IBGE criou nova metodologia para inserir quilombolas no Censo Demográfico 2022
Para encontrar todos os quilombolas possíveis, o IBGE fez levantamentos de documentos oficiais, ouviu lideranças e fez diversos testes de pesquisa em campo
Por Maria Carolina Santos
Pela primeira vez, o Censo Demográfico do Brasil traz dados sobre a população quilombola. São 1,3 milhão de brasileiros que se declaram quilombolas em quase 1,7 mil municípios de todo o país. A maior parte dessa população, 905 mil pessoas (68,2%), vive em estados do Nordeste.
Para chegar até os dados específicos dos quilombolas, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) criou uma nova metodologia. E essa nova metodologia pode beneficiar a inclusão de outros povos tradicionais já no próximo Censo – de acordo com o decreto 8.750 de 2016 são 29 segmentos. Quem explica como essa metodologia foi desenvolvida é a servidora do IBGE Marta Antunes, doutora em Antropologia Social no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, e que coordena o Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais do órgão.
Para encontrar todos os quilombolas possíveis, o IBGE fez levantamentos de documentos oficiais, ouviu lideranças e fez diversos testes de pesquisa em campo. Um dos primeiros passos foi ir atrás de registros administrativos de órgãos públicos. “Criamos, na verdade, um desafio muito grande para o IBGE, que foi de pré-mapear as localidades quilombolas. Contamos nesse processo com o apoio da antiga Secretaria de Promoção de Igualdade Racial, hoje o Ministério da Igualdade Racial. Esses documentos nos davam indícios de que em determinado local, em algum momento, havia tido uma política para a população quilombola”, conta Marta.
Com esses dados oficiais, as representações estaduais do IBGE começaram então uma busca por representantes quilombolas. “Às vezes a gente tinha o nome de um lugar, mas não sabia onde ficava. Quem fez esse Censo acontecer também foram as lideranças quilombolas estaduais, que ficavam em contato com as nossas bases territoriais”, diz a especialista, citando que a equipe do grupo de trabalho é multidisciplinar: profissionais de economia, antropologia, linguística, estatística, geografia, demografia.
A pergunta sobre a pessoa se considerar quilombola foi aplicada pelos recenseadores apenas nessas áreas já pré-mapeadas. Para ser considerada uma localidade quilombola, o IBGE usou a definição de um conjunto de 15 ou mais pessoas quilombolas morando em um ou mais domicílios, com algum laço comunitário ou familiar.
“Nos primeiros testes já vimos que à medida que a gente se afastava das comunidades as pessoas não entendiam a pergunta. E o questionário travava. O que é o questionário travar? É quando eu pergunto, ‘você se considera quilombola?’ e a pessoa me devolve: ‘o que é isso?’. Aí eu dou a definição do decreto 4887. E a pessoa repete, ‘o que é isso?’. Gerava um impasse. Então, no processo de consulta, chegamos num acordo de neste primeiro censo abrir a pergunta apenas nas localidades quilombolas”, explica Marta. “Hoje, o IBGE tem o mapeamento mais completo da presença quilombola no território nacional”, diz.
Mais povos tradicionais no próximo Censo
Desde 2016 o IBGE tem o Grupo de Trabalho de Povos e Comunidades Tradicionais, que estuda os diferentes segmentos. “É um mundo, o Brasil é muito diverso. Nem todos os grupos têm uma territorialidade fixa, como é o caso dos quilombolas e dos indígenas, que têm uma política de delimitação de terras. Mas alguns grupos já têm algumas organizações territoriais que já são reconhecidas pelo Estado brasileiro e que a gente pode usar”, afirma Marta. “E outros têm essas organizações mais fluidas ou mais informais perante o Estado, mas nada informais perante as comunidades. Então a gente está nesse momento pensando como lidar com cada grupo para poder avançar”, acrescenta.
De acordo com a servidora do IBGE, a ideia é que o Censo Agro de 2026 já traga no questionário perguntas específicas para povos tradicionais. “Neste caso, para os extrativistas, principalmente. Usando essa mesma metodologia que usamos para os quilombolas, com consulta às lideranças e aos órgãos públicos, com operação e cartografia diferenciadas e com um treinamento diferenciado para os recenseadores, com sensibilização”, enumera.
A ideia é que no próximo Censo Demográfico não seja incluído apenas um segmento, como aconteceu no de 2022 com os quilombolas, mas que vários povos possam ser incluídos de uma vez só. “Estamos em diálogo com o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e com o Ministério do Meio Ambiente”, adianta Antunes.
O pesquisador e demógrafo Wilson Fusco, diretor de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), lembra que toda vez que uma nova pergunta é incluída no Censo é porque houve uma pressão para que isso acontecesse. “São movimentos sociais pressionando o governo para saber como é a população em termos de vários aspectos, como etnias e identidades. A questão de você localizar e conseguir se aprofundar em questões de povos tradicionais, ou de outras possíveis identidades, tem a ver com a emergência de movimentos que demandam isso do governo. Por exemplo, em 2010 foi a primeira vez que se perguntou no Censo se um casal era de mesmo sexo ou não”, afirma.
Georreferenciamento de comunidades quilombolas será divulgado neste mês
Desde 2023 o IBGE tem divulgado os dados dos povos indígenas e quilombolas, como sexo e idade. No próximo dia 19 de julho o IBGE vai lançar um mapa georreferenciado de onde estão as concentrações da população quilombola no Brasil. “E eu acho que esse é um dos grandes resultados também desse Censo. No momento, para as políticas públicas, temos onde estão os territórios. Mas não se tem onde estão as localidades. A Fundação Palmares, pelo processo amplo de garantir auto-identificação na certificação, não exige uma coordenada geográfica. Até porque a comunidade não tem como fazer isso. Com esse censo, pela primeira vez, temos como entregar esse dado para a sociedade, para os órgãos públicos e para as próprias comunidades”, diz Marta.
Censo 2022: Qual Brasil voltou?
A servidora Marta Antunes participou no dia 27 de junho do seminário Qual Brasil voltou? Debatendo os resultados do Censo Demográfico de 2022 - Indígenas e Quilombolas, o segundo de uma série de encontros dedicados ao debate dos resultados do Censo Demográfico de 2022, promovido pela Diretoria de Pesquisas Sociais (Dipes) da Fundaj. Além dela, a demógrafa Rosa Colman também palestrou no evento.
Presente no seminário, o superintendente do IBGE em Pernambuco Gliner Dias Alencar destacou a importância de cada vez mais se aperfeiçoar o Censo para se conhecer melhor o Brasil. “Vai se passando o tempo e vai vindo a necessidade de novas classificações, de cada tipo de população que é necessária para se fazer políticas públicas. Os quilombolas sempre foram computados, mas como brasileiros, não como tipologia quilombola. Esse é o primeiro Censo que se tem essa tipologia para que políticas públicas sejam aplicadas corretamente”, disse.
A coordenadora geral do Centro de Estudos de Cultura, Memória e Identidade (Cecim) da Fundaj, Darcilene Gomes, lembrou que os os pesquisadores da Fundaj são usuários do Censo Demográfico, e os seminários são um uma forma de se aprofundar e de se apropriar desses dados. “Esse Censo Demográfico foi dolorido, demorou para sair. Foram mais de 12 anos entre um Censo e outro. A gente tinha um Brasil em 2010, a gente tem outro Brasil agora. Os seminários nos ajudam a refletir sobre esses dados para poder entender o que mudou no país”, disse.
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