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Flexibilização leva à precarização do trabalho

José Dari Krein

O trabalho no capitalismo está em uma condição subordinada em relação ao capital. A subordinação e a exploração do trabalho são características intrínsecas do modo de ser capitalista. O processo de assalariado é uma característica intrínseca para viabilizar a acumulação de capital.

No decorrer da história, mudanças foram ocorrendo sobre as formas de como o trabalho foi sendo regulado (utilizado pelo capital), especialmente a partir das tensões sociais advindas do surgimento do movimento trabalhista na cena política, como bem apontam o historiador britânico Eric Hobsbawm, em seu livro “Mundos do Trabalho” (1987), e o economista, também britânico, Maurice Dobb, no livro “Os salários” (1986). Com diferenciações nacionais substantivas, houve certa correlação entre as características do capitalismo e o padrão de regulação do trabalho em cada momento histórico.

 

Na primeira fase, da plena constituição do capitalismo (séculos XVIII e XIX), a tendência foi de prevalecer uma situação de absoluta flexibilização do trabalho, em que a regulação predominante tendia a criar as condições para “incentivar” os indivíduos a se submeterem ao assalariamento, desenraizando-os de suas formas tradicionais de reprodução social. Como demonstra o sociólogo britânico Thomas Marshall, no livro “Cidadania, classes sociais e status” (1967), a constituição dos direitos civis não se opõe a criação de uma ordem competitiva, de mercado, pelo contrário, a legítima e a fortalece.

Em um segundo momento, com a crise da ordem liberal, o surgimento de proposições de organização social alternativa ao capitalismo a partir da revolução russa e da social democracia, das guerras e da crise econômica, combinado a profundas mudanças nas formas de produção de bens com a Segunda Revolução Industrial, foi possível, por meio da luta de classe, constituir uma ordem econômica e política mais regulada, que teve como um dos seus elementos constituintes, o aumento da proteção social, das políticas sociais e da regulação pública do trabalho.

 

Novamente, há uma correlação, especialmente a partir do pós-guerra e do acordo de Breton Wood – em que os Estados Nacionais adquirem certa autonomia no desenvolvimento econômico e de políticas sociais – entre a ordem econômica e política dominante e o padrão de regulação do trabalho. Apesar das substantivas diferenças nacionais, prevaleceu a tendência de concertação social nos espaços nacionais em que os direitos dos trabalhadores se ampliam, constituindo um processo de progressiva “desmercantilização” da força de trabalho, como aponta o pesquisador britânico Richard Hyman, no texto “Europeização ou erosão das relações laborais?” (2005).

Nos países da periferia do capitalismo, não se construiu um Estado de bem-estar social e nem uma regulação pública do trabalho. Mesmo assim, houve, com fortes diferenças nacionais, o avanço de uma série de direitos trabalhistas e sociais. No caso brasileiro, a constituições dos direitos sociais, fundamentalmente voltadas para a regulação do trabalho, ocorreu nos anos 1930/40, período que inicia o processo de industrialização. Apesar de uma legislação bastante extensa e avançada para época, como nos mostra o crítico literário brasileiro Alfredo Bosi, no livro “Dialética da colonização” (1992), ela, na prática, tornou-se seletiva (para trabalhadores da indústria e comércio) e apresentou pequena efetividade. No entanto, com o processo de industrialização, os direitos trabalhistas forma ampliados e neles incorporados outros segmentos de trabalhadores, consolidados na CLT e na Constituição Federal de 1988.

Apesar da inscrição dos direitos formais, o mercado de trabalho continuou apresentando alta informalidade, grande precariedade e elevada desigualdade social. A tendência de flexibilização se fortaleceu na ditadura militar, constituindo-se na primeira reforma liberalizante do trabalho no século XX. Ela consolidou a prevalência de um mercado de trabalho flexível, especialmente com a introdução do FGTS, dos contratos atípicos e a política de arrocho salarial. Essa característica, apesar da presença do movimento trabalhista, não foi revertida no processo de redemocratização do país.

Nos anos 1990, quando o governo brasileiro fez a opção de inserir o país na globalização financeira, adotando as políticas de Consenso de Washington. Ou seja, um capitalismo – na sua terceira fase – em que lógica de acumulação apresenta a dominância do capital financeiro, com a produção de bens e serviços mais internacionalizada, sob a hegemonia neoliberal, que tende a redefinir o papel do Estado, promovendo uma liberação maior da economia e estabelecendo uma nova divisão internacional do trabalho e também redefinindo as estratégias das empresas, inclusive possibilitadas pelas novas tecnologias e os processos de reestruturação produtiva. Um capitalismo mais autorregulado pelo mercado estabelece também uma redefinição dos padrões de regulação do trabalho, pressionando por flexibilidade e diminuição da tela de proteção social.

 

Por um lado, torna-se hegemônica a defesa da flexibilização – que significa ampliar a liberdade do empregador estabelecer as condições de contratação, uso e remuneração do trabalho –, que se traduz na introdução de modalidades de contratação fora do contrato padrão (por prazo indeterminado), na “despadronização” da jornada de trabalho, na terceirização e na remuneração cada vez mais variável. Por outro lado, a referência dos custos de produção – determinados pela lógica do curtoprazismo – é dada pela dominância financeira e dos países que foram se tornando a nova oficina do mundo, especialmente a China, como menciono no artigo “A retomada do desenvolvimento e a regulação do mercado de trabalho no Brasil” (2013), produzido junto ao professor Paulo Eduardo Baltar.

 

Todo esse processo, aliado às tendências estruturais do capitalismo, de deslocar trabalhadores da produção direta de bens para atividades variadas de serviços, tende a provocar uma recomposição da classe trabalhadora, tornando-a mais segmentada e submetendo-a a maior insegurança, o que afeta inclusive a sua capacidade de ação coletiva. Em síntese, as características do capitalismo contemporâneo são desfavoráveis ao trabalho e tendem a aprofundar a precariedade do trabalho. As mudanças na regulação, dentro desse processo, tendem fortalecer a lógica do aumento da precariedade e da crescente insegurança, reafirmando as características históricas do capitalismo de promover excedente de força de trabalho e desigualdade social.

Coadunado com a inserção na globalização financeira, no Brasil também começa a prevalecer, nos anos 1990, uma tendência de flexibilização da relação de emprego: quanto às modalidades de contratação, à jornada e à remuneração do trabalho. Ao mesmo tempo, tenciona-se para uma solução mais privada dos conflitos trabalhistas. Não ocorreu uma reforma global do arcabouço legal institucional brasileiro, mas uma série de transformações pontuais nos elementos centrais da relação de emprego, via legislação, negociações coletivas e interpretação das normas vigentes.

 

Essa flexibilização implementada, como mostra o pesquisador uruguaio Oscar Uriarte, no livro “La flexibilidad” (2000), tornou-se sinônimo de ampliação da precarização do trabalho. É uma tendência que continua avançando nos anos 2000, mesmo no período de melhoras substantivas em diversos indicadores do mercado de trabalho, com a formalização, o aumento expressivo do salário mínimo e a queda da desigualdade, como se pode observar no artigo “Notas sobre formalização – Estudo de Caso: Brasil” (2014), desenvolvido por mim e por Marcelo Manzano.

Quanto às formas de contratação, nos anos 1990 e anos 2000, como mostra o artigo “Os movimentos contraditórios do trabalho no Brasil dos anos 2000” (2015), elaborado por mim e pela professora Magda Biavaschi, foram introduzidas diversas mudanças ampliando as possibilidades de contratação atípica (contratos temporários e especiais para segmentos dos trabalhadores) e formas disfarçadas ou fraudulentas de contratação (falsas cooperativas, autônomo proletarizado, trabalho estágio, contratação com pessoa jurídica, o PJ).

 

Analisando o período, a modalidade que ganhou grande expressão é a terceirização, que segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e a Central Única de Trabalhadores (CUT), no dossiê “Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha” (2015), abrangia 27% dos assalariados em 2013. Terceirização é expressão de precarização, como mostram diversas pesquisas e estudos, que podem ser encontrados no volume 14, número 1, da Revista da ABET (2015).

 

O avanço da terceirização ocorreu apesar dos pequenos limites vigentes no arcabouço legal, o que motivou uma forte disputa em torno de sua regulamentação. As contratações a termos não apresentaram grande relevância, pois prevaleceram os contratos por prazo indeterminado, que já são flexíveis, pois as empresas têm liberdade de dispensar o trabalhador sem precisar justificar. As modalidades disfarçadas foram combatidas pelas instituições públicas, considerando-as como uma fraude. Mesmo assim continuaram bastantes presentes no mercado de trabalho.

Em relação à jornada, as mudanças legais principais foram a introdução do banco de horas, o contrato parcial, formas de compensação e a liberação do trabalho aos domingos. Aqui há um movimento contraditório, em que houve uma diminuição do número de pessoas que trabalham mais de 44 horas semanais e, ao mesmo tempo, um processo de flexibilização da jornada. Tendência que pode ser observada com a crescente utilização do banco de horas, a ampliação da jornada nas empresas de turno de revezamento (claro retrocesso) e a sofisticação de mecanismos de controle e intensificação da jornada, como apresento em no livro “As relações de trabalho na era do neoliberalismo no Brasil” (2013). Em resumo, as jornadas foram sendo adaptadas a realidade de cada setor econômico, atendendo as demandas empresariais.

No tocante aos rendimentos do trabalho, a flexibilização se expressou com o avanço da remuneração variável, especialmente nos setores mais organizados (econômica e sindicalmente), com a crescente importância do programa de participação nos lucros e resultados e a vinculação da remuneração ao desempenho e às vendas. Na mesma publicação de 2013, mostro que a flexibilização tem muito mais aspectos negativos que positivos, pois tende a quebrar a solidariedade entre os trabalhadores, fragilizar as fontes de financiamento da seguridade social e desfocar a luta em torno do aumento real. Essa tendência continuou ganhando expressão mesmo em um contexto de elevação do salário mínimo e de negociações salariais mais favoráveis aos trabalhadores entre 2004 e 2014.

Em síntese, estamos falando de dois períodos distintos no caso brasileiro. Nos anos 1990, há a combinação de um processo de desestruturação do mercado de trabalho com introdução de medidas de flexibilização e diminuição da proteção social. Nos anos 2000, especialmente entre 2004 e 2014, há movimentos contraditórios, em que há elementos de estruturação do mercado de trabalho, mas sem que as tendências de flexibilização fossem revertidas.

Na crise atual, as agendas da flexibilização e da diminuição da proteção social voltam com força, como pode ser observado na pauta em discussão no Congresso e no Governo, tais como o PL 4330/04 (agora PLS 30/2015), a redefinição do conceito de trabalho análogo à escravidão, a reforma da previdência, a reforma trabalhista, o seguro desemprego, o abono salarial, etc. Ou seja, a pauta de desconstrução de direitos e da proteção social volta à agenda novamente, sob o argumento da necessidade de adequar as regras aos ditames da economia, deixando a vida das pessoas mais inseguras e instáveis, que é sinônimo de aumento da precarização.

 

A legislação e a regulação do trabalho (em sentido mais amplo) refletem as tensões sociais existentes nas sociedades em cada momento concreto. A legislação trabalhista é expressão da luta de classes na sociedade. Os direitos e a tela de proteção estão articulados com as formas de como se estrutura a ordem econômica e política em cada momento.

NOTAS

[1] O texto faz parte das reflexões presentes no projeto temático da FAPESP (2012/20408-1).

[2] Por regulação pública entende-se a construção de um conjunto de regras (via Estado ou negociação coletiva) que estabelece limites a forma como o capital utiliza o trabalho.

PARA SABER MAIS

HOBSBAWM, E. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

DOBB, M. Os salários. São Paulo: Cultrix, 1986.

MARSHALL, F. Cidadania, classes sociais e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

HYMAN, R. Europeização ou erosão das relações laborais? In ESTANQUE, E. et al. Mudanças no trabalho e ação sindical: Brasil e Portugal no contexto da transnacionalização. São Paulo: Editora Cortez, 2005.

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

URIARTE, O. E. La flexibilidad. Montevideo (Uruguay): Fundación de Cultura Universitaria, 2000.

KREIN, J.D. BALTAR, P.E. A retomada do desenvolvimento e a regulação do mercado de trabalho no Brasil, Cadernos do CRH, v. 26, n. 68, p. 1-20, maio/ago. 2013.

KREIN, J.D. MANZANO, M.F. Notas sobre formalização – Estudo de Caso: Brasil. Lima: Escritório Regional da OIT para a América Latina e o Caribe, 2014. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/documents/publication/wcms_245624.pdf>.

KREIN. J. D. BIAVASCHI. Os movimentos contraditórios do trabalho no Brasil. 2015.  Disponível em: <http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2015/10/CLASCO-vers%C3%A3o-enviada-de-maio.pdf>.

DIEESE/CUT. Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha. 2015. Disponível em: <http://www.cut.org.br/system/uploads/ck/files/Dossie-Terceirizacao-e-Desenvolvimento.pdf>. Acesso em: 5 jan. 2016.

Revista da ABET, v. 14, nº 1, 2015. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/index.php/abet/issue/view/1643>. Acesso em: 29 nov. 2015.

KREIN, J. D. As relações de trabalho na era do neoliberalismo no Brasil. São Paulo: LTR, 2013.

O AUTOR

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José Dari Krein é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho). Membro da diretoria da ALAST (tesoureiro) no mandato 2010-2013. Presidente da ABET (2007-2009). Membro da comissão de apoio à ABET no mandato atual, membro da GLU (Global Labor University). Possui doutorado e mestrado em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (2007). Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Emprego, Relações de Trabalho, Sindicalismo e Negociação Coletiva.

COMO CITAR ESSE TEXTO

KREIN, Josei Dari. Flexibilização leva à precarização do trabalho. Revista Coletiva, Recife, n. 19, maio.jun.jul.ago. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-precarizacao-e-trabalho-n19-flexibilizacao-leva-a-precarizacao-do-trabalho>. ISSN 2179-1287.

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