VILLA COLETIVA
Cultura, História e Acessibilidade
nº3 | 18 de fevereiro de 2019
Acervos e história das mulheres
Cibele Barbosa
Graças à existência material de imagens, temos a oportunidade de observar as diferentes formas de representação bem como os papéis que foram atribuídos às mulheres ao longo da história. Observar as mudanças nos modos de elaboração dessas imagens, como também seus estilos e temáticas, permite-nos perceber as modificações que foram operadas e os traços culturais de diferentes geografias e temporalidades.
No entanto, nunca é o bastante lembrar que as imagens não são meras ilustrações e muito menos servem como “espelho do real”.
Elas são leituras do mundo no qual estão implícitos valores e modos de percepção de quem as produziu. Certamente, os referenciais que informam os produtores das imagens (pintores, artesãos, fotógrafos etc) fazem parte de construções coletivas compartilhadas socialmente. Dessa forma, quando o corpo feminino, por exemplo, é representado em uma imagem, podemos extrair dessa imagem diversas informações sobre a sociedade na qual ela estava inserida quando foi elaborada.
Fotos: Divulgação/Acervo Fundação Joaquim Nabuco
Para os estudos sobre a História das Mulheres, a iconografia de uma determinada época é um farto manancial para entendermos não somente a construção de papéis sociais e expectativas sobre corpos e comportamentos, mas também sobre tabus, estereótipos e outros aspectos que podem ser percebidos, na medida em que entram em cena outros elementos, como representações raciais, econômicas, regionais e outras.
Reconhecer, por meio da documentação histórica, as mudanças que foram geradas ao longo do tempo, no tocante às representações sobre os papéis femininos é uma chave que nos permite compreender que estes papéis não são estanques e tampouco imutáveis: são construções sociais sujeitas às dinâmicas sociais.
A Fundação Joaquim Nabuco, por guardar e preservar um vasto acervo derivado de doações e aquisições de coleções particulares, dá acesso a centenas de itens documentais em imagens. A preciosa iconografia da Fundaj conta com coleções de cartões-postais com imagens femininas de diferentes países e épocas. As mulheres também estão presentes em fotografias de paisagens urbanas e rurais, a partir das quais é possível estabelecer relações entre a presença/ausência feminina no espaço, divisões de trabalho etc.
Exemplos de coleções de postais são as de Josebias Bandeira e José de Paiva Crespo, para não citar outros. Há cartões com temas românticos, temas infantis, tipos populares etc. Nas fotografias de estúdio, muito comuns no final do século XIX e início do século XX, as referências são dos mais diferentes matizes. Várias teses foram produzidas a partir das imagens disponíveis na Fundaj por meio da coleção Francisco Rodrigues com suas 17.000 fotografias de famílias, principalmente do Norte e Nordeste do país.
Nelas, há a presença de mulheres negras em diferentes modos de representação e papéis. Algumas em posição altiva, com vestimentas aristocráticas, outras como amas de leite, a exemplo da famosa imagem da escrava Mônica. Também há uma grande quantidade de imagens que revelam os traços da sociedade patriarcal daquele tempo e os papéis que eram reservados às mulheres. As imagens também nos permitem perceber que nem todas as mulheres seguiam ou concordavam com os papéis que lhe eram impostos e, nesse sentido, é possível notar quebras de padrões nas imagens.
As representações populares da mulher em rótulos comerciais e na propaganda são documentos importantes para estudos sobre questões ligadas à sexualidade e corporeidade. Muitos rótulos representavam a mulher como uma tentação, como um objeto de desejo ligado à bebida, por exemplo. No caso de mulheres negras, essas imagens revelam preconceitos e estereótipos pautados na cor, a partir dos quais as mulheres eram mais ou menos sexualizadas e seus corpos mais ou menos expostos.
As imagens também possibilitam a elaboração de uma história dos padrões de beleza. Como construções sociais, os ideais sobre o belo se transformaram ao longo do tempo, gerando divisões sobre quais imagens femininas eram socialmente apreciadas e aceitas e quais, infelizmente, eram marginalizadas.
Esses padrões, submetidos também a preceitos étnico-raciais, religiosos ou mesmo relacionados à ideia de saúde, maternidade e divisão do trabalho, podem ser estudados a partir das imagens produzidas, principalmente, na publicidade e nas artes da época.
Por outro lado, é interessante observar, mais uma vez, como as imagens também revelam as quebras de padrões e a inserção de novos códigos e padrões de conduta com relação ao conceito de beleza: muitas dessas quebras se devem aos esforços das mulheres em suas reivindicações por mais direitos e pelo direito de não precisarem se submeter aos padrões estéticos dominantes para serem aceitas. Nesse sentido, a riqueza de informações trazidas pela documentação iconográfica é essencial para se elaborar Histórias, no plural, sobre as mulheres, a partir de diferentes lugares sociais e lugares de representação.
A AUTORA
Cibele Barbosa é doutora em História pela Universidade Paris IV/Sorbonne e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco. Atualmente coordena o Projeto Trocas Atlânticas e o Programa Institucional Educação e Relações Étnico-raciais.
COMO CITAR ESSE TEXTO
BARBOSA, Cibele. Acervos e História das mulheres. (Artigo). In: Coletiva - Villa Digital. Publicado em 18 fev. 2019. Disponível emhttps://www.coletiva.org/villa-coletiva-n3-acervos-e-historia-das-mulheres-por-cibele-barbosa. ISSN 2179-1287.