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Como as plataformas digitais tentam camuflar a exploração dos trabalhadores

Em novo livro, a procuradora Vanessa Patriota da Fonseca aborda as condições precárias enfrentadas por quem depende de aplicativos para trabalhar


Por Maria Carolina Santos


Para a procuradora, a mudança virá pela união dos trabalhadores. Foto: Agência Brasil

Foi com a ideia inicial de investigar as novas formas de organização do trabalho que a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Vanessa Patriota da Fonseca ingressou no doutorado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A tese, defendida em abril deste ano, deu origem ao livro “Subordinação (mal) Camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais", que será lançado nesta quinta-feira (05), às 17h30, durante o I Seminário Mundos do Trabalho: da precarização laboral ao adoecimento mental, promovido pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e os grupos de Trabalho Labor (UFRPE) e Gesto (UFPE).


Para tratar das plataformas digitais de trabalho, Vanessa Patriota da Fonseca começa abordando a centralidade do trabalho na formação e no desenvolvimento do ser social e a configuração que o trabalho assume na sociedade capitalista.


Como marxista, sabemos que é da prática, dos fatos, que deve partir o pensamento de quem realiza uma pesquisa científica. A pesquisa então se deslocou dos problemas jurídicos que permeiam o trabalho através de plataformas digitais para entrar em questões fundamentais que afetam toda a sociedade”, afirmou a autora, em entrevista à Coletiva.


“As plataformas digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das trabalhadoras"

O livro aborda não apenas a precarização de motoristas e entregadores de empresas de transporte por aplicativo, como também a de cabeleireiros, designers, babás e vários outros profissionais que são contratados sob demanda. Vanessa Patriota da Fonseca rechaça os termos usados pelas plataformas para publicizar esses serviços, como “economia de compartilhamento” e “parceria”, já que são expressões criadas para intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de pessoas exploradas às empresas que as exploram.


“As plataformas digitais de trabalho foram criadas em um contexto em que o trabalho ocupa todos os espaços da vida e suga um tempo cada vez maior dos trabalhadores e das trabalhadoras. Isso em um mundo onde as entidades sindicais estão extremamente fragilizadas, dificultando suas lutas, e onde os Estados são capturados pelas grandes corporações”, elenca.


A procuradora defende que a racionalidade neoliberal faz crer que não há alternativas para o proletariado a não ser aceitar postos precários de trabalho. “Ao contrário da tese de que as tecnologias da informação e da comunicação levariam ao fim do trabalho, o que se verifica é a intensificação da contratação precária e a finitude do trabalho protegido, que deixam trabalhadores e trabalhadoras à margem da proteção jurídica”, diz.


Para Vanessa, o que está acontecendo é um retorno com novas aparências às condições de trabalho típicas da revolução industrial. “É um verdadeiro déjà vu. A precarização que se manifesta hoje se distancia de forma temporal daquela da revolução industrial. Mas a sua relação com o emprego da tecnologia tem o mesmo fundamento, uma vez que está na base do sistema do capital a utilização da tecnologia para o aumento da intensidade do trabalho, para o barateamento das mercadorias, incluindo a força de trabalho. Apesar dessas precárias condições de trabalho que chegam ao ponto de configurar uma escravidão moderna, os trabalhadores são instados a se comportar como empresários de si mesmo, como autônomos, mascarando o processo de expropriação da força de trabalho”, avalia.


As polêmicas decisões do STF


Entre os tópicos que a publicação aborda está o papel das instituições do Estado moderno, inclusive do Direito, na legitimação do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a procuradora critica decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que afastam a possibilidade de vínculo trabalhista entre motoristas da Uber e a empresa.


A procuradora Vanessa Patriota da Fonseca. Foto: Acervo pessoal

É um entendimento completamente desconectado da realidade dos fatos”, comenta. “No Tribunal Superior do Trabalho (TST) a tendência hoje é de reconhecimento de vínculo de emprego”, afirma, acrescentando que cinco turmas do TST reconhecem o vínculo de emprego e três turmas não reconhecem. “Ou seja, está prevalecendo o reconhecimento de vínculo. E isso tem ocorrido também em vários países do mundo, como na Alemanha, na Inglaterra e na Espanha”, acrescenta.


Vanessa explica que o Supremo tem se apegado mais à forma do que à realidade dos fatos. “No Direito do Trabalho dizemos que prevalece o princípio da primazia da realidade. Esse princípio, inclusive, é estipulado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). O que significa? Diante de uma relação entre as partes, para saber que tipo de relação é essa, se é uma relação de emprego ou de trabalho autônomo, o que importa é a realidade dos fatos e não o que está no papel”, explica.


“A mudança que eventualmente venha a existir tem que partir da luta de classes. Não é o Direito que vai resolver esse problema"

“Não adianta dizer no papel que é um autônomo se a realidade dos fatos mostrar que há subordinação, que o trabalho não é eventual e que estão presentes os elementos que configuram a relação de emprego. E o que o Supremo tem feito é se apegado ao que está no papel, ao que está no contrato firmado com a Uber, em detrimento à realidade. É um trabalho árduo que estamos tendo junto ao Supremo para tentar modificar esse posicionamento”, completa.


O STF vai decidir sobre a repercussão geral do vínculo empregatício dos motoristas com a Uber, mas ainda não há data definida para o julgamento.


A mais recente reforma trabalhista, de 2017, não atingiu diretamente quem trabalha nas plataformas digitais, mas ajudou a legitimar e intensificar uma maior precarização geral do trabalho no Brasil. “A reforma está dentro desse contexto neoliberal, de precarização, de flexibilização geral. Ela veio no sentido de afrouxar os vínculos, de flexibilizar o direito do trabalho, de desproteger o trabalhador, de baratear a mão de obra”, critica.


Mudanças virão pelos próprios trabalhadores


Nas plataformas digitais como o iFood e a Uber o patrão é uma figura invisível, onde todos os comandos são repassados por meio dos aplicativos. “Muitos chamam de subordinação algorítmica ou subordinação cibernética. Mas, na realidade, para mim, isso é uma subordinação clássica”, afirma a procuradora.

Ela classifica como uma subordinação clássica porque as ordens são dadas diretamente da empresa para o trabalhador, só que em vez de ser por meio de um e-mail ou pessoalmente, é através de uma programação algorítmica.


“Enquanto as empresas dizem que o trabalhador tem total autonomia para a realização do serviço, elas estabelecem todo um passo a passo. E se o trabalhador não seguir essas regras, ele pode ser punido”, alerta.

Ela cita como exemplo de punição o sistema da Uber. Nele, os motoristas recebem de 0 a 5 estrelas nas avaliações dos passageiros. Quem tiver média menor que 4,6 estrelas é descadastrado da plataforma.

Para Vanessa, a transformação dessa realidade de precarização virá da organização e mobilização dos próprios trabalhadores, que já demonstram maior consciência sobre a situação, a exemplo do movimento "Breque dos Apps", paralisação mundial ocorrida em 2023. “A mudança que eventualmente venha a existir tem que partir da luta de classes. Não é o Direito que vai resolver esse problema. Vai sair dos próprios trabalhadores das plataformas, que já estão muito mais mobilizados hoje do que cinco anos atrás”, acredita.


 
Serviço

Lançamento do livro "Subordinação (mal) Camuflada: a dominação capitalista no trabalho em plataformas digitais", de Vanessa Patriota da Fonseca, da editora RTM.

Participações: prof. Ricardo Antunes (Unicamp), prof. Carlo Cosentino (UFPE) e a juíza Maria Odete Freire de Araújo, do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região.

Quando: Nesta quinta-feira (05), a partir das 17h30.

Onde: Sala de leitura Nilo Pereira da Fundação Joaquim Nabuco, no Derby (R. Henrique Dias, 609)

O livro estará à venda no local por R$ 140


A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.



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