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Exposição de fotos após a morte mostra tradição sertaneja de despedida

Sono Sereno, de Géssica Amorim, está em exibição na galeria Baobá, na Fundaj Casa Forte, até o dia 24 de novembro


Por Maria Carolina Santos


Montagem da exposição Sono Sereno traz elementos usados nos velórios do interior do nordeste. Foto: Ascom/Fundaj

Na sala de abertura da exposição Sono Sereno está uma foto da bisavó da fotógrafa e jornalista Géssica Amorim. Cercada por familiares, Vó Licó, como era chamada, está na frente de uma igreja, dentro de um caixão. É a única foto que a família guarda dela. A única imagem que Géssica viu da sua bisavó. Fotos de pessoas sem vida, em suas despedidas com entes queridos, são o recorte da exposição que está em exibição na galeria Baobá, no campus Casa Forte da Fundação Joaquim Nabuco.


A exposição Sono Sereno mostra como essa prática fotográfica era comum – e, em certa medida, ainda é – no interior do Nordeste. Ter um registro daqueles últimos momentos do corpo morto, mas ainda presente na família, era uma forma de homenagear quem se foi. Uma última lembrança antes da derradeira despedida.


Na segunda sala de exibição, as fotos são de familiares de amigos de Géssica Amorim e do álbum de uma fotógrafa chamada Rejane de Lima, do município de Betânia, no Sertão do Pajeú, que era chamada pelas famílias da região para registrar esses momentos. As fotos da exposição vão de 1979 até 2005, mas a grande maioria delas se concentra nas décadas de 1980 e 1990.


“Tudo começa a partir dessa minha vontade de conhecer a minha bisavó, porque eu cresci ouvindo as pessoas falarem a respeito dela. Tem então essa única imagem de Vó Licó, e eu quero saber por que é que as pessoas fazem esse tipo de foto ali, no sepultamento”, contou Géssica em entrevista para a revista Coletiva.


“Como em casa a gente só tem aquela foto, eu fui buscar com amigos, saber se eles tinham em casa também esse tipo de registro, se eles sabiam também de pessoas que tinham essas fotos. Eu consegui fotos com uns amigos, e me indicaram essa fotógrafa de Betânia, que na década de 90 era contratada para fazer essas fotos. Ela tinha um álbum e me deu, não quis ficar com nenhuma foto”, explicou Géssica, que nasceu e mora em Sítio dos Nunes, distrito do município sertanejo de Flores.


Como as fotos foram entregues em um álbum, e não nos negativos, houve um desafio técnico para a ampliação das imagens . “Eram todas fotos de 10 por 15. A saída então foi a gente esticar as fotos em um chassi. O máximo que conseguimos ampliar sem perder a qualidade foi no tamanho que está exposto. Mas eu acho que funcionou bem”, avalia Géssica.


Um último afago


A ideia de fotos de pessoas mortas pode primeiramente despertar certa repulsa na sociedade urbana contemporânea, mas as fotos exibidas em Sono Sereno são de outra natureza. São fotos de muita pungência, que exalam ternura e cuidado. Percebe-se um carinho em deixar a pessoa falecida confortável, como uma mãe zelosa colocando os filhos para dormir. Géssica destaca que em uma das fotos uma pessoa estende a mão para tocar o rosto do falecido, num último gesto de carinho. Há outra em que as pessoas já estão dentro da cova e param para posar para o registro.


A fotógrafa e jornalista Géssica Amorim. Foto: MCS/Coletiva

São fotos que mostram outra relação com a morte, mais íntima, mais próxima. Os sepultamentos parecem ser feitos por familiares e amigos, os velórios são nas próprias residências – e não em salas alugadas de cemitérios e funerárias. Não há desespero nos rostos fotografados, mas semblantes ora tristes, ora de aceitação. Em alguns, há até um sorriso – “talvez ‘beberam’ o morto”, suspeita Géssica.


Como são fotos de décadas passadas, elas também mostram um recorte da história do Brasil. Nas imagens das décadas de 1980 e 1990 há bebês e crianças pequenas mortas, revelando a cruel realidade social da alta mortalidade infantil. Em 1990, a taxa de mortalidade infantil em Pernambuco era de 77 mortes para cada mil nascidos vivos. O dado mais recente, de 2019, aponta para uma redução de 83%, com 13 mortes para cada mil nascimentos. Em uma foto em que uma bebê está cercada de outras crianças, decorada com flores de bougainville, Géssica conta que já era o segundo filho que aquela mãe perdia. Morreu por diarréia, uma doença da miséria.


Ao ver as fotos, é inescapável não pensar no que aconteceu com todas aquelas pessoas. Géssica também não sabe a história da maioria delas, principalmente as do álbum de Rejane de Lima, que já não lembrava das situações. Uma foto chama a atenção pela quantidade de caixões: são sete mostrados na imagem, pequenos e grandes, espalhados no que parece ser uma praça. É de Triunfo, em 1979, e a única morte dali que se tornou pública.


A foto é do famoso caso Mata Sete. Um jovem teria estuprado a namorada na cidade de Santa Isabel, na Paraíba, vizinha a Triunfo. O pai dela, um homem violento conhecido na região como Gonzaga Cacimba, entrou na residência do rapaz na noite de São Pedro de 1979. Com um revólver em cada mão, matou sete pessoas da família do ex-namorado da filha, que não estava em casa na hora da chacina. Gonzaga, depois do crime conhecido como Mata Sete, ainda conseguiu fugir e foi morto em 1981 pela polícia. A foto da exposição veio de um monóculo do avô de um amigo de Géssica. Depois de sair nos jornais, a foto foi vendida como souvenir.


Uma casa sertaneja em dia de velório


O texto que abre a exposição é da jornalista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Fabiana Moraes. Está na parede de entrada da galeria Baobá, toda ela decorada para parecer uma casa enlutada do interior do Nordeste.


Exposição fica em cartaz até o dia 24 de novembro. Foto: Ascom/Fundaj

Na primeira sala há uma bacia com laranjas – uma prática para afastar o mau cheiro dos corpos já em decomposição. Há castiçais, velas, quadros com fotos ornadas nas demais paredes. No lugar de portas entre uma sala e outra, há lençóis pendurados.


Géssica não queria reproduzir exatamente um velório. “Mas eu quis trazer esses objetos que marcam muito a estética do lugar de onde eu venho e dos lugares que eu acessei pra pegar essas imagens”, conta.


Na segunda sala, a cenografia é de uma cozinha, com garrafa térmica de café, para virar a noite em orações, e cachaça, para se ‘beber o morto’. Um letreiro em led chama a atenção. “É a novidade nos velórios do interior. Fica passando mensagens com o nome da pessoa morta, mensagens de consolo. As funerárias alugam ou emprestam para as pessoas que fazem os velórios em casa”, explica.


Há ainda o som do luto, com os alto-falantes da galeria ecoando louvores cantados pelas Encomendadeiras de almas de Correntina, da Bahia.


Discussão com estudantes e professores


A exposição é a culminância da passagem de Géssica Amorim pelo projeto Residências Artísticas, desenvolvido pela Unidade de Artes Visuais da Diretoria de Memória, Educação, Cultura e Arte (Dimeca) da Fundaj. Esta é a sétima edição do projeto, que seleciona três artistas por meio de concurso.


Para esta edição, foram recebidos 70 projetos de todo o Brasil, e além de Sono Sereno foram selecionados os projetos Cruzadas, da artista matheusa dos santos (PA), e Águas Passadas Não Movem Moinhos?, de Val Souza (SP).


Em entrevista para o site da Fundaj, a responsável pela divisão de artes da Dimeca, Ana Carmen Palhares, afirmou que “durante a residência, o artista pode pesquisar o acervo da Fundação Joaquim Nabuco e ter essa troca de informações com nossa equipe educativa”.



Foto: Ascom/Fundaj

Quando é finalizado o processo de curadoria de escolha dos artistas, a equipe do educativo da Fundaj já começa a pensar como trabalhar o tema com os estudantes que visitam as exposições. “O artista quando chega para a residência apresenta ao nosso setor o tema que vai ser trabalhado, e fazemos um questionário com eles, além de estudarmos os projetos”, conta Niara Mackert Pascoal, do educativo da Fundaj.


Para a exposição Sono Sereno, pelo tema que é retratado, o educativo da Fundaj escolheu como público-alvo os adolescentes. Foi criado então um jogo de cartas com verbetes que têm a ver com a exposição e vão além, com discussões sobre a vida e a morte. A ideia é de que estudantes e docentes que visitem a galeria se sentem em círculo, em pequenos grupos, e escolham cartas com os verbetes para desenvolverem uma troca de percepções.


“Além dos verbetes, as cartas trazem diferentes definições da palavra. Por exemplo, tem a definição de 'morte', e tem também a definição dentro do contexto da exposição, que é um contexto mais afetivo, mais delicado. A ideia é de que, partindo das cartas, surjam discussões entre os estudantes sobre os temas abordados pela exposição”, explica Niara.


O agendamento para visitas de escolas pode ser feito aqui. Mais informações: 3073-6731.


Serviço

Exposição Sono Sereno

Em cartaz até 24 de novembro

Horário de visitação: terça a sexta-feira, das 9h às 12h e das 13h às 17h. Sábados, domingos e feriados, das 13h às 17h.

Entrada gratuita

Onde: Galeria Baobá, no Campus Gilberto Freyre da Fundaj (avenida Dezessete de Agosto, 2187, Casa Forte, Recife-PE)

Mais informações: 3073-6731


A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.


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