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Vila Malícia, Sítio Histórico do Cavalo Marinho, em Glória do Goitá. Foto: Museu do Mamulengo (19/03/2021)

Especial

Patrimônios vivos e suas artes do cuidar em Pernambuco

Por Maria Lana Monteiro e Alexandre Zarias

“Meu quintal é maior que o mundo", disse o poeta Manoel de Barros. Terraços, quintais e bairros inteiros nos abrem para novos mundos quando se convertem em lugares de partilha e preservação de memórias. Casas transformadas em museus nos mostram como a poesia se faz viva através de práticas de zelo e cuidado para além dos seus muros. 

 

Especialmente para este dossiê da Revista Coletiva, exemplificamos como as relações entre memória, cuidado e patrimônios vivos emergem do cotidiano das pessoas que transformaram seus espaços de convívio com arte e educação.

 

Visitamos virtualmente o Museu Ivo Lopes, que ocupa o terraço da casa da Mestra Severina Lopes, uma das guardiãs do coco no município de Arcoverde, sertão de Pernambuco. Da mesma forma, fomos ao Museu do Cavalo Marinho, criado pelo Mestre Zé de Bibi, localizado no Sítio Malícia, bairro rural de Glória do Goitá, na Zona da Mata do estado.

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Mestra Severina Lopes no terraço de sua casa, Museu Ivo Lopes. Foto: reprodução do Instagram (https://www.instagram.com/explore/locations/462185864/museu-ivo-lopes/).

Severina Lopes e Zé de Bibi são patrimônios vivos da cultura pernambucana e nossos anfitriões da incursão virtual que fizemos em seus espaços de acolhida.  Durante a conversa por vídeo chamada, todos nos adaptando aos tempos de pandemia, ambos expressaram suas emoções e falaram de suas experiências, reconhecendo-se ao mesmo tempo patrimônios e membros ativos da comunidade da qual participam.

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Mestre Zé de Bibi comanda a brincadeira no Museu do Cavalo Marinho. Foto: reprodução do Instagram (link: https://www.instagram.com/mestrezedebibi/)

Quando recontam suas histórias, entre loas e toadas, repetem sorrisos e outros gestos corporais com os quais se acostumaram a receber os visitantes dos espaços de arte e educação que fundaram. Ao apresentarem seus museus, estão a nos falar de suas casas, da família, dos vizinhos, dos visitantes que acolhem. Severina Lopes e Zé de Bibi nos dizem "aqui eu cresci", “aqui vivemos e moramos”, “aqui brincamos”, “aqui dançamos juntos”, “aqui fazemos música”, “aqui ajudamos a comunidade”, “aqui ensinamos as crianças”, sinalizando suas práticas de cuidado. 

Transformando o espaço, materializando tradições

"Aprendi a dançar o coco desde pequena, quando amassava barro para construção das casas de palha", diz a Mestra Severina Lopes, ao ser perguntada sobre a tradição do coco que passa de geração a geração. Ela, representante da terceira linhagem de uma família de coquistas, orgulha-se de compartilhar com seus filhos e netos a herança que recebeu de pais e avós.

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Fachada do Museu Ivo Lopes, Samba de Coco Irmãs Lopes, em Arcoverde. Foto: acervo particular, Família Lopes.

Da construção das casas de pau a pique, ou casas de taipa à mão, assistindo sua família e vizinhos juntando-se em mutirões de trabalho e festa, Severina cresceu guardando objetos e, sobretudo, as músicas e danças do coco. Em 2002, fundou o Museu Ivo Lopes, reunindo, na antessala de sua casa, pertences, ferramentas, instrumentos musicais, panelas, coisas de uso cotidiano, fotos, recortes de jornal e fotografias do seu falecido irmão, considerado o Rei do Coco de Arcoverde.

"Vamos guardar!  Guardamos panela, cuscuzeiro, tudo que era da minha família. Do [bairro] Cruzeiro, vim aqui pra Cohab 1. Aqui fiz uma grande amizade. Tomei conta da igreja por doze anos... Fiquei muito famosa, na boca do povo… o povo gosta muito de mim. E eu gosto muito do povo da vila, da comunidade, porque me ajudam e  eu ajudo eles. Cheguei aqui, fiz a casa, fiz um terraço grande, fiz umas coisinhas, fiz um pouquinho de tudo, ia botando as coisas, os amigos iam ajudando.Tá tudo aqui na parede, eu que faço. Convido vocês pra visitar." - Mestra Severina Lopes

Entre os batuques e sambas brasileiros, temos os Cocos do Nordeste. Cantados e dançados em todas as épocas do ano, predominam no ciclo junino. Fruto de experiências, trocadas desde o século XVI, entre africanos e indígenas, apresenta atualmente vários estilos. Dentre eles, destacamos: o coco de embolada; o coco zambê, agalopado, catolé ou bingolé; o coco praieiro; o coco de roda ou circular; coco de umbigada; e o coco de tropel, trupé ou sapateado.  

* Fonte:  http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Anais1_Sambasbrasileiros_m.pdf 

 

* * *

   

O coco trupé é o que ocorre em Arcoverde. Nele, os versos são livres, de rememoração ou feitos de “causos”. O pífano pode ou não estar presente. Os tambores, zabumbas e surdos marcam presença, assim como o sapateado improvisado, que surge do movimento das pernas semidobradas e da forte marcação de bater de palmas e dos pés no chão com tamancos de madeira.

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Objetos em exposição no Museu Ivo Lopes, Samba de Coco Irmãs Lopes, em Arcoverde. Foto: acervo particular, Família Lopes.

Mestre Zé de Bibi também é um exemplo de como as tradições e as dinâmicas das famílias marcam o espaço. "Olha, quando eu era pequeno, eu já tinha esse apelido de mestre, entendeu? - nos diz. Ele explica que não é apenas um mestre brincante. Igualmente, é mestre de obras, mestre eletricista, mestre encanador, tal como se orgulha ao contar suas habilidades para além da brincadeira do cavalo marinho que o encantou ainda na infância.

"A minha história de cavalo marinho começou quando eu era pequeno, na idade de dez ou doze anos. Eu fui assistir a um cavalo marinho na casa dos vizinhos. Fiquei ali a noite todinha deitado, olhando a figura, observando a figura, gostava dele cantando, e eu meditei a coisa todinha, toda a figura. No outro dia, eu fiquei dizendo pra mim, sozinho, 'quando eu crescer, eu vou fazer um cavalo marinho pra mim'" - Mestre Zé de Bibi.

A brincadeira do Cavalo-Marinho foi inventada nas senzalas ainda no século XIX, por trabalhadores da lavoura de cana e suas famílias, e resiste como expressão popular na Zona da Mata Norte de Pernambuco. É considerada uma festa de terreiro, do ciclo natalino brasileiro. Mistura música, danças coreografadas e performances de um teatro repleto de memórias coletivas de suas comunidades, que se atualizam com temas contemporâneos. É reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro desde o ano de 2014* 

* Fonte: “Inventário Nacional de Referências Culturais do Cavalo Marinho - Dossiê 2”  http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/DOSSIE_CVMARINHO.pdf

No Sítio Malícia, zona rural de Glória do Goitá, Mestre Zé de Bibi não construiu e fundou apenas o Museu do Cavalo Marinho em 2009. Dessa localidade, fez o que hoje conhecemos por Sítio Histórico do Cavalo Marinho, uma vila com 21 casas, todas elas erguidas pelo mestre e seus ajudantes de obra. Ele nos conta: "aqui tudo foi construído por ideia de casamento. Eu tenho um vizinho que era muito amigo meu. Aí ele ia casar e me pediu - 'faça uma casinha pra eu morar, que eu não quero sair daqui perto de vocês não'. Aí o povo foi casando, foi chegando, eu fui fazendo as casas e hoje é essa vila muito bonita que dá gosto de ver".

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Vila Malícia, Sítio Histórico do Cavalo Marinho, em Glória do Goitá. Foto: Museu do Mamulengo (19/03/2021)

Patrimônios vivos

Os chamados “Tesouros Humanos Vivos” são pessoas que possuem maestria de conhecimentos e formas para interpretar e recriar elementos de sua cultura. Essa nomenclatura surgiu há pelo menos três décadas, mediante esforços da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), para proteção e valorização de bens culturais e do conhecimento de seus mestres e mestras perpetuados de geração em geração. 

 

Mestre Zé de Bibi fundou o Cavalo Marinho Tira Teima em 1961. Em seus 60 anos de existência, o grupo refaz a expressão cultural típica da região, mobilizando jovens e crianças. Em 2018, o mestre recebeu o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, somado a outros tantos que acumula pelo trabalho que tem desenvolvido. Mestra Severina Lopes recebeu seu mais recente título de patrimônio imaterial de Arcoverde em dezembro de 2020.

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Estante com prêmios e certificações culturais no Museu Ivo Lopes. Foto: acervo particular, Família Lopes.

Segundo a Unesco, patrimônios imateriais abrangem os campos de manifestação da cultura que compreendem tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; as expressões artísticas; as práticas sociais, rituais e atos festivos; os conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e as técnicas artesanais tradicionais. 

 

Os mestres e as mestras são, portanto, essa gente guardiã que responde de modo constante às mudanças sociais e culturais de sua época, preservando, mantendo ou recriando expressões culturais através da partilha e troca de experiência de seus saberes e fazeres populares, tradicionais e artísticos. 

 

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (Art. 216) avançou na perspectiva de assegurar ao Patrimônio Cultural Brasileiro dimensões materiais/tangíveis e imateriais/intangíveis. Alguns instrumentos legais foram fortalecidos. É o caso do Tombamento de bens materiais vigentes, segundo o (Decreto-Lei nº 25, de 30/11/1937). Outros instrumentos, na prática, foram formulados e ainda estão avançando, tal como a regulamentação federal de instrumento do Registro de bens culturais imateriais (Decreto nº 3.551, 04/08/2000), que não inclui de modo direto os chamados Tesouros ou Mestres da Cultura. 

Nesse sentido, alguns estados e municípios vêm assegurando e desenvolvendo políticas específicas e utilizando também a expressão “Patrimônio Vivo”. O estado de Pernambuco é um desses casos. Em ação precursora, estabeleceu o reconhecimento de detentores de saberes, pessoas ou grupos culturais, representantes da cultura popular e tradicional estabelecidos no estado a partir da Lei nº 12.196, de 2 de maio de 2002. 

                

As atividades dos museus Ivo Lopes e do Cavalo Marinho foram impactadas pelas medidas restritivas adotadas para a mitigação da Covid-19. A Mestra Severina Lopes, com seus 86 anos de idade, e Mestre Zé de Bibi, 79, já foram vacinados e aguardam a segunda dose.

 

Atualmente, os dois museus desenvolvem suas atividades de arte e educação com jovens e crianças por meio de auxílios obtidos da Lei Aldir Blanc, recurso emergencial previsto pela Lei Federal n.º 14.017/2020. Os auxílios financeiros federais, obtidos por meio de editais, têm permitido a profissionais da arte e cultura complementarem a renda que utilizam para sobreviver, mantendo parcialmente ativos seus projetos durante a epidemia provocada pelo novo coronavírus. 

Arte e educação em tempos de pandemia

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Mestra Severina Lopes em encontro com estudantes antes da pandemia. Foto: acervo particular, Família Lopes.

Mestra Severina se ressente da interrupção das visitas ao museu. Antes da pandemia, recebia seus visitantes com um bom café e o tradicional mungunzá. "Antigamente, o povo me abraçava. Agora, a gente fica longe, né? É tudo de longe. E tem a máscara, né? Antigamente era abraço, era beijo, tirar foto e tudo. Mas que pena, né?", lamenta.

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Uma criança brinca o cavalo marinho na oficina do Mestre Zé de Bibi durante a pandemia. Foto: Ângelo Azuos

Nesse período, ambos desenvolveram algumas oficinas de arte e educação com crianças, adotando os protocolos de proteção necessários. Porém, essas atividades foram interrompidas nas fases mais agudas de transmissão do coronavírus. "Eu tô aqui parado, na confiança né? Essa vacina é uma proteção pros idosos. A comunidade inteira vai tomar. Esse fardo tá mais violento, mas acaba. Deus é grande e os homens tem poder, tem saber", declara confiante o Mestre Zé de Bibi, que acredita poder abrir o museu quando a epidemia passar. 

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Placa com aviso na entrada do Museu do Cavalo Marinho: "Mestre Zé de Bibi ressalta - não estamos recebendo visitas": Reprodução: Instagram, @mestrezedebibi, link: https://www.instagram.com/p/CLugqJhHonX/

O Museu Ivo Lopes e o Museu do Cavalo Marinho são locais do cuidado com a memória e a tradição de uma comunidade. São também espaços de educação, instrumentos de proteção da vida em muitos sentidos. Mestra Severina Lopes e Mestre Zé de Bibi expressam em suas histórias exemplos de cuidado e acolhimento. Nas suas casas, tornadas museus, cuidam das pessoas, do seu bem-estar físico e social, num sentido amplo em que a tradição e a memória devem ser preservadas. Ao espaço doméstico da reprodução soma-se o espaço da preservação de conhecimentos tradicionais, o qual não está circunscrito apenas à vida em família, em seu círculo mais estrito, mas também à comunidade, seu lugar no mundo. Nossos mestres e mestras são a encarnação desses espaços de vivência que conectam saberes e tradições de um povo, de uma comunidade toda. São eles, portanto, nossos patrimônios vivos por quem devemos zelar. 

PARA SABER MAIS
OS AUTORES
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Maria Lana Monteiro é professora da Universidade de Pernambuco (UPE). Coordenadora do Núcleo de Diversidade e Identidades Sociais (NDIS-UPE). Membro do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do CISAM-UPE e do Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores (LIFE - Fazedorias de Saberes). Atua nos seguintes temas: educação patrimonial, formação cultural, educomunicação, cultura política, política cultural, poder político, ditaduras, regimes autoritários.

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Alexandre Zarias é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Antropologia Social, Especialista em Jornalismo Científico e Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É pesquisador e professor da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS-UFPE).

COMO CITAR ESSE TEXTO
MONTEIRO, Maria Lana; ZARIAS, Alexandre. Patrimônios vivos e suas artes do cuidar em Pernambuco. Coletiva, Recife, n. 29 Coletiva. jan.fev.mar.abri 2021.Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-cuidado-n29-especial-patrimonios-vivos-e-suas-artes-do-cuidar-em-pernambuco. ISSN 2179-1287. 
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