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Educação e 

Diferenças e...

Editores Temáticos: Alik Wunder e

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

nº16 | 26 de fevereiro 2021

Urbanismos possíveis, um game a partir de cartografias cruzadas

Juliana Jonson

De repente ouço um funk, é alguém que sobe a rua de um predinho cinza claro com portão recuado, como nos desenhos:

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É um rapaz com boné aba reta, calça jeans, camiseta preta, 1,72m mais ou menos - tomando minha altura como base (1,68m) - magro, ombros altos arcados pra frente, cabeça baixa, cachos saindo do boné, cabelos escuros e a velocidade alta que troca de uma música pra outra “esse jovem está voltando a pé para sua casa e parece estar longe”. O rapaz atravessa a cidade pelo meio dos bairros para se livrar das avenidas movimentadas, aquelas onde ocorrem acidentes, batidas em postes por embriaguez, pressa, às vezes, raiva. Parece tranquilizar as pessoas, essas ruas paralelas às avenidas, quando alguém nelas caminha ao encontro de seu lar, sua família, sua cama, seus sonhos. 

O que infere a descrição dessa cena? O que implica descrever o caminhar de alguém em uma rua? De que serve uma cidade? Usamos as cidades? Andamos na cidade? Por quais avenidas passamos? Quantas cidades conhecemos? Como definimos cidade? Pra que serve pensar sobre a cidade? Moramos em uma cidade? Qual é a minha cidade? O que faço na cidade? Rua é cidade? Existem muitas perspectivas para observar e desvendar uma cidade: a história do urbanismo e das cidades, a geografia, a história da arquitetura, a filosofia, os modos de vida, a história das guerras, o que as pessoas conversam etc.  

Além dos satélites, o caminhar pela cidade pode também representá-la como mapa. Pelos simples caminhos que realizamos nela e as conexões entre lugares, pessoas e suas histórias, sejam quantos e quais forem, podemos entender qual é a história daquela cidade, ainda que seja contrária aos registros, é um ponto de vista do que se pode encontrar em uma primeira visita. Quando há a sobreposição desses diversos mapas subjetivos e dos fatos, é que se percebe a movimentação das ocupações humanas e suas qualidades variáveis, e só então notar urbanismos possíveis para pensar e realizar conexões necessárias a fim do “bem-estar coletivo”, tal como também se pensou nas cidades da Antiguidade clássica e tantos outros momentos da história. 

As junções ou nós que se formam da sobreposição dessas cartografias mostram a cidade com uma maior precisão de seu externar, afinal, ruas, avenidas, estradas, há muito são questionados como a necessidade latente de lugares e regiões. Qualquer seja a predominância de um caminho, é com esses nós de sobreposições que proponho um game virtual de interface entre o entalhe das diversas superfícies cartografadas - pele, rochas, águas etc. – e os algoritmos elaborados com fundamento em uma ética spinozana. 

Por palavras destinadas a esta coluna, esboça-se um game online maquinado por uma dinâmica de desenhar traços e transfigurá-los conforme interações ocorridas entre jogadores. O cenário virtual, ou tela, ou paisagem, como poderá ser chamado adiante no texto, têm as escolhas dos gamers renderizando-se[1] constantemente; já as escolhas são os resultados da veiculação dos algoritmos que associam cores e formas tal como de um holograma que irá aparentar-se com os mapas de cidades. Essas, muitas vezes como linhas, atravessadas ou não pelas de outros jogadores, atualizam-se camada a camada por ações no jogo.

Tais ações tratam-se de interações programadas que oferecem excertos de textos literários, letras de músicas, teses de filósofos, trechos de filmes etc. A escolha de uma ou outra coisa gera uma atualização da paisagem, enquanto que o conteúdo de tal coisa está atrelado a fatos históricos e suas consequências, colocando o jogador como investigador de diversos temas e de como deverá agir com as próximas interpelações. Assim, o jogo começa a adquirir consistência em sua malha virtual e as relações entre uma cartografia e outra aderem-se à maiores complexidades até que se possa vislumbrar como interagem entre si e de forma ativa na coletividade.  

A princípio são formas abstratas e com poucos jogadores. Conforme avança-se, a rede pode ser ampliada e as abstrações tornam-se equipamentos urbanos, como uma praça, uma iluminação, um posto de saúde etc. O surgimento desses ambientes permitirá o chat entre jogadores sobre os temas que os levaram a terem um encontro, como por exemplo a escolha pelo seguinte trecho: “A urbe corresponde ao orbe: de fato, a cidade acolhe homens e coisas provenientes do mundo inteiro, e o mundo é unificado, fortificado, circundado por muros e percorridos por estradas como uma única cidade. ” (BENÉVOLO, 1983, p.137)  

Diversas culturas combinadas com documentos históricos, associados à transmutação do design do game, é maquinar o desejo pela mutação do cenário, do virtual e da paisagem que não se finda na tela. O objetivo do jogo é, conforme essas interações acontecem, coletar um registro de memória das ações e com elas buscar aproximar a paisagem do jogo com a paisagem das cidades, como se pudéssemos enxergar constelações nas paisagens das cidades, a Terra espelhando o céu. A intenção é colocar em experiência a moção coletiva virtual e desvendar expressões desses desejos misturados, uma vez que existe essa vontade coletiva, e que nem sempre ela é hábil.

Quanto à ética spinozana, a que os algoritmos seguem, engendra-se as ações pelo aumento de potência, ou seja, o aumento da capacidade de agir, e quando essas tornam-se uma ação coletiva, o aumento da potência se dá para todos, todas, todes. A despotencialização do corpo também é tratada na dinâmica do game, ou seja, através da diminuição de potência, pelos afetos tristes que são colocados pela história com pinturas, músicas etc. Não é um jogo de acertos e sim de formas que mudam conforme reconheça-se a leitura dos fatos, por isso torna-se um dispositivo tecnológico para se ter contato mais evidente da mutação na paisagem através dos conhecimentos verificados em bibliografias de diversas áreas. 

Um exemplo de cartografias do território é o projeto TICP [2] Jaraguá/Perus (2014-atual) que é criado a partir do empenho da comunidade deste bairro periférico da região metropolitana de São Paulo, e assim realiza a construção de vários novos outros projetos. Conhecido como projeto Quilombaque, seu surgimento vem da ação de vasculhar, organizar, juntar, ouvir, falar e conectar vários espaços por onde se espalham a cultura desse território de histórias acolhidas e semeadas, que como eles dizem são movidas pela “sevirologia”, ou seja, o ato de se virar com o que tem e fazer acontecer, ação constitutiva da  “firmeza permanente”     . 

Já o TICP é um instrumento transformado em lei pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo que, diferente dos planejamentos urbanos convencionais, realiza o reconhecimento dimensional da cidade e suas atribuições econômicas e funcionais. Dessa luta representada por várias frentes - Comunidade Cultural Quilombaque, o Movimento de reapropriação da fábrica de Cimento Perus e Núcleo de Estudo e da Paisagem FAU-USP – pô     de-se realizar o “Museu Territorial de Interesse da Cultura e da Paisagem Tekoa Jopo’í” que através do mapeamento de história, do afeto, do ambiente, das lutas sociais abarcados no território Perus, Anhanguera e Jaraguá, criam trilhas educativas que oferecem novas narrativas e olhares para uma periferia que concentra um grande índice de vulnerabilidade social na cidade de São Paulo.

Retornando ao rapaz que sobe as ruas pelo meio dos bairros, ao mesmo tempo que escolhe seu som e escolhe um caminho, isso define o entalhe das avenidas no horário e pela ação de um jogador. Pelos bairros o rapaz sobe pensando sobre o som, sua vida e seu corpo. Passa em sua cabeça como foi o dia, o minuto atrás, a temperatura do ar, seus medos, seus traumas, seu estado físico, se com sede, sono ou animado sobe a rua. No entanto, algo mais forte ele vive em sua caminhada, escolheu esta rua para voltar pra casa: ele conserva seu corpo para longe das avenidas neste horário, sempre que houver oportunidade, e assim é seu mapa de rastros longínquos pela cidade. 

Na escritura do próprio mapa e leitura de outros isso proporciona o surgimento de conexões que ainda não estavam descritas. O rapaz a caminhar no meio do bairro, ou seja, esvaziando a avenida, demarca a oscilação de movimento em relação ao tempo e delineia trajetos e limites variáveis do território. As conexões próximas e muito distantes nos permitem visualizar a pulsação de formas da cidade, sua luz, suas cores e também o papel das decisões que foram tomadas colocando o jogador mais consciente das ações em relação às suas decisões.  

NOTAS

[1]Renderizar: condensar uma sequência de imagens em movimento.

[2] TICP (Territórios de Interesse da Cultura e da Paisagem): 

Art. 314. do PLANO DIRETOR (São Paulo, LEI 16.050/2014), fica instituído o Território de Interesse da Cultura e da Paisagem, designação atribuída a áreas que concentram grande número de espaços, atividades ou instituições culturais, assim como elementos urbanos materiais, imateriais e de paisagem significativos para a memória e a identidade da cidade, formando polos singulares de atratividade social, cultural e turística de interesse para a cidadania cultural e o desenvolvimento sustentável, cuja longevidade e vitalidade dependem de ações articuladas do Poder Público.

PARA SABER MAIS

BENÉVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo: Perspectiva, 1983.

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Bauru às 22:05, 20/11/2020, mapa de celulares tweetando. ( Fonte: https://labs.mapbox.com/labs/twitter-gnip/brands/#3/26.35/-20.21)

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Celulares com senhas fracas que receberam um vírus e passaram a ser rastreados. (Fonte: https://www.kaspersky.com.br/blog/amazing-internet-maps/5778/ )

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Mapa da internet conforme são realizados links com outros sites a dimensão aumenta, cada cor representa uma localidade geográfica e quanto mais forte for o link mais perto estarão outros links.  (Fonte: http://internet-map.net/ )

A AUTORA

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Juliana Jonson fez graduação em arquitetura e urbanismo na Unesp-Bauru e é mestre e doutora em Educação pela Unicamp. Atualmente debruça-se sobre o tema "arquitetura de exposições virtuais".

COMO CITAR ESSE TEXTO

JONSON, Juliana. Urbanismos possíveis, um game a partir de cartografias cruzadas. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e... nº 16. Publicado em 26 fev. 2021. Disponível em https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-n16-urbanismos-possiveis-por-juliana-jonson. ISSN 2179-1287.

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