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 Cortar o cosmo, multiplicar o axé: palavras de um axogun

Pai Elias (Ilé Asé Ojú Ogun Fumnilaiyó)

Mauricio Santos (UFMG)

 

Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino (UFPR)

Pai Elias, também conhecido como Golodéssi, é um axogun[1]de destaque no Ilé Asé Ojú Ogun Fumnilaiyó. Com 60 anos de idade e uma habilidade ímpar nos cortes afro-brasileiros, ele é especialista nos fundamentos desta arte. Sua mão-de-faca representa sua ligação com essa prática ancestral e, ao mesmo tempo, sua obrigação para com o santo. É nesse sentido que todo cargo de candomblé é também e, talvez, sobretudo, um encargo. Odé Golodéssi é o único axogun do terreiro e o Ogan mais experiente na região da foz dos rios Iguaçu e Paraná. Com mais de 30 anos de seu caminho iniciático, ele compartilha, em suas conversas, sobre o sagrado ofício de cortar para os orixás. Este texto tem como objetivo, a partir da perspectiva de um especialista ritual, aprofundar a compreensão sobre o ato de cortar nas tradições de matriz africana, que transcende a simples ação física, tornando-se uma forma de multiplicar o cosmo.

 

Conforme salienta Marcio Goldman, o rito de “sacrificar” no terreiro do Matamba Tombenci Neto, é denominado “cortar”; e tal qual no mito narrado por Nathan e Hounkpatin, a divindade originária se corta a si mesma a fim de introduzir a multiplicidade e a vida no mundo. O Um é, na cosmopolítica enterreirada, um grande perigo, percepção que pode ter sido enfatizada em determinadas nações de candomblé, a partir das relações afro-indígenas.     As pessoas-de-santo devem continuar cortando para que a vida seja colocada em movimento, não deixe de seguir, não se petrifique numa unidade estanque. Para Goldman, em religiões como as afro-brasileiras[2], os humanos fazem as divindades, no mesmo gesto em que elas também fazem os humanos. É na incessante e nada simples relação entre esses fazeres – fazer e ser feito – de todas as classes ontológicas de seres que se dá a feitura do cosmo[3].     

 

O tipo de corte realizado por Pai Elias é muito peculiar, já que não há um agente de ordem vertical a tirar a vida de outro ser vivo. Na prática de Pai Elias, o orô (outra designação de origem iorubá para a sacralização) é uma dinâmica horizontal, em que tanto os seres humanos quanto os bichos e orixás têm um papel ativo e influenciam o desenrolar do ritual. O que igualmente significa que, embora haja um protocolo para cada tipo de corte (determinado, entre outras coisas, pela sua finalidade, pela qualidade das divindades ou entidades envolvidas, pela espécie de animal em questão, pela nação à qual a casa pertence, etc.), o script ritual pode sempre ser modificado. 

 

O orô constitui, assim, um dos cenários de maior liminaridade e dramaticidade[4] dentro do culto, onde a natureza convencional da “natureza” é explicitada e, por conseguinte, as fronteiras cotidianas entre humanos, bichos e orixás são colocadas em questão e em contato, abrindo espaço para a interação e as passagens (os santos respondem, as pessoas viram, os animais aceitam ou recusam). Também para o poder sobre o próprio destino e os modos de satisfação de cada ente.

 

Nesse contexto, em vez de um ato de dominação humana ou de subjugação animal, o corte caracteriza uma experiência coletiva em que todos os seres são convidados a participar e contribuir: uma modalidade da relação santo-pessoa-cosmo na qual qualquer dos termos pode influenciar os demais. Do ponto de vista da ética e da etiqueta do candomblé, essa dinâmica organiza o orô como um campo de forças em que o respeito mútuo e a singularidade dos entes é crucial para o equilíbrio do mundo e da comunidade de axé.     

 

Na experiência de Pai Elias, merece destaque certa cantiga entoada no momento de inserir determinada folha na boca do bicho que será cortado. Se o bicho aceitar e comer a folha, é sinal de sua disposição em compartilhar seu destino com os deuses, de passar a integrar a massa de energia e vida que é aquele orixá. No entanto, caso o bicho recuse a folha, ele não será forçado a participar do orô, sendo liberado. Independentemente do resultado dessa consulta, todos os animais dedicados ao santo devem ser tratados com o máximo zelo enquanto estiverem sob a tutela do terreiro. O santo rejeita bichos feridos ou maltratados, e pune quem os ofende. Pai Elias jamais impõe a morte como um fim em si mesmo.

Ao exemplificar essa interação, o axogun conta de várias galinhas que nunca aceitaram participar do orô e morreram de velhice no terreiro. Exemplo do respeito que Pai Elias tem por todas as formas de vida e de como ele procura assegurar que o ritual seja uma experiência compartilhada entre humanos, bichos e divindades. Trata-se de um esforço de simetria radical, que, contudo, não desconsidera a assimetria constitutiva entre as distintas categorias de entes. Para Pai Elias, o orô deve ser um ato livremente consentido[5].

 

Pai Elias descreve o axogun como sendo "aquele que corta". Sua função vai além do simples trato físico do bicho, desempenhando um papel indispensável na expansão do cosmo. O axogun não corta apenas para dividir, mas para multiplicar. Sua eficácia e desempenho são fundamentais nessa partição e distribuição existencial, além disso, seu trabalho é crítico para a proliferação cósmica e disseminação do axé. Assim, o axogun se torna um agente catalisador e propulsor, possibilitando que a força de vida se espalhe por todo o universo. Com sua faca, ele também perfura as tênues membranas (nunca barreiras, porque tecidos porosos) que separam Orun e Aiyê, fazendo o axé fluir entre os mundos.

 

Isso significa que, para o povo-de-santo, o corte está longe de ser uma liturgia ou uma simbologia, mas é, acima de tudo, um dever ancestral, uma obrigação de nutrir a comunicação e a confluência[6] entre todos os elementos do cosmo afro-brasileiro. De novo, se o povo-de-santo faz o orô, é porque o orô faz o povo-de-santo, e muito literalmente, pois sem corte não pode haver iniciação.

 

Antonio Bispo dos Santos afirma que a sociedade colonizadora foi construída a partir de um saber fragmentado, segmentado e doentio. “Esses colonialistas têm uma doença chamada cosmofobia, que é o medo do cosmo”[7]. O que a cosmofobia instaura é um outro tipo de corte, que é simultaneamente ontológico e epistemológico: os grandes divisores moderno-ocidentais natureza/cultura, humano/inumano, vida/morte, civilização/barbárie, agência/passividade e assim por diante. A controvérsia política e jurídica a respeito do abate de animais nas religiões afro-brasileiras reproduz e acentua esse tipo de corte cosmofóbico, agora no ambiente das cortes judiciais[8]


Ao pretender interditar o cosmos e as relações cosmopolíticas de matriz africana, os movimentos cosmofóbicos igualmente impõem um (re)corte branco aos modos de vida negros, inclusive ao projetar sobre eles sentidos etnocêntricos de “religião”, ao mesmo tempo em que se negam, na prática, a estender a eles os mesmos direitos constitucionais reconhecidos às demais confissões. Assim, a proposta de proibição, que, a despeito do importante precedente do STF de 2019, persiste até hoje nos ambientes legislativos, deriva de conflitos ontológicos e evidencia que há uma verdadeira guerra de mundos contra o povos de terreiros e as ontoepistemologias negras, guerra  travada na dupla fratura ambiental e colonial, para ressoar as palavras de Ferdinand[10].

 

As consequências da vedação dos cortes seriam absolutamente desastrosas para o modo de vida dos terreiros: a impossibilidade de formação de novos terreiros, de iniciação de novas pessoas-de-santo e de feitura de novos seres afro-diaspóricos. Isso limitaria a expansão do cosmo afro-brasileiro e condenaria à extinção os seres que já existem, levando ao atrofiamento dessas comunidades tradicionais e condenando à morte tanto as ontologias do povo-de-santo quanto o conhecimento tradicional a elas associado. 

     

Entremeados ao racismo religioso e racismo ambiental estão as tentativas de genocídio, epistemicídio, ecocídio e teocídio, o assassinato de divindades e entidades encantadas. Qual a reparação para a morte de um santo? Quem defende medidas desse cariz costuma saber muito bem dos seus efeitos apocalípticos para o universo do santé e, por isso mesmo, o faz.

 

Na cosmologia de terreiro, em seu combate incansável contra o desencantamento do mundo, como nos lembra elegantemente Pai Elias, tudo se "faz com", ou seja, todos os componentes do universo estão interligados e só podem permanecer em regime de co-existência e continuidade uns com os outros. Repita-se: co-existência. Aí está uma lição que a filosofia política do axé[11] tem a ensinar, e com urgência, à democracia brasileira. 

NOTAS

 1   Os termos em itálico são categorias nativas dos terreiros de Angola e Ketu. 

 2  (CLASTRES, 2017)  

 3  (GOLDMAN, 2023: 236).

 4   (TURNER,1974; 2008).

 5  Note-se que é prática corrente nos cortes consultar as entidades, que podem também não aceitar o modo como os atos foram realizados. 

 6   (BISPO DOS SANTOS, 2021).     

 7   (BISPO DOS SANTOS, 2021). 

 8   (HOSHINO E CHUEIRI, 2019).

 9   (ALMEIDA, 2013).           

 10  (2022).     

 11   (ANJOS, 2006).

PARA SABER MAIS 

ALMEIDA, Mauro W. B. Caipora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.7-28, 2013.

 

ANJOS, José Carlos Gomes dos. Os sentidos do sacrifício na religiosidade afro-brasileira. Disponível em: <https://sul21.com.br/opiniao/2015/03/os-sentidos-do-sacrificio-na-religiosidade-afro-brasileira-do-nucleo-de-estudos-da-religiao-da-ufrgs/>. 

 

____________________________ No território da linha cruzada: a cosmopolítica afrobrasileira. Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Fundação Cultural Palmares, 2006.

 

BARBOSA NETO, Edgar s; GOLDMAN, Marcio. A maldição da tolerância e a arte do respeito nos encontros de saberes. Revista de Antropologia, v. 65, 2022.

 

BISPO DOS SANTOS, Antônio. Somos da terra. Revista Pisagrama, v. 12, n.44, p. 41-44, 2015.

 

BISPO DOS SANTOS,Antônio. Palestra intitulada de "Metafísica na Rede: debate - Cosmopolítica e Cosmofobia". Realizada em 05 ago. 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lBlhkKzzHmo>.  

 

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

 

FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu, 2022.

 

GOLDMAN, Marcio. Dez gritos sobre a campanha contra as religiões de matriz africana. Catálogo Forum do cbh, 2018.

 

GOLDMAN, Marcio. Do outro lado do tempo: Sobre religiões de matriz africana. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2023.

 

HOSHINO, Thiago A. P.; CHUEIRI, Vera Karam de. As cores das/os cortes: uma leitura do RE 494601 a partir do racismo religioso. Revista Direito E Práxis, 10(3), 2019, pp. 2214–2238.

 

MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Ubu, 2018.

 

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1977.

 

TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas. Ação simbólica na sociedade humana. Niterói, RJ: Eduff, 2008.

 ___________ O processo ritual. Estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

OS AUTORES

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Pai Elias é Axogun do Ilé Asé Ojú Ogun Fumnilaiyó, mestre nos saberes das folhas e dos bichos de axé, seus fundamentos e cortes.

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Mauricio Santos é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, Omorixá do Ilé Asé Ojú Ogun Fumnilaiyó.

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Thiago A. P. Hoshino é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Pesquisador do Centro de Estudos da Constituição (CCONS) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares em Arquiteturas e Urbanismos do Sul (MALOCA/UNILA), é membro, ainda, da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO). do Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana (FPRMA) e do Abassá de Xangô e Caboclo Sultão. Integra a coordenação da coleção "Direitos dos Povos de Terreiro" e do projeto "Liberte Nosso Sagrado: desarquivando memórias da repressão e da resistência das comunidades tradicionais de terreiro no Rio de Janeiro republicano (1889-1945)".

COMO CITAR ESSE TEXTO

ELIAS, Pai; SANTOS, Mauricio; HOSHINO, Thiago A. P. Cortar o cosmo, multiplicar o axé: palavras de um axogun. Revista Coletiva, Recife, n.34, jan.fev.mar.abr.maio. 2024. Disponível em: <INSERIR LINK> ISSN 2179-1287.

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