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Consórcio agroecológico de plantas em propriedade de agricultores familiares assessorados pelo Centro Sabiá, em Cumaru-PE. Foto: Júlia Rosas.
Especial
O que será do clima no Sertão?
Produzido por: Pedro Silveira, Glória de Andrade e Aline Cavalcanti.

Estamos acostumados a imaginar o semiárido nordestino a partir de imagens de secas severas e pobreza extrema, sofrimento em uma paisagem inóspita. Um ambiente desértico com habitantes cujo estereótipo alterna entre vítimas e bravos resistentes. “O sertanejo”, disse Euclides da Cunha, “é antes de tudo, um forte”. Entretanto, uma viagem pelos sertões nordestinos contemporâneos nos mostram outras imagens. O clima semiárido e as chuvas intermitentes estão lá, a pobreza ainda está lá, mas há muito mais. 

A vegetação da caatinga, por exemplo, que nos períodos secos tem um aspecto acinzentado e agreste, ao receber um ou dias de chuva sofre uma transformação repentina, com brotos verdes e flores coloridas despontando por todos os lados, visitadas por abelhas nativas e outros animais. As chuvas no semiárido são intermitentes, mas a pluviosidade, ou seja, a quantidade de água que cai quando chove, é muito grande, o que indica que uma forma interessante de ter água disponível é armazenar a água das chuvas, já que mesmo os rios do sertão, em sua maioria, são sazonais, tem água apenas uma parte do ano. Há áreas do semiárido que são mais secas, outras mais úmidas. A vegetação da caatinga também não é uniforme, apresentando variações conforme os microambientes. A população  sertaneja, por sua vez, também é muito heterogênea. Nas zonas rurais há áreas de fundo de pasto, onde os moradores desenvolveram técnicas de manejo do rebanho de caprinos de maneira extensiva e integrada com a paisagem; há áreas antigas criação de gado bovino, em grandes, médias e pequenas propriedades, resultado atual de um período colonial que envolveu a criação de latifúndios, expulsão e subordinação de grupos indígenas e negros. A população sertaneja é em grande medida resultado dos movimentos destas populações afro-indígenas pelo território, e por isso encontramos muitas comunidades indígenas e quilombolas espalhadas pelo semiárido. A produção de gado bovino, bem como o plantio extensivo de algodão no século passado deixou um grande rastro de destruição da caatinga e promoveu desigualdades sociais.

O semiárido contemporâneo tem também muitas cidades médias e grandes, como Campina Grande, na Paraíba, Caruaru e Petrolina, em Pernambuco, Mossoró, no Rio Grande do Norte, além da capital do Piauí, Teresina. Essas cidades apresentam um afluxo populacional crescente e são referências para as localidades menores da região. Agregam também o trabalho educacional e criativo de universidades e centros de pesquisa criados em períodos recentes, além do trabalho de diversas organizações não-governamentais. Essas cidades apresentam também o desafio de manter o bem-estar de uma população concentrada, de características urbanas, num contexto de pouca disponibilidade de água potável.

O sertão Nordestino tem então uma riqueza socioambiental inestimável, que é traduzida por seus ritmos musicais, estéticas visuais e formas narrativas. Ao mesmo tempo, tem o desafio de produzir um modo próspero de viver em meio a uma especificidade climática, que mostra com clareza a inviabilidade de um modelo de desenvolvimento industrial e de infra-estrutura insustentável, o mesmo aplicado, com críticas, em outros locais. 

Os projetos de desenvolvimento com uso intensivo de recursos naturais e energia foram e são motor de grande parte das políticas públicas para o semiárido nordestino. São as obras de “combate à seca” que em grande parte privilegiam os grandes proprietários de terras, os grandes projetos de agricultura irrigada para o agronegócio, a indústria baseada no consumo de lenha, a indústria têxtil que polui os cursos d’água, os projetos termelétricos, hidrelétricos e nucleares, e ainda grandes obras de infraestrutura, como a Transposição do Rio São Francisco.

No entrecruzamento de projetos de desenvolvimento insustentáveis e modos de vida humanos e não-humanos precarizados, agregam-se as previsões de como as transformações globais no clima se manifestarão na região. A Revista Coletiva entrevistou alguns pesquisadores e profissionais que atuam no semiárido nordestino para entendermos as implicações das mudanças climáticas na paisagem semiárida do Brasil.

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Rio São Francisco. Foto: Pedro Silveira.

As previsões de mudanças climáticas no semiárido

Sertanejo da região do Pajeú e  Coordenador da ONG Centro Sabiá, Alexandre Pires mostra-se preocupado com a situação climática no sertão. “Quando converso com os agricultores e agricultoras, muitos falam que a temperatura nos roçados está mais quente, que não se tem mais chuvas como antigamente”. Ele sabe o que diz. Mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Alexandre trabalha desde 2012 com assessoria agroecológica no semiárido nordestino. E completa: “Vivemos de 2011 a 2017 uma seca sem precedentes na história.Embora não se tenha relato de grandes migrações ou de mortes por fome, muito se perdeu de lavouras e rebanhos, e muitas comunidades entraram em colapso no abastecimento. Por outro, lado, nas últimas semanas, presenciamos enchentes que inundaram cidades como Serra Talhada, Afogados da Ingazeira em Pernambuco e Santana do Ipanema em Alagoas”.

As preocupações de Alexandre Pires são compartilhadas pela meteorologista Francis Lacerda, pesquisadora do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA). Em sua pesquisa de doutorado, defendido em 2015 na Universidade Federal de Pernambuco, Francis analisa séries temporais de dados de chuvas e de temperatura de seu estado nos últimos 50 anos. Suas conclusões não são animadoras, pois indicam a tendência a secas mais severas, diminuição de chuvas e aumento das temperaturas.

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Roçado em Curaçá-BA. Foto: Pedro Silveira.

Estrada rural em Curaçá-BA. Foto: Pedro Silveira.

Chuvas torrenciais concentradas em um curto espaço de tempo, maior frequência de dias secos consecutivos, mudanças nas características da vegetação, diminuição da disponibilidade de águas, enfim, as previsões dos efeitos de mudanças no clima indicam uma agudização das características próprias do clima do semiárido. “Antes de esperar aumentos de temperatura podemos esperar secas mais severas de maior duração e com maior frequência”, afirma o biólogo Felipe Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que tem pesquisado possibilidades de restauração do bioma caatinga.

“O clima da caatinga, marcado pela sazonalidade, pode se tornar ainda mais sazonal, com consequências em cascata para a vida silvestre e sociedades humanas”.

Felipe Melo.

Uma questão importante levantada por Felipe Melo é a relação entre as transformações globais na temperatura e os processos regionais de transformação das paisagens. “Não sabemos o quanto um aumento global de 0,5 graus na temperatura média da Terra afeta o clima em regiões específicas, ainda”, diz ele. “Não devemos esperar mudanças tão rápidas na escala local, mas precisamos olhar para o modelo de desenvolvimento que adotamos nessa região, que não favorece um aumento da resiliência de sistemas socioecológicos, mas ao contrário, vulnerabiliza tanto as sociedades como o ecossistema onde estão”.

Desertificação e desmatamento 

Um conceito-chave para pensar a emergência climática no semiárido é a desertificação. Segundo o texto da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, trata-se da “degradação da terra nas áreas áridas, semiáridas e subúmidas secas, resultantes de vários fatores, incluindo as atividades climáticas e as ações humanas”. Esse mesmo documento afirma que 70% de todas as áreas secas de todo o mundo estão degradadas. 

Felipe Melo sugere que a desertificação que presenciamos hoje no semiárido é devida às formas atuais e passadas de pensar o desenvolvimento de seu território. “Sobrepastoreio, exaustão de nutrientes, lixiviação do solo superficial e salinização”, afirma, “são todos processos relacionados a um tipo de uso intensivo que não é suportado pela Caatinga e tem levado à sua desertificação. O efeitos adicionais da mudanças climáticas vão aprofundar esses efeitos”.

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Viveiro de mudas na comunidade Sombra da Quixaba, em Curaçá-BA. Foto: Pedro Silveira.

A geógrafa e pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Edneida Cavalcanti, também coloca a desertificação no centro das preocupações a respeito do semiárido. “Quando eu penso em mudanças climáticas no semiárido o tema necessariamente dialoga com a questão dos processos de desertificação e de perda de biodiversidade, e o ponto de interseção é a questão do desmatamento. Quando se desmata você tem uma vulnerabilização do solo e você perde biodiversidade”. Ela acrescenta ainda que o desmatamento faz com que o território do semiárido não apenas sofra as consequências das mudanças globais no clima, mas também contribua para essas mudanças. “A partir do momento em que eu desmato eu também estou entrando na conta das mudanças climáticas, eu estou deixando de ter áreas que captam CO2 e, em muitos casos, eu também estou emitindo para a atmosfera por conta das queimadas”, diz Edneida.

Felipe Melo continua: “A Caatinga é um bioma que tem sido usado pelas pessoas há muito tempo. Houve diversos ciclos econômicos, primeiro o gado, que ajudou a povoar a Caatinga de gente que se empregava basicamente na cadeia produtiva dos derivados do gado. Portanto, a Caatinga primeiro serviu de pasto natural, o que deve ter modificado sensivelmente sua característica como vegetação. Depois, novos ciclos foram se somando com usos mais intensivos da terra como o ciclo do algodão, que desmatou extensas áreas”. Mais recentemente Felipe destaca “grandes polos de pressão intensa”, como a produção de gesso na Chapada do Araripe, a fruticultura irrigada no São Francisco, as olarias no Ceará e Rio Grande do Norte, a soja na Bahia e Piauí e o pasto nas zonas mais próximas à Mata Atlântica.

 

Os pesquisadores identificam regiões específicas do semiárido, onde se sente de maneira mais drástica o processo de desertificação, os chamados núcleos de desertificação. O agrônomo João Suassuna, também pesquisador da Fundaj, conta que  “antigamente se conheciam quatro núcleos, um em Gilbués no Piauí, um em Irauçuba no Ceará, um em Cabrobó em Pernambuco, e um no Seridó no Rio Grande do Norte. Agora já começa a se falar em outros núcleos no Vale do São Francisco, coisas que não existiam anteriormente.” Em Gilbués, por exemplo, as causas da desertificação são atribuídas à remoção da vegetação, ao pastoreio do gado bovino e à mineração passada de diamantes, atividades realizadas em uma região muito sensível da caatinga. Já sertão do Seridó atribui-se à contínua retirada de lenha, principalmente para a indústria de cerâmica. Enquanto isso, na região do São Francisco Pernambucano, ocorre a salinização do solo pela agricultura irrigada em grande escala. 

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Mineração de gipsita no pólo gesseiro do Araripe. Foto: Sindugesso-divulgação.

Francis Lacerda, em sua pesquisa, ficou especialmente impressionada com o aumento da temperatura na região da Chapada do Araripe, em Pernambuco. Segundo ela, o município de Araripina já aumentou aproximadamente 5 graus na temperatura média, num período de 50 anos. “O que acontece no Araripe? É uma ação da mineração do gesso que tem dizimado a caatinga”, conta Francis. O polo gesseiro do Araripe é responsável por 95% do gesso consumido no Brasil, envolvendo cerca de 600 empresas. Seus impactos são enormes , já que a maior parte da energia utilizada no processamento do gesso é proveniente de lenha cortada diretamente da caatinga.  Segundo Edneida Cavalcanti, “há uma crise energética no Nordeste, até alguns anos atrás 30% da energia produzida no Nordeste era com lenha e carvão. Então você tem uma série de atividades em que, por ser uma matéria-prima barata, ela é utilizada. Desde o polo de confecção, uma parte das lavanderias funciona à base de lenha, até pizzarias, padarias… e do polo gesseiro”.

Uma das formas de modificar a matriz energética no sertão é o uso de energias renováveis, como a energia eólica e a energia solar. Entretanto, tal modificação, segundo Francis Lacerda, deve vir acompanhada de uma preocupação com a desertificação, a hidrologia e a sustentabilidade socioambiental das populações sertanejas.

 

“Não é inteligente fazer grandes usinas de energia solar desmatando a caatinga [...]

É preciso levar em conta o prognóstico de que se nós dizimarmos a caatinga, nós não teremos mais água no solo, simples assim. Precisamos produzir energia com inteligência, com sensatez e com amor, com uma nova visão de mundo”.

Francis Lacerda

Crise hídrica

A disponibilidade de água no semiárido nordestino depende fundamentalmente dos períodos irregulares de chuva. A chuva é a fonte das águas dos lençóis freáticos, que brota das nascentes dos riachos temporários, e é ela que abastece os açudes e outros reservatórios. “O desmatamento não tem permitido que as águas das chuvas consigam se infiltrar e reabastecer os lençóis freáticos”, alerta Alexandre Pires. A solução de se investir na retirada de água direto do lençol freático também é criticada por ele.

“O que são os programas de perfuração de poços nos estados do semiárido? Ora, águas subterrâneas que levaram milhares de anos para se acumular nos níveis que temos estão sendo extraídas rapidamente como a saída para as secas. No entanto, a cada metro cúbico que se retira do subsolo, gera-se uma maior concentração de sais na água que fica. Temos hoje altos teores de sal na água”. 

Alexandre Pires.

O mau uso da água dos lençóis freáticos, aliado ao desmatamento, torna a situação das águas bastante preocupante. “Esse será um colapso de grandes proporções”, comenta o biólogo.

 

A agricultura irrigada utilizando as águas do Rio São Francisco, pela qual ficou famosa região de Petrolina e Juazeiro, se mostra hoje um desastre socioambiental. Desmatamento da caatinga, solos altamente salinizados, agricultores endividados por não conseguirem pagar a energia do bombeamento de água e contaminação do solo e das águas por agrotóxicos são algumas das consequências deste grande projeto de infraestrutura estabelecido no final do século XX, que hoje não cumpre as promessas de geração de riqueza e desenvolvimento que prometia em sua concepção.

Por outro lado, há mais de 15 anos, grande parte das organizações da sociedade civil no sertão Nordestino se envolve na ação que parece ser a solução mais adequada para ter água de boa qualidade disponível para consumo humano e para produção agrícola de pequena escala, o armazenamento da água das chuvas. A partir de 2003 essas organizações se conectaram por meio da Articulação do SemiÁrido (ASA) e, com apoio governamental que durou até aproximadamente 2014, promoveu a construção de mais de 1,2 milhão de cisternas de placa em residências do Semiárido nordestino, garantindo o abastecimento de água potável para mais de um milhão de famílias. Ao lado da construção de cisternas para consumo doméstico foram incentivadas a construção de outros tipos de cisternas e reservatórios para a produção agropecuária. Houve também a capacitação comunitária de cisterneiros, além de assessoria agroecológica para agricultores em parte deste território. Esta iniciativa provocou uma espécie de revolução silenciosa no sertão nordestino, melhorando o acesso à água de forma generalizada, ao contrário de outras iniciativas que ganharam maior destaque na imprensa e nas agendas públicas, em especial a Transposição do Rio São Francisco. A Transposição é muito criticada desde seu projeto, pois visa ampliar atividades insustentáveis no semiárido, como a grande agricultura irrigada, colabora para tornar o Rio São Francisco ainda mais vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas, e desperdiça uma grande parte da água que transporta, por simples transpiração. Ademais, movimentos sociais denunciam que a obra da Transposição violou direitos de povos indígenas, quilombolas e outras comunidades locais, além de sofrer críticas por seus erros de execução e custo de operação.

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Rio temporário em Cumaru-PE. Foto de Júlia Rosas.

Apesar do sucesso do projeto das cisternas, Alexandre Pires reconhece que o abastecimento de água ainda é um dos principais problemas que enfrentam as populações residentes do Semiárido. “Embora se tenha avançado muito em tecnologias e construção de iniciativas que contribuem para a captação e armazenamento de água das chuvas, como os açudes, barragens e as cisternas de placas, somente essa última é capaz de atender a perspectiva espacial de atendimento à população rural”. Além disso, segundo Alexandre, há ainda uma demanda 340 mil famílias sem acesso à água potável, e de 800 mil famílias necessitando de água para produção agropecuária. “São milhares as vilas e pequenas cidades que dependem de açudes e barragens para o abastecimento da população”, diz ele, “que os governos insistem em obras como a transposição das águas do Rio São Francisco”.

Políticas públicas

Edneida Cavalcanti conta que a questão das mudanças climáticas aparece como carro-chefe nos discursos políticos sobre o Semiárido. Entretanto, ressalta que não há uma abordagem integrada entre as diferentes políticas públicas que as tornem efetivas para tratar da emergência climática. Políticas sobre recursos hídricos, cobertura florestal, questão agrária e uso e ocupação do solo, por exemplo, são tratadas de maneira desconectada nas políticas públicas.

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“Parece que não tem costura, mas nos territórios a gente vai vendo as coisas se chocando. Então a falta dessa perspectiva mais sistêmica, mais integrada de sistemas ecológicos e sociais, e das políticas públicas relacionadas a esses territórios, essa dificuldade de olhar de forma articulada, eu acho que talvez seja um dos grandes problemas que a gente tem”.

Edneida Cavalcanti

Curaçá-BA: à esquerda, casas da comunidade quilombola de Jatobá; à direita, plantação irrigada de manga com uso intensivo de agroquímicos, vizinha à comunidade. Foto: Pedro Silveira.

Há uma Política Nacional sobre Mudanças do Clima, estabelecida em 2009. Há também uma Política Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca. Alguns estados nordestinos produziram também versões estaduais destas políticas. Apesar destes avanços legais, nossos entrevistados dizem que muito pouco foi levado à prática até agora. “A acelerada mudança no clima tem sido alertada aos governos e pouco se tem tomado de medida eficaz que olhe para todas as dimensões”, diz Alexandre Pires. No caso de Pernambuco, diz ele, “A Política Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca é o instrumento legal que o Estado deveria usar como norteador das ações de combate à desertificação e enfrentamento à crise climática. Essa política é uma conquista das organizações e da sociedade como um todo. No entanto, há muitos limites para a implementação de uma política se não se garante orçamento e as condições para sua operacionalização”. Um dos grandes problemas apontado por Alexandre é que os planejamentos para a crise hídrica, por exemplo, são pensados na escala de quatro ou oito anos, ou seja, de mandatos de governos. “O que temos visto nos últimos anos”, completa, “é uma redução significativa de prioridade dessas áreas, seja do ponto de vista orçamentário ou político, dos instrumentos e mecanismos de controle e participação social. Isso demonstra falta de prioridade e importância que se dá a essa agenda”.

As possibilidades da vida humana e não-humana

Nossos entrevistados concordam que a vida futura dos seres humanos no semiárido depende de conhecimentos e ações que revertam o processo de desertificação e melhorem a disponibilidade de água. Isso depende de modelos de produção e modos de vida que sejam compatíveis com o clima semiárido e que tenham resiliência suficiente para resistir aos impactos das mudanças. Construir esta vida futura passa por mudanças nas matrizes energéticas, organização social para cobrar do poder público a implementação dos planos estabelecidos, propor novas ações, e também de reduzir os impactos de grandes empreendimentos e modelos de desenvolvimento insustentáveis.

Segundo Alexandre Pires, o contexto de emergência climática que vivemos globalmente requer ações locais que geram impactos mínimos no ambiente. Inclui também práticas de recuperação e manejo sustentável dos solos, das fontes de água e da agrobiodiversidade. Para isso, ele aposta no reconhecimento e incentivo às estratégias dos agricultores e agricultoras que vivem e trabalham há gerações no sertão. É o que fazem muitas organizações não governamentais e movimentos sociais, articulados na ideia de convivência com o semiárido, entre elas o Centro Sabiá, onde Alexandre trabalha, mas muitas outras, como a ONG Caatinga, a Casa da Mulher do Nordeste, o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA) e o Serviço de Tecnologia Alternativa (SERTA). O SERTA, nos últimos anos, articulou com o Governo do Estado de Pernambuco o curso de Técnico em Agroecologia, que já formou algumas turmas de profissionais dentro de uma perspectiva de convivência com o semiárido. “As ações desenvolvidas pelas ONGs, movimentos sociais, igrejas e articulações vêm abordando as questões relacionadas às mudanças climáticas com centenas de famílias agricultoras”, diz Alexandre Pires.

Os povos indígenas também estão envolvidos em propostas de revitalização da caatinga. Em palestra no seminário Áreas Protegidas e Inclusão Social, no final de 2019, o indígena do povo Xukuru, Iran Xukuru, que é agrônomo e trabalha no IPA, narrou como seu povo tem produzido a recuperação da caatinga e a retomada das sementes ancestrais, a partir de mudanças na forma de cultivar a terra adotadas após a retomada de seu território, no município de Pesqueira, Pernambuco. “Tudo o que fazemos, nós procuramos a orientação dos nossos mais velhos”, afirmou Iran. 

Junto à ação de movimentos sociais e ONGs, a pesquisa científica, básica ou aplicada, também se mostra algo muito importante. Francis Lacerda conta que numa escola do SERTA, em Ibimirim, foi instalada uma unidade operacional do projeto Ecolume, que o IPA estruturou a partir de um financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Neste projeto, foi implantado um sistema integrado de produção de energia solar com agricultura e conservação de água. Sistemas como esse, assim como aconteceu com as cisternas de placa, são passíveis de serem transformados em política pública. 

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A criação de caprinos é uma atividade integrada à caatinga muito difundida em várias áreas do semiárido nordestino.

Foto: Pedro Silveira.

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Agricultores familiares do semiárido mantêm redes de circulação e trocas de sementes.

Foto: Pedro Silveira.

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Foto: Pedro Silveira.

Felipe Melo também está envolvido em um projeto de pesquisa sobre modos de produção mais amigáveis ao ecossistema no semiárido. “Atualmente”, afirma, “há vários grupos de pesquisa das universidades do Nordeste do Brasil empenhados em estudar esse sistemas que garantem segurança energética, alimentar e hídrica no semiárido. Nós, especificamente, estudamos como a restauração da Caatinga pode ser um catalisador do desenvolvimento sustentável. A própria prática tradicional nos dá umas boas pistas de por onde ir”. O pesquisador explica que a criação de bodes, por exemplo, se bem manejada, pode conviver com a Caatinga, ao contrário da criação de bois, que geralmente demanda a conversão de Caatinga em pasto. “Podemos criar bode solto na Caatinga, se bem manejado, e minhas pesquisas nessa área indicam isso”.

A emergência climática mostra a agricultores, governantes, ativistas e pesquisadores que enfrentar as mudanças requer conhecer, cuidar e produzir vida. Para isso é preciso não só organização da sociedade, mas também ação coordenada do poder público, recursos para pesquisas científicas e projetos transformadores. Requer também uma articulação entre diferentes saberes e práticas sociais. “A caatinga é um ecossistema que precisamos entender melhor”, afirma Felipe Melo, “mas pelo que já sabemos, a chave para entender suas ameaças e potencialidades se encontra no seu próprio patrimônio natural e cultural”.

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