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Comunicar para transformar: uni-vos, só o letramento racial pode mudar a favela

Martihene Oliveira

Ao promover o letramento racial, dar voz aos excluídos e fortalecer a identidade da comunidade, a comunicação popular contribui para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Comunicar é um prazer, mas só é possível sentí-lo depois de entender seu conceito. Descobri há poucos anos que apesar de ser considerada uma tagarela, nem sempre comuniquei; porque como nos diz Paulo Freire, comunicar não é falar, comunicar é diferente, é falar e ser entendido. A partir dessa lógica, a reflexão mais pertinente para quem escolhe trilhar o caminho da comunicação é a de que se falamos, e as pessoas não entendem, é porque essa nossa comunicação foi falha. O maior sinal de uma comunicação eficiente é quando alguém nos entende, e isso não necessariamente tem a ver com concordar ou discordar, mas com entender – e quando a gente aprende isso, comunicar é um prazer.

É um prazer porque garante que ambas as partes sejam vistas e ouvidas e porque a partir de um diálogo isso dá certeza. A certeza de que não estamos falando em vão. Numa periferia, a comunicação pode andar ao lado da educação, e sendo estas duas aliadas, pode-se mudar o espaço, o comportamento, o olhar e até mesmo as vontades. Afinal, anunciar algo e esperar o efeito precisa estar no ofício de qualquer jornalista: comunicar para transformar.

Começo escrevendo este artigo dessa maneira, como um esquenta para as vivências do comunicar nas periferias. O Mapa da Mídia Independente e Popular de Pernambuco possui hoje 76 iniciativas espalhadas por todo estado, sendo estas quilombolas, periféricas, ribeirinhas ou indígenas. Entre esses grupos, o feminismo, o antirracismo, a luta pelos direitos LGBTQIAPN+, as mudanças climáticas, o combate à desigualdade e sobretudo o direito de comunicar são algumas das bandeiras que visibilizam as vozes que já falam há longos tempos, só que quase ninguém ouve.

Como jornalista que sou, e sobretudo mulher preta e periférica, falo sobre a comunicação da favela que vai para além do que os jornais publicam e para além do que são redes sociais. Acredite, apesar de estarmos no ano 2024 e de, segundo o censo do IBGE, 92,5% dos domicílios brasileiros possuírem acesso à internet, a língua falada pelos jornais ainda esbarra no muro que rodeia a favela, e a mensagem que chega, por mais que seja inovadora, nem sempre é a da mídia que letra. É preciso uma linguagem estratégica, e uma forte ferramenta para isso é a comunicação off-line, que acontece no olho no olho, com convites para uma troca no lugar de palestras – porque palestra é chato até para grandes acadêmicos, mas uma roda de conversa, com comes e bebes e oportunidades de fala, não.

Isso ficou muito explícito quando foi realizado o censo no território do Córrego do Sargento, localizado no bairro de Linha do Tiro, na Zona Norte do Recife, Pernambuco. Em 2020, ano em que o Coletivo de Mídia Independente Sargento Perifa foi fundado, o primeiro censo mapeou a comunidade e entrevistou 187 famílias. Desse grupo, nem 30 possuíam curso superior, mas essa não foi a surpresa. O que deixou os olhos da equipe estatelados foi que de todas as famílias pretas que entrevistamos, nem 30 possuíam letramento racial. E quando falamos disso partimos do básico: de ao menos se reconhecerem pretos e pretas.

Essa coisa de letramento racial atrelada à criticidade do receptor e à mensagem do conteúdo de um jornal, era uma coisa que no fundo eu já sabia. Desde que comecei a entender sobre enquadramento e angulação, métodos que aprendemos nas primeiras aulas do curso de jornalismo e que falam sobre o intuito e a mensagem que o jornal quer aplicar, observando minha mãe e tias ao assistirem aos jornais policiais nos horários de almoço e janta e idolatrarem os apresentadores desses jornais enquanto se informavam sobre o próprio genocídio negro, vi que por mais assustadas que ficassem, não percebiam a raiz do problema. Já no rádio, o programa Bandeira 2, um clássico do jornalismo pernambucano, ficava por conta dos meus avós. Meninas e meninos dos anos 90 poderão se identificar nesse momento e ainda cantarolar mentalmente o anúncio de qualquer morte trágica com a voz do saudoso Gino César. No impresso, a Folha de Pernambuco e o Diário de Pernambuco davam conta do recado, e lembro-me como se fosse hoje do quanto demorava para dormir e andar tranquila na rua após ler que um cara assassinou um outro por causa de R$0,10 e que um outro fez o mesmo por causa de um boné. Notícias que eu via no impresso e que me tiravam o sono, jornais que se espalhavam pela casa, trazidos pelo meu avô semianalfabeto mas que andava com um livro na mão, custasse o que custasse (porque um negro com um livro deveria ser um negro respeitado). No sofá da sala, no centro do terraço, no banquinho ao lado da cadeira de balanço, ou em cima do saco de cimento que “pedrava” aguardando o próximo movimento do dono da casa para algum reparo de alvenaria, o jornal que os adultos falavam que se espremesse sairia sangue era consumido todos os dias – tava lá, todo mundo lia e se lia, mas ninguém se percebia.

Esse emaranhado de relatos nesse último parágrafo pode parecer confuso se não analisamos um problema gravíssimo que me faz pensar que talvez seja por causa dele que há tantos anos o movimento negro avança sob a contrariedade de tantos imbróglios. A falta de letramento racial e de criticidade midiática é um problema que se arrasta, mas que vem sendo quebrado pelos movimentos, sobretudo pela comunicação popular. Mas também é ela quem faz com que a favela veja como herói o apresentador que vibra a cada CPF a menos. E isso não é trágico?

É dessa premissa que me veio a certeza de que só o letramento racial pode transformar a favela: não se consegue empoderar um homem negro se ele não se reconhece negro e não se reafirma sobre isso. A partir de olhar para si e ver como se é, ele começa a analisar o espaço onde mora, as pessoas que o cercam, os direitos e acessos, e sua lente se amplia para enxergar mínimas coisas. Os erros que estão aqui ou ali, a forma como a polícia entra na casa dele, em Linha do Tiro, e a forma como ela entra nos prédios luxuosos de Casa Forte, o bairro vizinho, por exemplo. Depois disso, a criticidade midiática sobre jornais que só fazem do negro mais um na multidão de notícias violentas em todos os sentidos acontece naturalmente; afinal, a favela é a maior audiência de um jornal policial.

Nessa perspectiva, analisamos a relação da imprensa com a favela, e não é de surpreender a quantidade de veículos midiáticos de resistência que nascem nesses territórios, mesmo que criados por pessoas que talvez nunca tenham estudado comunicação. Tem jornalistas, mas também professores, grafiteiros, artistas, donas de casa, garis e enfermeiros, entre outros, que se comunicam à sua maneira, com o objetivo de mudar seus territórios, de fortalecer o povo preto e de não “dar voz”, mas de visibilizar a voz das comunidades. Basta movimentar uma história, basta fazer comunicação horizontal: aquela que acontece de morador para morador, onde todo mundo cresce junto e ninguém ganha mais do que ninguém – essa é a ideia.

Na periferia da Zona Sul recifense, a Livroteca Brincante do Pina, criada por Kcal, morador da comunidade, nasce de sua vontade de ler e colecionar livros usados. Ele transformou sua palafita em um espaço de educação, cultura e comunicação. A Rádio Comunitária A Voz da Lama, de barco ou bicicleta, anuncia para a comunidade do Bode, e outras iniciativas de comunicação popular aparecem também nas proximidades, como a Coletiva Cabras, grupo de comunicadoras feministas que fortalecem as mulheres do território através dessa comunicação. Nas madeiras, paredes e muros presentes na comunidade, a arte do coletivo Pão e Tinta protesta pelo direito à cidade. Em outro bairro, já no Coque, o coletivo Coque r(E)xiste se torna inspirador e respirador para quem habita nas redondezas. As fotógrafas cis e trans do Revelar.Si também fazem a revolução: corpos favelados para além da estética padronizada comunicam nos ensaios fotográficos.

Em Olinda, as pesquisadoras do Coletivo Filhas do Vento promovem cine-debates; em Paulista, os coletivos Força Tururu, Escambo Coletivo, entre outros lutam pelo direito à cidade combatendo a especulação imobiliária e realizando campanhas de incidência política além de diversas formações.

Os coletivos M-1, Fervo e Várzea Underground comunicam através da cena underground. No Caranguejo Tabaiares, a luta é contra a insegurança alimentar e a violência policial e pelo direito à moradia. Em Caranguejo Uçá, a comunidade pesqueira fez pescadores e pescadoras profissionais de comunicação. Se formos aos quilombos, jovens e mulheres comunicam através do audiovisual, como é o caso do Crioulas Vídeo em Salgueiro e do Núcleo de Comunicação da Juventude de Mirandiba, na cidade que leva o mesmo nome. Em Pesqueira, os indígenas da Ororubá Filmes dão conta de se comunicar através do cinema.

Nas chuvas que desolaram o Recife e a região metropolitana em 2022, a comunicação popular dos coletivos foi fundamental. Na Zona Norte, o Sargento Perifa publicava: “Ei, prefeitura do Recife, não adianta cobrir o seu descaso com lona”; “A diretora da Escola Municipal Paulo VI, recém-chegada no cargo, não libera a escola para abrigar as quase 250 famílias que fogem do transbordo do Rio Morno”; “a prefeitura do Recife ainda não mandou comida para as famílias refugiadas na escola”. A publicação é posta nas redes sociais, as páginas ordinárias repostam, e uma massa pressiona o poder.

Noam Chomsky escreveu em seu livro Mídia, propaganda política e manipulação as suas impressões sobre o comportamento das massas e sobre como elas absorvem a mensagem. Citando Walter Lippman – jornalista e precursor da Agenda Setting, que relata em sua obra Opinião Pública o poder dos veículos midiáticos sobre a sociedade, reafirmando que esses veículos são a ponte entre as formas que as pessoas recebem um conteúdo e os acontecimentos reais –, falou do rebanho desorientado: uma história que Lippmann criou para falar como a sociedade é dividida em duas partes, de um lado um pequeníssimo grupo e do outro, a massa que ele chama de rebanho desorientado. O rebanho olha para o pequeno grupo e pede para que estes sejam os seus líderes, porque os componentes do rebanho serão seus súditos.

Encerro esse artigo com o desejo de não ser parte desse rebanho e não querer que os meus sejam também. É preciso enquanto comunicador resgatar a nós mesmos e aos outros.

PARA SABER MAIS 

CHOMSKY, N. Mídia, propaganda política e manipulação. Trad. de Fernando Santos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

A AUTORA

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Martihene Oliveira é  jornalista, mulher preta e periférica, coordenadora do Mapa da Mídia Independente e Popular de PE, idealizadora do Coletivo de Mídia Sargento Perifa, criadora da Rede de Mulheres e Meninas do coletivo e co-fundadora do Laboratório de Comunicação Comunitária -  LAB Perifa. Apresentadora do programa Almanaque da Aconchego na Rádio Comunitária Aconchego, treinadora de ferramentas Google para jornalistas na Rede de Treinamentos do Instituto FALA! e escritora do livro-reportagem Urubu Marrom - Relatos de uma jornalista de favela. Já colaborou com o Intercept Brasil na série de reportagens Quantos Pretos Você Perdeu? e foi o 3º lugar no 11º Prêmio Patrícia Acioli de Direitos Humanos pela Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro (Amaerj). Em maio de 2024 recebeu o Prêmio Mérito de Comunicação Graça Araújo, na Câmara Municipal do Recife.

COMO CITAR ESSE TEXTO

OLIVEIRA, Marthiene. Comunicar para transformar: uni-vos, só o letramento racial pode mudar a favela. Revista Coletiva, Recife, n. 35, ago.set.out.nov.dez. 2024. Disponível em: https://www.coletiva.org/marthiene-oliveira . ISSN 2179-1287.

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