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04 de junho de 2018

"O racismo ambiental nos espaços de lazer: os parques urbanos e a dimensão socioambiental de um direito"

Juliane Barros

Até que os direitos humanos básicos 

Sejam igualmente garantidos a todos

Independente de raça

Haverá uma guerra. 

Até o dia em que o sonho da paz reinante

A cidadania planetária 

As regras de moralidade internacional

Permanecerem como uma ilusão transitória a ser perseguida 

Mas nunca alcançada

Haverá guerra por toda parte".

 

Bob Marley

Os espaços públicos destinados ao lazer, como os passeios públicos, surgiram no final do séc. XVIII e eram utilizados pela classe nobre para encontros e caminhadas, tendo como prioridade as funções estética, recreativa e social. Com o passar do tempo, os passeios públicos foram designados parques e incorporaram as características que conhecemos nos dias atuais. Na cidade do Recife, o primeiro parque surgiu durante a década de 1930 e os demais, só na década de 1980, como descreve a professora Ana Rita Sá.

 

Para a professora, o estímulo à socialização dos habitantes da cidade é uma das funções mais importantes do parque, que deve estar aberto à coletividade sem oferecer distinção entre classe ou raça. Porém, observa-se que tanto a localização quanto a utilização dos parques variam de acordo com as condições socioeconômicas da população local ou, em outras palavras, de acordo com o modo de vida peculiar de cada grupo social e racial, isto é, ricos e pobres, negros e brancos. Esses aspectos relevantes conduzem o presente ensaio, no sentido de apresentar o racismo numa perspectiva diferenciada, a partir do acesso aos espaços públicos de lazer, apresentando o desenvolvimento do racismo ambiental como uma das suas ramificações no espaço urbano.

 

Tomando como base o conceito de racismo ambiental como um dos desdobramentos do racismo, observamos como essa ideologia de superioridade étnica consegue manter a população negra afastada de espaços públicos de lazer, como os parques. Nesse sentido, constata-se que o racismo traz em si a questão da ocupação do território, muito presente nos processos de gentrificação, ou seja, de enobrecimento urbano.

 

No Recife, quase todos os parques estão localizados nas áreas nobres da cidade, onde os habitantes têm poder econômico superior ao da maioria da população e o índice de moradores negros é baixíssimo. Por esse ângulo, os parques acabam sendo uma das formas encontradas pelos diferentes agentes públicos para promover a diferenciação no espaço urbano.

 

Há, ainda, um cuidado especial atribuído à gestão dos parques localizados em áreas valorizadas e de alto valor econômico em detrimento dos parques localizados nos bairros populares. A estes últimos não são destinados investimentos à sua manutenção e eles acabam abandonados, tornando-se espaços reservados à violência urbana.

 

Outro problema é a ausência dos parques nas áreas periféricas, o que leva os moradores a socializarem os pequenos espaços das praças (quando há) e as academias públicas populares de ginástica, que têm sua finalidade redirecionada pela comunidade, a fim de atender às demandas de todos os segmentos. Isso quando a comunidade consegue ser contemplada pelo projeto, o que não é o caso de muitos bairros dos subúrbios, localizados nas áreas dos morros da cidade.

 

Em suas pesquisas sobre os parques do Recife, Ana Rita Sá aponta aspectos relevantes à melhoria na gestão dos equipamentos públicos de lazer, analisando as concepções de projetos paisagísticos, suas funções e usos, além de identificar incoerências nos projetos de planejamento urbano nos espaços livres públicos, sobretudo quando relacionados a áreas com habitações.

 

Tais incoerências são percebidas a partir dos processos de valorização das áreas verdes apenas com o objetivo de enobrecer o espaço, como estratégia para favorecer a reprodução capitalista, que justifica um padrão de vida tido como ideal, mas do qual, diante da realidade econômica, somente uma pequena parcela da população da cidade pode desfrutar diariamente.

 

Considerando-se que o ambiente é o lugar onde vivemos e exercemos atividades cotidianas e que sua qualidade é de extrema importância para nossa saúde e qualidade de vida, todos temos direito a ambientes saudáveis nos variados aspectos: físico, social, cultural, ambiental. Contudo, a relação econômica imposta pelo sistema capitalista permite que um equipamento urbano como o parque sirva de mecanismo de valorização de uma região, cujo espaço de bem estar diário, com possibilidade de realização de atividades esportivas e de lazer, seja apenas em teoria um espaço democrático, mas, na prática, atenda apenas às pessoas pertencentes aos grupos sociais mais abastados.

 

Posto isso, podemos também discutir a forma como as áreas urbanas são usufruídas pelos diversos grupos sociais na cidade, ao compreender a relação entre o direito ao lazer nos parques urbanos e o racismo ambiental. Nesse sentido, pensar a partir desses aspectos comuns é fundamental para compreender alguns problemas enfrentados pela população negra.

 

O direito ao lazer e o racismo ambiental

 

A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxe em seu Art. 6º a garantia do direito ao esporte e ao lazer e, no Art. 217, §3º, afirma que “o Poder Público incentivará o lazer como forma de promoção social”. Apesar da garantia constitucional desse direito, o Estado não implementou políticas que dimensionem espaços públicos destinados ao esporte e ao lazer para toda a cidade. As cidades, por sua proximidade com a sociedade, são as principais protagonistas do desenvolvimento urbano, devendo garantir uma gestão democrática para a sociedade civil através da promoção de equipamentos públicos de lazer que incentivem uma cultura de valorização do bem comum.

 

O direito ao meio ambiente também faz parte da doutrina urbanística, revelando-se social na medida em que integra a responsabilidade do Poder Público, pois é direito de todos e essencial à qualidade de vida, para assegurar a saúde, o bem estar das pessoas, as condições de seu desenvolvimento e, sobretudo, para assegurar o direito fundamental à vida.

 

O racismo ambiental se expressa quando há deficiência do acesso de determinados grupos sociais a garantias de direitos básicos fundamentais. Historicamente, a  expressão racismo ambiental surgiu nos Estados Unidos, durante a década de 1980, após o resultado de uma pesquisa que demonstrou que bairros desprovidos de infraestrutura e habitados pela população negra eram sempre utilizados para descarte de lixo tóxico. Concluiu-se que a raça seria o fator determinante para a alocação dos lixos perigosos em áreas urbanas. Além disso, o fator raça revelou-se mais fortemente correlacionado com a distribuição locacional dos rejeitos perigosos do que o próprio fator baixa renda.

 

Diversos protestos por justiça social e apelos pelo fim do racismo institucionalizado marcaram esse período, quando observou-se que raça seria o parâmetro decisivo para que alguns bairros recebessem mais investimentos públicos em detrimento de outros, relegados ao tratamento desumano.

 

O racismo ambiental deve-se também ao racismo institucional, responsável por manter um sistema que camufla o racismo para que as pessoas sofram sem perceber a que tipo de violência estão expostas, permanecendo-se a ordem hegemônica, que orquestra o sistema para manutenção das hierarquias de poder e da negritude como subalternidade.

 

Quando não há garantia de direitos, além de outras questões, surge o problema das relações de poder estabelecidas pelo processo histórico. Nos espaços públicos de lazer esse problema culmina em disputas territoriais entre grupos sociais distintos, acirradas pela ausência de políticas públicas de lazer, sobretudo, quando nos referimos ao uso dos parques, o que acarreta desequilíbrios nas relações sociais. É nesse contexto que surge o racismo ambiental nos espaços de lazer. Quando os parques não oferecem profissionais habilitados para o direcionamento e orientação das atividades, as ofertas nesses espaços acabam favorecendo apenas quem já dispõe de uma certa estrutura de uso, como no caso da orientação personalizada para atividades corporais (personal trainers) ou materiais necessários para prática da maioria dos esportes, como por exemplo vôlei, tênis ou basquete, cujo a prática necessita tanto de instrumentos como de um instrutor para orientação. Sem isso, tais modalidades dificilmente serão absorvidas pela comunidade de modo geral.

 

A relação do direito ao lazer com o racismo ambiental apresenta-se também quando o fraco poder aquisitivo de um grupo delimita normas de consumo, que por sua vez podem orientar as despesas, assim, atividades de lazer que ultrapassem tais normas de consumo dificilmente serão praticadas. Ou seja, as práticas físicas, de esporte e lazer, só seriam possíveis com a implementação de uma política pública inclusiva que atendesse à democratização desses espaços oferecendo condições de socialização. Dessa forma, mesmo que os parques disponham de quadras esportivas para a prática (gratuita) de modalidades esportivas, elas serão utilizadas apenas por quem possui meios financeiros para usufruir, caso o Estado não oferte as demais condições.  

 

No Brasil, os bairros predominantemente habitados pela população de baixa renda são, em geral, carentes de espaços públicos de lazer efetivamente implantados. No Recife, os bairros como São José, Mangueira, Afogados, Dois Unidos, Passarinho e Linha do Tiro são alguns exemplos de localidades desprovidas de bens ambientais, como água, saneamento básico, assistência médica e lazer.  

 

Em alguns bairros, há apenas uma academia de ginástica aberta, uma quadra poliesportiva e uma pista de cooper, que contam, em geral, com um ou dois professores de educação física responsáveis por ministrar, duas vezes por semana, aulas de ginástica, através de um projeto financiado pela Secretaria de Saúde. O projeto, contudo, não atende às demandas de lazer e recreação. Ademais, em muitos casos, essas academias não possuem infraestrutura e vegetação, não permitindo seus usos efetivos para contemplação ou lazer, limitando-se apenas à prática de atividades físicas em comunidades extremamente populosas.

 

As ruas também não são mais lugares tranquilos para os jogos populares como futebol, bola de gude e amarelinha. Com a frequente passagem dos carros, fica praticamente impossível usufruir da “rua de casa” para as brincadeiras saudáveis e seguras.

 

Na ausência de espaços de lazer, os jovens e crianças readaptam os espaços existentes às suas necessidades, ocupando os espaços urbanos, ruas e praças do seu jeito, transformando, por exemplo, as pistas de corrida em pistas de bicicleta e skate e, quando em lugares próximos aos rios e canais, a diversão é saltar das pontes durante as cheias da maré. Atividades evidentemente perigosas, mas que proporcionam diversão e ocupação do tempo livre, na ausência de práticas de lazer seguras e adequadas.

 

Toma-se isso como o resultado de um processo colonial, manipulado pelo racismo estrutural e institucional, que reverbera no meio ambiente e nas formas de ocupação dos espaços. O que significa dizer que raça é um elemento estruturante da nossa sociedade, onde as estruturas de poder que regem os sistemas de gestão são majoritariamente formados por pessoas brancas que na maioria das vezes desconhecem a realidade da periferia. Nesse sentido a política de planejamento urbano do Recife parece ser organizada para inibir a presença de determinados grupos aos espaços mais valorizados e consequentemente “reservados” a quem possui melhor poder aquisitivo e de mobilidade.

 

No caso dos parques, a maioria está concentrado nas áreas mais valorizadas economicamente e não há projetos de inclusão social nas políticas públicas de esporte e lazer, sendo a mobilidade um fator de exclusão, pela dificuldade de acesso dos grupos periféricos, que tentam utilizar esses espaços distantes de suas casas, pela carência de encontrar lugares em seus bairros com o mesmo perfil dos que buscam. Próximo a esses parques não há estações de metrô e as linhas de ônibus são escassas, prejudicando o acesso a esses espaços de lazer pela população que mora mais distante. Por esse ângulo, o racismo ambiental implica condições desiguais de acesso ao lazer através da falta de infraestrutura e investimentos em espaços e equipamentos, sobretudo, nas periferias da cidade, onde a cor da pele das pessoas é mais escura.  

 

Durante muitos anos, a população negra do Brasil ficou à margem da sociedade, sendo proibida de frequentar escolas e igrejas, de expressar sua cultura e religiosidade, sendo obrigada a construir seus espaços próprios para o desenvolvimento de suas atividades culturais, religiosas e de lazer, ainda sob o olhar violento e repressor do Estado. Fato que ainda reverbera no uso e ocupação dos espaços públicos por essa população.

Ainda hoje, pouco discutimos sobre o papel da população negra na formação das cidades; não discutimos como os espaços de lazer são usufruídos por essa população, sua visão de mundo em relação aos lazeres e ao meio ambiente. Sabe-se através dos estudos culturais, que são permeados pela ludicidade, como lugares de trocas e da vida coletiva, como formas de acesso ao lazer festivo através dos maracatus e sambas tocados, cantados e dançados. Nesse sentido, é necessário compreender que os parques são capazes de oferecer suportes lúdicos para uma educação mais humanizada num contexto não-racista ambientalmente.

 

Conclusão

 

Mesmo com a ampliação do debate sobre o direito à cidade, perdeu-se a oportunidade de tornar efetiva a ideia dos parques como espaços de integração da cidade, para atender não só aos moradores dos bairros contíguos, mas integrá-los aos demais bairros, por meio da criação de programas que contemplem as manifestações recreativas e culturais de lazer que valorizem suas raízes e identidade étnica e cultural.

 

Dessa maneira, o racismo ambiental incorporado a essa discussão implica um impacto desproporcional dos perigos ambientais e a negação dos direitos humanos básicos, em áreas urbanas e rurais, o que precariza as condições de habitabilidade e expõe as populações à situação de iniquidade. Este problema vem ocorrendo em diferentes lugares, no Brasil e no mundo, e atinge principalmente comunidades e populações negras e indígenas.


Assim, ao evidenciar-se a omissão do poder público quanto às suas obrigações constitucionais, recai contra o Estado a responsabilidade objetiva, fazendo-se necessária a ampliação desse debate no meio jurídico, para que as injustiças possam ser sanadas em uma sociedade que ainda discrimina, oprime e cerceia direitos e garantias fundamentais. As políticas públicas de inclusão social, participativas e democráticas são a fórmula para vencermos a barreira imposta pelo racismo ambiental nas cidades.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Constituição (1988). Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03 jan. 2018.

 

BRASIL. Lei 12 228 de 20 de Julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm Acesso em: 06 Mar. 2018.

 

DIARIO DE PERNAMBUCO. As gaivotas da rua azul. Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2017/03/17/interna_vidaurbana,694674/as-gaivotas-da-rua-azul.shtml Acesso em: 09 maio 2017.

 

GOMES, Marcos Antônio Silvestre. Os parques e a Produção do Espaço Urbano. Jundiaí: Paco Editorial, 2013.

 

SÁ CARNEIRO, Ana Rita; MESQUITA, Liane de Barros. Espaços Livres do Recife. Recife: Prefeitura da Cidade do Recife / Universidade Federal de Pernambuco, 2000.

 

SOUZA, Williams de. Caracterização da cobertura arbórea dos parques urbanos de Recife-PE. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Ciência Florestal. Recife: UFPE, 2011.

PARA SABER MAIS

A AUTORA

Juliane de Lima Barros é advogada, formada em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (2008) e em Direito pela Faculdade Estácio do Recife (2014). É especialista em Administração pública pela mesma Faculdade e mestranda em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente, compõe a Comissão de Direitos humanos da OAB-PE e ministra palestras sobre Direito ao Lazer e Racismo Ambiental.

COMO CITAR ESSE TEXTO

BARROS, Juliane. O racismo ambiental nos espaços de lazer: os parques urbanos e a dimensão socioambiental de um direito.  Coletiva, Recife, n. 22, Coletiva. jan.fev.mar.abri 2018. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-mulheres-negras-n22-artigo-o-racismo-ambiental-nos-espacos-de-lazer-os-parques-urbanos. ISSN 2179-1287.

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