Livro mergulha no acervo de imagens da Fundaj para mostrar rituais das religiões afro-brasileiras
Lançado pela editora Massangana, O Sagrado nas religiões afro-brasileiras: imagens de uma devoção é voltado para professores do ensino médio
Por Maria Carolina Santos
Tem uma frase que a antropóloga Rosalira dos Santos Oliveira, pesquisadora aposentada da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), gosta de repetir sempre que a perguntam sobre a importância da cultura afro-brasileira: “O terreiro pariu o Brasil”. E completa: “Essa frase não está só no passado. O terreiro continua criando e recriando brasilidade. Não há nada, ou quase nada de brasilidade, que a gente reivindique como Brasil, que não tenha surgido ou não tenha uma relação íntima com o terreiro”, diz. Ao lado da também antropóloga e professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Zuleica Dantas Pereira Campos, Rosalira assina o livro O Sagrado nas religiões afro-brasileiras: imagens de uma devoção, lançamento da editora Massangana.
A publicação fez um mergulho no acervo da Fundaj em busca de imagens sobre tradições religiosas afro-brasileiras e a influência delas na cultura. Rosalira explica que o livro foi estruturado na perspectiva de uma roda, algo enraizado na cultura afro-brasileira, seja nas rodas de capoeira, de candomblé, de samba.
“Ao invés de você ter o esquema hierarquizado do altar, do oficiante, você tem este esquema circular. O livro é como uma roda com vários círculos: o primeiro diz respeito ao sagrado em si, como é que ele é vivido, os ritos, etc. O segundo círculo, mais amplo, fala de como esse sagrado dialoga com outras tradições religiosas. O último círculo fala da influência na cultura”, explica Rosalira.
“Não há nada, ou quase nada de brasilidade, que a gente reivindique como Brasil, que não tenha surgido ou não tenha uma relação íntima com o terreiro”, diz Rosalira dos Santos
Neste primeiro círculo, as autoras apresentam um breve resumo do desenvolvimento das religiões de matriz africana no Brasil. São imagens em templos, imagens de oferendas, imagens da preparação dos alimentos sagrados.
Há uma foto que Rosalira destaca: uma mulher, filha de santo, fazendo o cumprimento dobalé, que consiste em se prostrar no chão diante do pai ou da mãe de santo. “O tecido em que ela se deita é chamado de Alá, que vem de uma das contaminações entre o islamismo e as religiões animistas – as religiões cujas deidades são a natureza. As tradições existentes na África pré-cristã e pré-muçulmana são tradições animistas na sua origem”, afirma.
A importância da comida nas religiões afro também é tema desse capítulo, que traz uma citação elucidativa do antropólogo Roberto DaMatta: “O xangô é uma religião boa para comer, para pensar e para organizar”. No candomblé, as comidas são preparadas como que em um ritual e são compartilhadas, mas a comida que vai para os deuses, as oferendas, não se misturam com as dos membros da religião. Há também temperos específicos, que variam de acordo com a divindade. O mesmo acontece com a dança e a música: cada orixá tem seus passos e seus sons.
No segundo círculo do livro, o leitor é apresentado à porosidade das religiões afro-brasileiras. Um sincretismo imposto, já que todo escravizado, ao chegar no Brasil, era obrigado a se batizar no catolicismo. “Em consequência, tanto no imaginário popular quanto na expressão artística afro-brasileira, os orixás costumam ser caracterizados com atributos de santos católicos, quase todos brancos – como por exemplo o guerreiro romano pelo qual Ogum é representado em muitos candomblés”, diz um trecho do livro em referência ao São Jorge sincretizado como o orixá Ogum.
Ao chegar no terceiro círculo, o leitor e a leitora já perceberam que a frase com que Rosalira abre esse texto é totalmente válida. Aqui, as autoras explicitam como a cultura brasileira está irremediavelmente intrínseca ao terreiro. “Vai, por exemplo, desde o primeiro samba gravado, Pelo telefone, de Donga, até um ícone como o Zeca Pagodinho e a levada da bossa nova. Tem um artigo do Vagner Silva (com Rita Amaral) chamado Foi conta para todo canto, em que ele traça a trajetória da MPB pela influência das religiões afro-brasileiras. E, neste artigo, ele cita o loiríssimo Ronnie Von cantando em 1972 os versos ‘quem é o cavaleiro /que vem lá de Aruanda/ é Oxóssi em seu cavalo’. Essa influência afro passa por tudo: pela comida, pelas artes plásticas, pelo nosso modo de dançar”, comenta Rosalira dos Santos.
A pesquisa para o livro começou no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), com o então bolsista Nairan Santana. “Depois, eu e a Zuleica Dantas estruturamos os temas, os tópicos e o que seria importante destacar”, conta Rosalira. O prefácio é assinado pelo antropólogo e museólogo Raul Lody e a orelha pelo sociólogo Giovanni Boaes, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Por dentro do acervo de imagens Fundaj
As imagens presentes no livro são todas do acervo do Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira Rodrigo Melo Franco de Andrade (Cehibra), que foram doadas para a Fundação Joaquim Nabuco. Estão presentes no livro fotografias de várias coleções, a maioria delas tiradas durante o trabalho de campo de antropólogos, documentaristas e outros pesquisadores.
Há, por exemplo, imagens da coleção de Raul Lody, que fez trabalhos de campo junto aos religiosos afro-brasileiros na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão. Da coleção do fotógrafo Rucker Vieira, há imagens da pesquisa Mudança e resistência dos cultos afro-nordestinos face à umbanda, coordenada pelo antropólogo Waldemar Valente nos anos 1970. Há também fotos da antropóloga norte-americana Katarina Real e da coleção Lula Cardoso Ayres, entre outros.
A publicação traz um bonito trabalho de intervenção em algumas das fotos, destacando detalhes que chamaram a atenção das pesquisadoras, como instrumentos, símbolos religiosos e vestimentas. O projeto gráfico da coleção é assinado pela Zulu Design.
Mudança cultural à vista
A publicação é voltada para docentes do ensino médio, com proposições para trabalhos e aprofundamentos em sala de aula. Em um cenário em que a intolerância religiosa é intensa no Brasil, o livro mostra como os professores e professoras podem abordar as religiões afro-brasileiras de forma propositiva, histórica e culturalmente.
“Todas as semanas vemos notícias de terreiros sendo vandalizados”, lamenta Rosalira. Para ela, o crescimento das religiões neopentecostais - mais rígidas que o catolicismo - já mostram um impacto na cultura brasileira. “As projeções são de que, daqui a dez anos, no próximo Censo, o Brasil seja majoritariamente evangélico”, aponta.
“É importante frisar que as religiões abordadas no livro são religiões brasileiras. Elas não são recriações da África. As religiões afro-brasileiras se estruturam sob o manto do catolicismo. O catolicismo é flexível o suficiente e canibal o suficiente para pegar tradições outras. Ele fez isso na Europa, originalmente. Quando o catolicismo não consegue vencer, ele se adapta”, pontua.
O mesmo não acontece, por exemplo, com as religiões pentecostais, avalia a pesquisadora. “É bastante diferente porque essas religiões têm uma teologia de combate. E o combate necessita de um inimigo. Por serem politeístas, pelos deuses serem a natureza, por não terem uma noção de pecado, por aceitarem diferenças, como a questão da diversidade sexual, as religiões afro-brasileiras são uma espécie de inimigo perfeito”.
Para a antropóloga e coautora Zuleica Dantas, o livro vem se juntar aos esforços para a educação sobre as religiões afro, sem preconceitos. “Temos esse objetivo de educar dentro da perspectiva antropológica de normalizar, da perspectiva cultural. Uma normalidade mais leve, sem fazer proselitismo, sem fazer militância”, afirma.
Um novo olhar sobre o acervo da Fundaj
O livro O Sagrado nas religiões afro-brasileiras: imagens de uma devoção é o segundo lançamento da coleção Documentos de história africana e afro-brasileira. A coleção foi pensada e organizada pelas pesquisadoras da Fundaj Sylvia Couceiro e Cibele Barbosa para explorar um pouco mais os ricos acervos de imagens da Fundação Joaquim Nabuco.
Antes de começar a definir os temas da coleção – o primeiro volume foi sobre o cotidiano afrodescendente – , as pesquisadoras fizeram um amplo levantamento sobre como as imagens dos afrodescendentes apareciam nos livros de história.
O livro Cotidianos afrodescendentes: um percurso visual pelos acervos da Fundaj está disponível online na íntegra e pode ser acessado aqui.
“Eram, geralmente, imagens de viajantes, como Debret, como Rugendas. E a temática dessas imagens era muito focada em castigos, trabalhos, escravidão, açoites”, enumera Sylvia. “É lógico que em muitas das coleções da Fundaj, os afrodescendentes aparecem como escravizados, como pessoas sendo açoitadas, mas o nosso foco era outro”, explica.
“Nós vasculhamos uma série de coleções do Cehibra percebendo em que momentos os afrodescendentes apareciam. Nossa ideia, nesta coleção, é mostrar como você pode utilizar um documento primário – como a fotografia, uma imagem, uma gravura – na sala de aula. É uma forma de dotar os professores de mecanismos para que eles possam explorar esses documentos com os estudantes”, diz Sylvia Couceiro. A coleção foi pensada também como um apoio às escolas no contexto da lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira.
O terceiro volume da série já está em desenvolvimento e vai ter como foco o patrimônio afrodescendente. A publicação está sendo escrita pelo analista em ciência e tecnologia da Fundaj Rodrigo Cantarelli.
Serviço:
O sagrado nas religiões afro-brasileiras: imagens de uma devoção
De Rosalira dos Santos Oliveira e Zuleica Dantas Pereira Campos
Coleção Documentos de História Africana e Afro-Brasileira
Editora Massangana
Preço: R$ 40, à venda no campus Campus Ulysses Pernambucano da Fundaj (Rua Henrique Dias, 609, Derby)
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.
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