologicamente muito impactantes. Ao falar que enterrar o lixo não é retirá-lo do meio ambiente, ele diz que "tudo está dentro, nada está fora".

Imagem 8: Rose Gondim, 2023.

Imagem 7: Rose Gondim, 2023.

A falta de apoio o leva a afirmar que a ação do grupo é feita unicamente na vontade. Para ele, o ativismo se dá como prática cotidiana, algo de um ideal, de uma missão. Algo que toque as pessoas e que não fique como ação isolada, embora isso imponha sacrifícios, pois quem quer que se engaje nessa direção, tem que abrir mão de muita coisa, estilo de vida etc, para se dedicar voluntariamente a isso. Joás afirma ter prazer em fazer o que faz, visto que se trata de algo muito importante, não apenas para ele, mas, igualmente, para seus contemporâneos e para os que virão.

O processo de apropriação do lixo como expressão artística não é uma manifestação recente no mundo da arte, sobretudo da arte contemporânea. Diversos são os exemplos nesse sentido, quase que invariavelmente como forma de protesto e denúncia do impacto ambiental e social causado pela sociedade de consumo de produtos industriais. 

A lógica de mercado do capitalismo é avassaladora quanto à sustentação de uma base de alto consumo como garantia da alta produção. Nesse aspecto, o despertar de uma consciência dos desajustes sociais e ambientais das sociedades de consumo tem levado a um número significativo de práticas de ativismo artístico orientados para a crítica, e o alerta com relação aos riscos trazidos pela continuidade do atual modelo hegemônico de nosso estilo de vida.

Imagem 8: Rose Gondim, 2023.

Não é de hoje que vivemos uma época de grande impacto ambiental, com desordenado descarte do lixo produzido no âmbito da sociedade de consumo, que tem seu fundamento assentado na acumulação de capital pelo mercado. Na prática, isso tem resultado na exploração acentuada de energias tanto renováveis quanto não renováveis, bem como no consumo de fontes energéticas altamente comprometedoras da qualidade de vida no planeta, como é o caso do uso de energias fósseis, que tem colaborado de modo efetivo para a crise climática no planeta e seu propalado aquecimento global.

Some-se a isso, entre outras coisas, a exploração voraz de minérios e a consequente destruição das florestas, além da contaminação da água e do ar. Muito do nosso estilo de vida, regido pelo sistema da moda, que vai da alimentação à vestimenta e aos confortos tecnológicos, tem contribuído severamente para a sucessão das catástrofes que estamos a vivenciar.

No mundo das artes, a reapropriação do lixo expressa um gesto de inconformismo e contraponto veemente a esse modelo, à medida em que define nosso tempo como uma era de "metamorfose do mundo", só para tomarmos de empréstimo um conceito caro ao sociólogo Ulrich Beck, em seu livro póstumo "A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade" (Editora Zahar, 2018).

Mas, não podemos nos iludir, pois o que dá para rir, dá para chorar. Quero dizer que, em princípio, manifestações que se reapropriam do lixo para transformá-lo em arte podem sim ter um fundamento pedagógico que contribua para um novo despertar, em relação aos efeitos colaterais dos males causados pela exploração do meio ambiente. Para Beck, esse despertar já implicaria num viés emancipatório, através da percepção do risco, frente ao catastrofismo manifesto.

Por outro lado, tais manifestações da arte ambiental não se encontram necessariamente autônomas em relação à lógica de mercado, podendo mesmo cair nas armadilhas da sua glamourização e fetichização como mercadoria. Muitos desses experimentos se valem da reapropriação, modo considerado alternativo tanto de ressignificação quanto de reutilização de materiais, na forma da mercadoria.

No caso de Joás e seu grupo, ao contrário, há ressignificação, mas não o princípio reutilitarista dos materiais performatizados na forma artística. Na sua galeria-oficina de arte do lixo, encontramos uma mistura de lixo-obra e lixo-lixo, este como aquilo que está por vir a ser obra de arte. A figuração do lixo em obra envolve, aqui, um ampliado leque de produtos industrializados, tais como tampa de vaso sanitário, geladeira e vários outros eletro-domésticos. Mas, também, papéis, plásticos, garrafas de vidro e um múltiplo e variado conjunto de objetos e utensílios que caíram em desuso ou já são produzidos como objetos descartáveis.

Imagem 9: Rose Gondim, 2023.

Imagem 10: Rose Gondim, 2023.

Imagem 11: Rose Gondim, 2023.

Um ponto alto da nossa visita ao museu de Joás foi, para mim, quando me deparei com o seu trabalho "Anjo". Trata-se de um Anjo feito de garrafas de vidro, composto na forma de um muro-escultura. De imediato, disse-lhe que a circunstância de estar ali, em meio ao lixo-arte e ao lixo-lixo, diante do Anjo, trouxe-me como referência o texto do filósofo alemão, Walter Benjamin, na passagem em que ele analisa o desenho de Paul Klee, Angelus Novus, nas suas "Teses sobre a História", texto que se pode facilmente encontrar em várias das coletâneas de ensaios do referido filósofo. Joás disse não conhecer nem o filósofo nem o artista. Descrevi rapidamente o desenho e a interpretação de Benjamin.

Imagem 12: Rose Gondim, 2023.

Imagem 13: Imagem: Angelus novus. Paul Klee, 1920. Reprodução.

Os dois Anjos são frutos de realidades distintas e sequer se aproximam como obra. No fundo, o que me levou à associação de Joás com Klee foi particularmente a interpretação que Benjamin faz, estabelecendo uma relação de causação entre progresso e ruína. Lá, no museu de Joás, essa mesma relação parece se estabelecer, se levarmos em conta que o impacto ambiental produzido pelo lixo do progresso industrial é uma catástrofe.

Mas, se Benjamin viu no Anjo de Klee uma tempestade que o impulsionava para frente e gerava um acúmulo de destroços sob seus pés, como fruto de um movimento do progresso; o Anjo de Joás é, ele próprio, construído e erigido com os destroços deixados aos pés do Anjo da história, como o chamou o filósofo. 

Imagem 13: Rose Gondim, 2023.

Imagem 14: Rose Gondim, 2023.

Se o Anjo de Klee é impedido de alertar aos vivos e aos mortos o advento da catástrofe, o Anjo de Joás é o metamorfoseamento e a quase encarnação da catástrofe no estágio atual das condições ambientais do nosso planeta. Oxalá, isso se traduza no catastrofismo emancipatório imaginado por Beck. Por ora, também o Anjo de Joás está a acumular destroços à sua volta.

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O AUTOR

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Paulo Marcondes Ferreira Soares é sociólogo e professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desenvolve pesquisa em Sociologia da Arte (artes plásticas, cinema, literatura e música), com artigos publicados na área, e leciona as disciplinas Problemas Centrais de Sociologia da Arte (nas graduações de Ciências Sociais e de Museologia), Arte e Política no Brasil e Sociologia da Arte (na pós-graduação em Sociologia). É poeta e compositor, com livros de poesias publicados e um CD de poesia em áudio, disponível nas plataformas. Como letrista, tem uma produção significativa de músicas gravadas por seus parceiros.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SOARES, Paulo Marcondes F.  “Tudo está dentro, nada está fora”. (Artigo). In: Coletiva - Arte e Sociedade. nº 12. Publicado em 23 fev. 2024. Disponível em: <https://www.coletiva.org/arte-e-sociedade-tudo-esta-dentro-nada-esta-fora-por-paulo-marcondes-soares>. ISSN 2179-1287.

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