Não sois máquinas, não sois homens, capoeira é que sois.
Marcelo Vaz Pupo
Charles Chaplin, criador de Tempos Modernos, nasceu em Londres no mesmo ano em que surgiu a república brasileira. Nesse mesmo 89, Rui Barbosa assumia nosso Ministério da Fazenda sedento por industrializar o país e livrá-lo da dependência do capital estrangeiro. O liberalismo nacionalista de outrora hoje se enterra pra cavar o liberalismo dos Chicago Boys, com Paulo Guedes à frente. Mas crer que a Rainha Vitória permitiria a ascensão de uma nação industrializada no cone sul latino-americano não foi a única ingenuidade de Barbosa.
Principal defensor da introdução do ensino de ciências no país, Barbosa marcou sua passagem política na câmara dos deputados imbuído pelos ideais ingleses da década de 1870. Conhecedor das obras de britânicos como Herbert Spencer, Charles Darwin e Thomas Huxley, esteve alinhado ao debate de seu tempo, defendendo que estudar ciências representava um movimento inevitável contra o autoritarismo, o formalismo, o dogmatismo, rumo a uma transformação social em torno da liberdade.
Pairava, nestes círculos sociais, uma atmosfera de afirmação das ciências como parte de um conjunto de mudanças significativas nas instituições sociais, com o recuo de posturas autoritárias em nome do respeito às opiniões e discernimentos pessoais, com avanço dos direitos e responsabilidades do indivíduo. No Brasil, no entanto, os liberais parecem relevar bem o despotismo institucional que historicamente caracteriza o Estado brasileiro. De estimação, talvez.
As novas práticas sociais, implicadas no padrão de poder emergente, capitalista, apontaram para uma mudança histórica, tanto na dimensão material dessas práticas como em sua intersubjetividade, que requeria o desmantelamento de estruturas e instituições associadas às hierarquias e à autoridade. Nesse contexto, a necessidade de liberdade individual estaria associada a um foro próprio para pensar, para duvidar, para decidir. A ética protestante e o racionalismo econômico, em uma Europa cada vez mais industrializada, compreendia como vital a inclusão das ciências no currículo escolar como parte do progresso liberal que florescia naquele período.
Rui Barbosa creditava à ciência um caráter neutro, negando a ela qualquer ideologização em nome de uma verdade que se baseia em fatos, pesquisas, classificações e explicações demonstráveis. A legítima aspiração à liberdade das ideias na virada dos séculos exagerou na crença de que a prática científica fosse capaz de se manter pura, isolada de condicionantes sociais. Pura ingenuidade de Barbosa.
O vitoriano Huxley, conhecido como buldogue de Darwin pela defesa que fazia da teoria da evolução, já demonstrava partido na educação científica, que propunha para a Inglaterra de 1888, pautada na formação técnica de seus operários para vencer a disputa comercial que o mundo passou a testemunhar. A indústria exigia novos mercados consumidores.
O darwinismo social de Huxley e a educação determinada pela indústria britânica já mostravam bem seus dentes ideológicos, de tal sorte que a concorrência econômica era vista pelo naturalista como algo que nada espelhava senão a eterna batalha pela sobrevivência, na qual aptos e fortes permanecem e fracos perecem. Era preciso bons operadores de máquinas, ainda que elas pudessem engoli-los vivos como caricaturou Chaplin em Tempos Modernos.
Quem assiste ao filme de 1936 pode perceber que o personagem de Chaplin, o Vagabundo, se envolve em diversos empregos, todos urbanos. Ambientado nos EUA, esse contexto pode ser inferido para a Inglaterra. A expulsão de camponeses ingleses de suas terras já era situação bem consolidada na época retratada, processo que se iniciou séculos antes. Isso significa que o país, para ocupar as pessoas na iindústria, desocupava-as da produção agrícola.
Manter a balança comercial favorável para garantir a importação de alimentos, evitando a fome da população, fazia parte dos argumentos de Huxley em sua defesa pela tecnicização da mão de obra inglesa. Este cenário, tendo em vista a frustrada intenção industrializante dos Estados Unidos do Brasil e seu ministro Barbosa, acirrou a conformação desigual entre países centrais e periféricos que caracteriza o subdesenvolvimento latino-americano. Sempre coube ao sul entregar cacau e tomar chocolate. Permanecemos exportando matéria-prima e importando manufaturado.
Contraditoriamente, portanto, os tempos modernos, que em certa medida necessitou de igualdade social entre os indivíduos do norte, exige também relações sociais de exploração e de dominação, nas quais o mercado sempre foi o mínimo, mas também o limite da possível igualdade social entre as pessoas. Como é sabido, o espírito liberal e a defesa dos direitos individuais nunca abrangeu as massas tropicais, nem mesmo o estabelecimento de um mercado interno por aqui se garantiu, relegando aos países da periferia a superexploração do trabalho e aos ditames da ordem mercantil, que no século 20 atinge seu ápice com a globalização econômica e a divisão internacional do trabalho.
Mesmo nas populações centrais a exploração de uns por outros é realidade, como enquadra Chaplin nos diversos filmes protagonizados pelo Vagabundo. Ontem com operários nativos, hoje com imigrantes africanos ou latino-americanos. Em 1846, Marx e Engels disseram que as ciências naturais, tal como se configuraram na Europa, se desenvolveram a partir de um materialismo misantrópico, desafeito de humanidade.
Autolegitimando-se, apoiando-se em um autonomismo artificial, as ciências exatas e naturais seguem gerando desenvolvimento científico e tecnológico cindido das sensibilidades populares e dos territórios onde se manifestam.
A divisão internacional do trabalho tem subordinado ao Brasil o papel de fornecedor de commodities a baixo custo, complementando, ao lado das outras nações periféricas, a acumulação de riqueza pelos países centrais do capitalismo.
Não somos máquinas, mesmo que alguns ou muitos queiram. Ou seja, não coube à periferia a industrialização que se vê no centro, cabe a ela a dependência que bem conhecemos. Aliás, redefinir o sentido de prosperidade e qualidade de vida, desde o sul, é fundamental para que não reste apenas a repartição de bens gerados pela industrialização da vida como a única e melhor meta ou benefício que a luta do povo pode oferecer a ele mesmo.
A proximidade histórica entre a intensificação da industrialização no mundo e o advento do ensino de ciências nos currículos escolares ajuda a evidenciar a correlação entre modo de produção, produção de conhecimento e escola. Se o papel do Brasil no circuito mundial é disponibilizar suas terras agriculturáveis (como também seu subsolo de riqueza mineral) para ruralistas e corporações oligopólicas, não é difícil inferir — e atestar — a situação do campo e da escola no país.
A disputa em torno das formas como o território brasileiro é ocupado permanece acirrada e violenta. O novo presidente ampliará essa tensão, promessa de campanha. O contraste ideológico e socioambiental é nítido na configuração das paisagens rurais. Por um lado o espírito vitoriano oitocentista, de conquista e domínio da natureza, segue derrubando biomas e comunidades, hoje em nome de PIBs e transações. Por outro o espírito indígena e camponês, reinventando ânimos e resistências, segue praticando conhecimentos com base na reciprocidade e, em certa medida, em congruência com os ambientes naturais. Como a instituição chamada escola lidará com esta disputa e contraste? Que papel cumprirá?
Antigas deficiências no sistema público de educação não são atendidas e novas reformulações curriculares não buscam saná-las. O ano que se alvorece tem prometido uma certa fusão entre velhos obscurantismos (terra plana, negação da teoria da evolução e da responsabilidade humana nas mudanças climáticas) e novos liberalismos. A educação será precária e conservadora para pobres, mercadoria para quem quiser algo diferente disso e puder consumi-la. A declaração universal pelos direitos humanos chegou em seu setuagésimo aniversário em um ano eleitoral em que esses direitos são verbalmente desprezados pelo presidente eleito. Para um país dependente o receituário não prevê a oferta de humanidades. Essa afirmação de modo algum se restringe ao currículo escolar.
Não somos homens, mesmo que alguns ou muitos queiram. O sonho liberal por um livre e novo homem, como se “homem” pudesse, inclusive, representar a vida humana no seu conjunto, faliu enquanto proposta do pós-guerra. Aqui, o máximo que o país experimentou foi a promessa social-democrata, também ingênua, de ascendermos ao bem-estar social utilizando-se de royalties do pré-sal para saúde e educação. Esse petróleo, porém, já encontrou seu dono. Para atender às necessidades do centro capitalista a dependência periférica precisa se agudizar, para isso a corrupção é essencial e a democracia deve recrudescer.
A educação orientada por essa necessidade não deve permitir aos jovens pensar sociedade, ambiente ou democracia. Para atender aos quesitos do que sobrou de empregos formais bastam matemática e português no ensino médio para a ralé. Para a juventude do campo, então, a ideia é que nem de escola precise. Afinal de contas no campo que é pop, é tech, é tudo, tudo pode ter: tóxico, transgenia, trator e sangue. O que essa terra não deve dar é trabalho, gente, floresta ou comida. Pelo menos não a comida que brota da cooperação entre gente, trabalho e floresta.
A ciência ou a escola, como a modernidade que o mundo passou a experimentar, sempre representou o conflito de interesses sociais, uma prática necessariamente ambígua e contraditória. Chaplin, com seu personagem em O Grande Ditador, fala aos soldados: “não sois máquinas, homem é que sois”, apelando para a humanidade da tropa que pudesse desautomatizá-los, para que batalhem pela liberdade e não pela escravidão. O apelo segue válido não só para soldados mas para generais e capitães. E para a massa soldadesca raivosa das redes sociais.
O discurso da neutralidade e do determinismo tecnocientífico, assim como o do progresso unilinear e unidirecional, são muito convenientes para as relações de poder e dominação. A educação, em especial a científica, deve expor as correlações políticas e econômicas das forças sociotécnicas, a quem serve, que grupos se beneficiam. Não optar por essa abordagem sujeita às dinâmicas e práticas de conhecimento tradicional e popular, confina a sensibilidade humana como fonte desprestigiada na objetivação do mundo, alimenta a autonegação cultural dos povos daqui, amacia as massas para a servidão.
A educação e a escola, em uma perspectiva de superação da dependência, precisa debater abertamente o papel que o campo cumpre para o país e o mundo. Pela educação e pela escola devemos compreender o papel que a ciência e a tecnologia cumprem na organização social e técnica para o que nos acostumamos a chamar de “desenvolvimento”.
Nesse momento em que a economia reforça seu caráter primário, em tempo de servidão e desumanização do povo, está havendo uma demonização de tudo que represente obstáculo a este cenário neocolonial. A precaução da nova ordem é tipificar de subversivo e terrorista todo movimento que luta por direitos.
A educação e a escola podem contribuir para o avanço daqueles arranjos sociais e técnicos que se dão entre gente, trabalho e floresta. As populações do campo incomodam demais quando, ao produzirem comida de verdade, contrapõem o autonomismo da ciência e da tecnologia. Incomodamos a ordem do capital quando ciência e tecnologia abandonam sua orientação abstrata, idealista e matematizada e se aliam às sensibilidades populares e territoriais na transformação da sociedade e do ambiente; quando agroecologia é criada. Incomodamos quando a ginga popular se esquiva de golpes imperialistas.
Assim como Chaplin e a República, em 1889 nasce também Mestre Pastinha. Na década de 1940 foi responsável por sistematizar a capoeira angola, considerada crime até a década de 1930. Pastinha, em seus manuscritos, afirma que a capoeira é “mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista”. Só seremos periferia se a mandinga em ânsia de liberdade não se tornar o centro de nossas escolhas, se deixarmos de perpetuar a memória e as práticas de conhecimento e resistência que fazem do povo brasileiro o que ele é.
Nesse processo animado de perpetuação das memórias populares, que as pratica e as reinventa, está a mudança social, material e intersubjetiva que nos identifica e nacionaliza. Com estes conhecimentos as escolas também devem gingar. A invenção de uma nação democrática e popular, como a mandinga pela liberdade, até tem princípio, mas não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista.
Somos capoeira, capoeira é que sois.
O AUTOR
Marcelo Vaz Pupo é professor na Universidade Federal do Pampa, Campus Dom Pedrito-RS, e atua no curso de Educação do Campo. Tem doutorado em Ensino de Ciências e pesquisa aproximações entre educação e agroecologia.
COMO CITAR ESSE TEXTO
PUPO, Marcelo Vaz. Não sois máquinas, não sois homens, capoeira é que sois. (Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. Publicado em 07 jan. 2019. Disponível em https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n5. ISSN 2179-1287.
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