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Alguns apontamentos sobre povos ciganos no contexto brasileiro

Juliana Miranda (IFMG)

A lua subida sobresselente. Vozeiam os ciganos, os sapos, percebem para si a noite toda. Dão festa [...]. Fazem isto sem horas, doma de cavalos e burros, entanto dançam, furupa, tocam instrumentos; mesmo alegres já tristes, logo de tristes, mais alegres (João Guimarães Rosa, “Zingarêsca”).

Os ciganos habitam o imaginário de grande parte dos brasileiros a partir de estereótipos difundidos em filmes, na literatura, na música ou em estórias populares, mas muito pouco se conhece de fato sobre os povos ciganos no Brasil, mesmo sendo uma população de tamanho considerável e de grande importância para a composição multiétnica brasileira. Esse fenômeno é consequência de políticas discriminatórias contra os ciganos, institucionalizadas pelo Estado desde o início da colonização portuguesa até o século atual e que tiveram como resultado a invisibilização dessa população. 

O negligenciamento dos povos ciganos por parte do Estado e das políticas públicas brasileiras reflete na falta de dados censitários oficiais sobre essa população, mas entidades e associações estimam que existam entre 500 mil a 1 milhão de pessoas ciganas no Brasil. Uma das principais reivindicações das lideranças e movimentos ciganos brasileiros é a inclusão da coleta de dados sobre essa população no Censo, para que possamos ter informações mais precisas sobre o número de pessoas ciganas no país.  

No Brasil, existem diversos clãs ou famílias ciganas na atualidade, cuja bibliografia e os movimentos sociais ciganos costumam agrupar em 3 grandes etnias: os Calon, os Rom e os Sinti. Esses povos vieram de diversas regiões da Europa ao longo de toda a colonização. Segundo historiadores, os primeiros ciganos a chegarem ao país foram os hoje conhecidos como Calon, vindos de Portugal, a partir de políticas de deportação da Coroa para suas colônias. O primeiro registro de envio de ciganos da Coroa Portuguesa para o Brasil data de 1574, mas a deportação de ciganos ibéricos para o país se dá de forma sistemática a partir de 1686, sobretudo para a capitania do Maranhão, como uma estratégia de expulsar de Portugal os indivíduos indesejáveis, e ocupar extensas áreas dos sertões nordestinos.

A chegada de ciganos em outras regiões do país – como Bahia e Minas Gerais - começa a aparecer na documentação histórica a partir de 1718, sempre com justificativas discriminatórias condizentes com a doutrina higienista da época. As ordens da Coroa eram que os ciganos em alguns casos fossem direcionados à África, em outros, que ficassem longe das regiões mais nobres da colônia, ocupando apenas áreas em que poderiam prestar algum serviço na dominação de territórios ocupados por povos indígenas. 

Já a chegada dos ciganos de etnia Rom e Sinti ao Brasil está ligada a momentos históricos posteriores aos Calon ibéricos. Os etnônimos Rom e Sinti são utilizados para se referir a diferentes famílias cujas histórias se ligam a vários países da Europa, e que, a partir do século XIX e ao longo do século XX, migraram para as Américas. Tal migração, diferentemente dos povos Calon, não se deu majoritariamente por políticas diretas de deportação de governos europeus, mas seguindo ondas migratórias de italianos, alemães, poloneses, russos e gregos, também motivadas principalmente por diversas formas de discriminação contra esses povos. Há também uma significativa onda migratória de ciganos Rom e Sinti a partir da década de 1940, no Brasil, em consequência da perseguição nazista aos povos ciganos na Alemanha. 

O projeto eugenista do nazismo incluía o extermínio aos povos ciganos que, assim como os judeus, deveriam ser dizimados para garantir uma nação livre do que era chamado pelos nazistas de “raças degeneradas e inferiores”. O genocídio cigano, conhecido como Holocausto Romani e também pelos termos Porrajmos (que significa ‘devoração’, na língua romani), ou Samudaripen (‘o assassinato de todos’), apesar de bem menos conhecido do que o holocausto judeu, foi extremamente grave. Estima-se que cerca de 500 mil ciganos foram assassinados em campos de concentração nazista durante a Segunda Guerra, entre um quarto e um quinto da população total de ciganos da Europa. Além da morte, ao longo do regime nazista, os ciganos foram submetidos à políticas de esterilização forçada, trabalho escravizado, prisões e retirada de pensões e direitos políticos. Em 1938, apareceu pela primeira vez a referência à “Solução Final da Questão Cigana” e, em 1942, iniciou-se a implantação dessa política pelo Estado nazista. 

Mesmo depois de chegarem ao Brasil, a perseguição estatal às populações ciganas esteve longe de acabar. Esses povos foram alvos de diversas políticas discriminatórias institucionalizadas pelo Estado, desde o início da colonização portuguesa até a primeira metade do século XX. A documentação histórica, em sua grande parte, retrata os ciganos de maneira pejorativa, como ladrões, perturbadores da ordem, vagabundos, e também atesta uma quantidade de posturas, legislações e investidas policiais discriminatórias contra as famílias ciganas, que vão desde o século XVII e perduram até o século XX. Como exemplo, podemos citar o Decreto de 1723, de Vila Rica (atual Ouro Preto), no qual os ciganos encontrados em Minas Gerais são taxados de “ladrões salteadores” e sentenciados a serem enviados para o Rio de Janeiro e posteriormente para Angola. 

Entre o século XIX e começo do XX, as investidas policiais contra acampamentos ciganos em Minas Gerais ficaram conhecida como “correrias de ciganos”, termo que aparece nos relatórios da polícia mineira e nos jornais da época, documentando que famílias ciganas eram presas, torturadas e tinham seus bens confiscados pelo simples fato de serem ciganas. No século XX, durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas, foi editado o Decreto-Lei nº. 406, de 04 de maio de 1938, que regulamentava a entrada e permanência de estrangeiros no Brasil. O decreto listava os “imigrantes indesejáveis”; dentre eles, aparece o item: “indigentes, vagabundos, ciganos e congêneres”. Todas essas investidas estatais contra os povos ciganos podem ser enquadradas no que se entende por “racismo institucional” ou, para utilizar um termo reivindicado por liderança ciganas brasileiras para se referir à discriminação específica aos ciganos, “anticiganismo”. 

Essa política estatal que historicamente segue a lógica de “manter os ciganos em movimento”, expulsando-os de um local para o outro, contribuiu para o modo de vida itinerante de muitas famílias ciganas, e várias até hoje mantêm uma tradição muito forte de deslocamentos. É importante pontuar, portanto, que esse “ethos nômade” dos ciganos não se trata de uma mera escolha, mas sim de uma consequência das condições históricas de discriminação e expulsão. Por outro lado, um forte equívoco ainda paira sobre os ciganos, até mesmo por parte de agentes do Estado: de que a identidade cigana está necessariamente ligada ao nomadismo. Temos hoje, no Brasil, milhares de famílias fixas em residências ou em territórios coletivos, e a luta por um território reconhecido pelo Estado é inclusive uma reivindicação de muitas famílias ciganas atualmente.   

O histórico persecutório do Estado em relação aos povos ciganos só passou a apresentar sinais de reversão a partir do final do século XX, tendo como impulso inicial a incorporação das minorias étnicas como sujeitos de direitos na Constituição Brasileira de 1988. O Decreto nº. 10.841, de 25 de maio de 2006, que criou o Dia Nacional do Cigano, a ser comemorado no dia 24 de maio, é considerado um importante marco no reconhecimento dos povos ciganos como categoria identitária, uma vez que, pela primeira vez, esses povos são citados nominalmente de maneira positiva em uma normativa do Estado brasileiro. Atualmente, os povos ciganos são reconhecidos oficialmente pela legislação brasileira como Povos Tradicionais, sendo amparados pela ampliação desse conceito, instituída pelo Decreto nº. 6040/2007, que define a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. 

Já fui na divisa de São Paulo a cavalo. Já fui à Goiás a cavalo. Diamantina, Minas Novas, Turmalina, Itamarandiba, na Bahia já fui a cavalo, já andei tudo a cavalo. Já rodei Espirito Santo, Valadares, Manhumirim, Teófilo Otoni, Itambacuri, já andei tudo, rodei tudo. Ubá, Tocantins (MG), Lorena, já rodei tudo. Esse mundo e um pedaço do outro eu já rodei (Custódio Amaral, cigano calon, Conselheiro Lafaiete, MG).

 Os ciganos Calon em Minas Gerais

Diante da diversidade sociocultural dos povos ciganos no Brasil, seria impossível apresentar um panorama geral de suas características culturais e seus modos de vida. O que pretendo aqui é compartilhar um pouco da minha pesquisa, fruto do trabalho de campo entre famílias ciganas Calon de Minas Gerais, com as quais convivo desde 2013. Minas Gerais possui comunidades ciganas Calon espalhadas por grande parte de seu território, mas minha pesquisa contemplou principalmente comunidades residentes em Belo Horizonte e Região Metropolitana. 

Essas comunidades vivem em territórios ou “acampamentos”, como eles próprios chamam, em referência aos tempos passados, em que viviam em situação de total itinerância, mesmo que hoje em dia essas comunidades se encontrem fixas há uma década ou mais. Grande parte desses acampamentos em Minas Gerais são conectados entre si por laços de parentesco, compadrio, negócios, por relações de casamento, ou seja, os acampamentos não são unidades fechadas em si mesmas, eles formam uma espécie de rede de ciganos conhecidos e/ou parentes uns dos outros. 

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Figura 1 - Acampamento cigano Calon do município de Ibirité, 2018. Foto: Juliana Campos.

 

Casamento e Família

 

Para estas comunidades ciganas, a vida em família é um aspecto central, e os parentes próximos sempre vivem perto uns dos outros. Quando um filho se casa, ele normalmente constrói sua nova moradia com a esposa ao lado da casa de seus pais. O casamento, por sua vez, é uma instituição fundamental na cultura cigana e se dá preferencialmente entre ciganos de famílias conhecidas. Para eles, casar é uma escolha coletiva e as tratativas de um casamento envolvem não apenas os noivos, mas as famílias de ambos. Cabe ressaltar que, mesmo com o alto grau de intervenção, sobretudo dos pais, nos arranjos matrimoniais, os noivos precisam sempre estar de acordo com aquela tratativa, senão o casamento não acontece. 

As festas de casamento dos Calon são grandes acontecimentos, que duram em média uma semana e mobilizam uma grande quantidade de famílias ciganas para o acampamento anfitrião. Durante os vários dias da festa, há um grande baile de forró, em que os casais dançam e os vestidos rodados, coloridos e brilhantes das mulheres roubam a cena. Quase toda família cigana possui, além de sua moradia (que pode ser uma barraca ou casa de alvenaria) outra barraca mais simples, para que consigam transportá-la com mais facilidade nessas viagens rápidas. O espaço reservado para as festas nos acampamentos anfitriões já costumam prever, além do barracão em que ocorrerá a comemoração, uma área livre para receber as barracas das centenas de convidados vindos de outros lugares. Desse modo, o casamento sempre proporciona uma grande movimentação das famílias ciganas por essa rede de comunidades no interior do estado.

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Figura 2 - Festa de casamento Calon, 2013.  Acampamento em Mateus Leme, MG. Foto: Juliana Campos. 

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Figura 3 - Forró durante o casamento cigano. Acampamento de Mateus Leme, 2013. Foto: Juliana Campos.

“Catira”: um modo de negociar

Entre os Calon mineiros, a “catira” ou “breganha” representa uma das principais fontes de renda das famílias. Os termos “catira” ou “breganha” são utilizados pelos Calon para designar uma gama variada de transações entre dois ou mais parceiros – que pode se dar entre ciganos ou entre ciganos e “gajons” (não ciganos) – envolvendo um extenso leque de coisas. Praticamente tudo pode fazer parte de uma “catira”: cavalos, galinhas ou qualquer animal, carros, aparelhos de som, celulares, eletrodomésticos, dinheiro. Ela pode começar com dois carros, mas ninguém sabe determinar o que mais irá entrar e sair, tudo dependerá da negociação entre os parceiros. Além disso, a “catira” pode envolver a permuta simples de uma coisa por outra, ou de duas coisas por uma; pode se dar por uma troca de mercadorias e mais uma “volta” (o retorno de um valor em dinheiro); ou ainda resultar em uma transação direta de uma mercadoria por moeda. 

As mulheres fazem “catirinhas”, negociações menores, e sempre no interior dos acampamentos. Os homens fazem “breganhas grandes”, aquelas cujas transações envolvem itens mais valiosos (como carros, cavalos), onde circulam uma maior quantidade de dinheiro, e, no geral, apenas eles “catiram” fora do acampamento. Muitos fazem viagens para “breganhar”: pequenas ou longas, para cidades próximas ou afastadas. 

 

Linguagem: o “chibi” 

Os ciganos no Brasil possuem línguas próprias, além do português. No caso dos Calon, a linguagem é o “chibi”. Trata-se de um repertório lexical com palavras derivadas do romani e do caló, línguas faladas por ciganos da Península Ibérica. No Brasil, eles mantêm a estrutura do português acrescida de diversas palavras, adjetivos, substantivos e verbos em “chibi”. A maioria dos ciganos compartilha a ideia de não ensinar sua língua para os não ciganos, como uma forma de proteção. Isso ocorre porque a linguagem própria os permite uma comunicação incompreensível aos não ciganos, o que os ajuda em diversas situações em que se sentem ameaçados.

Lutas por direitos

Provavelmente, todos os acampamentos ciganos presentes em Minas Gerais irão contar histórias parecidas sobre o tratamento dado pelo poder público nas últimas décadas: expulsões dos acampamentos de terrenos públicos ou até mesmo do município, batidas policiais violentas dentro das barracas, dentre outras formas de opressão e omissão sobre suas existências. Nos últimos anos, no entanto, vemos aparecer várias lideranças ciganas em busca de lutar por seus direitos e por melhores condições de vida para essas populações. No caso de Minas Gerais, tem se destacado entre as lideranças Calon a luta pelo reconhecimento e regularização de seus territórios enquanto territórios tradicionais. 

Minas Gerais é vista como um caso exemplar desse tipo de pleito no Brasil, já tendo pelo menos 3 territórios ciganos regularizados ou em processo de regularização. Trata-se de uma demanda por política pública ainda muito incipiente no país, se comparada, por exemplo, ao pleito de reconhecimento territorial por parte dos povos indígenas ou quilombolas. No entanto, é fundamental que se avance a luta dos povos ciganos por políticas públicas de reconhecimento pela sua contribuição para a riqueza cultural do país e por reparação histórica devido ao racismo institucional sofrido desde os tempos coloniais.  

NOTAS

[1] Conto: Zingarêsca, em: Rosa, João Guimarães. Tutameia: terceiras estórias. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 228).

[2]  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm 

PARA SABER MAIS 

CAMPOS, Juliana M. S. O Nascimento da Esposa: movimento, casamento e gênero entre os calons mineiros. Tese de Doutorado em Antropologia. Belo Horizonte: UFMG, 2020.

GUIMARAIS, Marcos Toyansk S. O extermínio de ciganos durante o regime nazista. História e Perspectivas. Uberlândia, 2015.

SEPPIR. Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos, 2013. Disponpivel em: <https://www.icict.fiocruz.br/sites/www.icict.fiocruz.br/files/GuiaCiganoFinal.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2024.

TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Belo Horizonte, Crisálida, 2009. 

A AUTORA

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Juliana Miranda Soares Campos é mestre e doutora em antropologia, pesquisadora sobre povos ciganos em Minas Gerais e Professora EBTT do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG).

COMO CITAR ESSE TEXTO

CAMPOS, Juliana M. Soares. Alguns apontamentos sobre povos ciganos no contexto brasileiro. Revista Coletiva, Recife, n.34, mar.abr.maio. 2024. Disponível em: <> ISSN 2179-1287.

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