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Entrevista com Ricardo Antunes

Por Por Marcelo Robalinho e Simone Wolff

"Temos de pensar num trabalho que reestruture a humanidade"

Um dos principais nomes da Sociologia do Trabalho no Brasil, o pesquisador Ricardo Luiz Coltro Antunes é o convidado deste número da Revista Coletiva para falar sobre o atual cenário de precarização. Grande conhecedor e comentador da obra de Karl Marx na América Latina, além de autor de livros consagrados, como Os sentidos do trabalho (Boitempo Editorial) e Adeus ao trabalho? (Cortez Editora), ambos traduzidos para vários países no mundo, Antunes reflete, nesta entrevista, sobre as mudanças estruturais que vêm ocorrendo no mundo desde os anos 70 do século XX. Na conversa, realizada virtualmente no formato de conferência em três locais distintos do país (Campinas-SP, Londrina-PR e Recife-PE), ao mesmo tempo, Ricardo Antunes contou o que o levou a estudar as questões relativas ao mundo do trabalho.

 

No cenário de precarização por que estamos passando, ele avaliou o impacto na dependência cada vez maior observada na relação entre o trabalhador e a empresa, tornando a terceirização, na sua visão, uma nova forma de escravidão moderna, além da questão da informalidade. Para Antunes, é fundamental se pensar num outro mundo, mais humano e capaz de recuperar o sentido do trabalho como socialmente útil. “A humanidade vai ter que reconstruir seus projetos societais, mas só poderá fazê-los fora da lógica do pensamento dominante hoje porque a lógica desse pensamento não é voltada para o atendimento dos 99% da população, e sim para apenas 1%. Esse é o grande desafio do século XXI”, defende Antunes, nascido em São Paulo em 1953, professor titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador atual das coleções Mundo do Trabalho (Boitempo Editorial) e Trabalho e Emancipação (Editora Expressão Popular) e colaborador de revistas e jornais nacionais e estrangeiros.

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Revista Coletiva – De onde surgiu o seu interesse por estudar as questões relativas ao mundo do trabalho?

Ricardo Antunes – Ingressei na universidade, em 1972, na Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, para cursar Administração Pública. Eu queria ser administrador de empresas. Porém, durante o curso, eu fui me dando conta de que eu me dedicava muito mais às disciplinas ligadas às Ciências Sociais, à Ciência Política, História e Economia, enquanto às disciplinas propriamente de Administração, como Contabilidade, Finanças e Engenharia de Produção, eu tinha um verdadeiro pavor.

Paralelamente a isso, como eu precisava trabalhar e era muito jovem, tinha por volta dos meus 18 anos, comecei a dar aula de História em cursos pré-vestibulares. Tudo isso não era muito claro ainda para mim naquela época por ser muito jovem. Mas eu me vi dando aula de História e acabei estudando especialmente as disciplinas de Ciências Sociais na FGV. Foi nesse momento que eu cheguei a prestar vestibular para Filosofia na USP [Universidade de São Paulo], onde fui aprovado. No entanto, ficou impossível conciliar os dois cursos porque a FGV é uma instituição que exige muita dedicação dos alunos e eu precisava trabalhar e trabalhava bastante à noite, às vezes de manhã e à tarde também. Foi aí que decidi terminar Administração.

Quando conclui o curso em 1975, eu já sabia que iria estudar Ciências Sociais, na área de Sociologia ou Política, e já tinha decidido estudar a história recente da classe trabalhadora no Brasil. Em 1975 ainda, eu fui aprovado para o Mestrado em Ciência Política, na Unicamp [Universidade de Campinas], que frequentei entre 1976 e 1980. Lá, apresentei minha dissertação sobre Getúlio Vargas e as suas relações com a classe trabalhadora e os sindicatos de todo Brasil. Já era claro que eu queria estudar Ciências Sociais e Trabalho e continuar pesquisando sobre a classe operária, mas não mais numa pesquisa histórica, como fiz sobre Getúlio. Eu queria estudar o ABC Paulista, que na época estava em franco processo de emergência com o cinturão operário industrial e foi o responsável pela eclosão do importante movimento operário. Foi aí que, entre 1981 e 1986, eu optei por estudar sobre as greves metalúrgicas do ABC Paulista, foco da minha tese de doutorado. Dessa maneira, eu consegui construir a minha trajetória na sociologia.

Revista Coletiva –  No atual cenário de crise mundial, quais os impactos para as condições de trabalho?

Ricardo Antunes – Desde 1973, nós tivemos uma crise estrutural muito profunda no capitalismo e a classe trabalhadora vem sendo afetada de modo intenso. Aquele período foi marcado pela crise do chamado binômio taylorismo-fordismo [O taylorismo e o fordismo são duas formas de organização industrial que causaram mudanças profundas no ambiente fabril, objetivando a racionalização extrema da produção e a maximização da produção e do lucro], ainda que, na epiderme dessa crise, nós tivéssemos um problema muito mais complicado de esgotamento de um símbolo expansionista do capital.

Nessa crise de 1973, que marcou num plano mais fenomênico da economia, tínhamos um esgotamento de um símbolo expansionista do capital. Essa crise teve um tripé e foi profundamente destrutiva em relação às forças sociais do trabalho, em particular à classe trabalhadora. Ela começou com a reestruturação produtiva de amplitude global, que, de certo modo, configura-se até os dias atuais, ainda que desigual dada à natureza diferenciada de países como a China, o Brasil, os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão, o México, o Haiti e a África do Sul. São países bastante distintos, ainda que compreendam esse mundo globalizado do capital.

Paralelamente a essa estruturação produtiva, houve a vitória política de um projeto que representou um grande retrocesso, que foi o neoliberalismo. Foi devastador para os sindicatos e a classe trabalhadora, uma vez que seu modus operandi principal era caminhar para a privatização de tudo o que pudesse ser privatizado, pela destruição de tudo que fosse público e que não fosse passível a ser privatizado. Nesse tripé, havia um terceiro elemento, que, de algum modo, enfeixava aos outros dois, que foi a financeirização da economia. Em relação ao trabalho, essas mudanças tinham um objetivo muito claro: a corrosão dos direitos do trabalho, convertendo o trabalho num custo. E o que o capital faz quando os custos se excedem? Corta-os.

Esse tripé destruiu o sindicalismo e o movimento operário forte que os países europeus tinham, como na Alemanha, na França e na Inglaterra, provocando uma alteração muito profunda no universo do trabalho. A legislação protetora, por exemplo, tinha que ser destruída. Os sindicatos de confrontação deveriam deixar de sê-lo para tornarem-se sindicatos de negociação ou patronais. E isso se agoniza, em 2008, quando nós tivemos um novo quadro crítico dessa tendência declinante que começou lá em 1973.

Em 2008, aprofunda-se essa crise, que atinge de modo devastador os países capitalistas avançados, a exemplo dos Estados Unidos, além da França, da Inglaterra, da Itália e da Espanha, que compõem a Europa Ocidental, bem como o mundo asiático, não só o Japão, mas também a China, que desde o final dos anos 90 até o início de 2000 vem se constituindo como a quarta nação que sustenta o capitalismo ao lado das outras nações dominantes até os anos 90, entre elas os EUA, o Japão e países da Europa Ocidental. Essa crise de 2008 atingiu principalmente os países capitalistas avançados e, secundariamente, os países que compõem o chamado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

A partir de 2012 e 2013, percebe-se que essa crise, depois de devastar os países capitalistas e o mundo do trabalho do norte, prolonga para os países do sul, incluindo os do BRICS. Isso ocorre de tal modo que quando a China, que nos anos dourados crescia 12% ao ano e hoje, apenas 6,5%, perde 1% do seu Produto Interno Bruto (PIB), representa um aumento significativo do desemprego lá e em vários outros países, já que ela é o segundo maior comprador do mundo. O resultado disso – que eu venho apontando desde 1995 no meu livro Adeus ao trabalho? – é uma hipótese que aprofundei em um livro posterior, Os sentidos do trabalho, de que nós adentramos numa era de precarização estrutural do trabalho em escala global, na qual  a informalidade não é mais exceção, e sim regra. A terceirização também não é mais exceção, mas tende a ser regra, a exemplo da atual crise brasileira na qual os capitais estão exigindo do parlamento e do governo que a terceirização seja total.

A informalidade, a precarização e a flexibilização da legislação protetora do trabalho trazem como resultante mais profunda o desemprego. Essa crise atingiu profundamente o ideário do capital dos nossos dias, provocando o enxugamento, a redução do trabalho vivo e a ampliação do maquinário informacional-digital. Tomamos como exemplo disso casos no Brasil como a Volkswagen, que, entre 1970 e 1980, contratava 43 mil trabalhadores e hoje tem bem menos que a metade, e o setor bancário, que empregava mais de 800 mil pessoas em 1985 e hoje possui menos da metade do número de empregados e substitui diversos setores, como call center, através da terceirização.

Dizia-se, lá nos anos 80, que a inovação tecnológica acabaria com a classe trabalhadora, mas isso se mostrou um equívoco, pois o que temos é um sistema de trabalho que não é mais balizado pela regulação taylorista-fordista. É um processo em que a relação é cada vez mais dependente entre o trabalhador e a empresa, cada vez mais moldada por relações em que o trabalhador ou a trabalhadora tem dependência com alguma empresa terceirizada que aluga o seu trabalho. Daí a terceirização é uma forma de escravidão moderna por que você passa por uma relação de trabalho entre empresas, como na escravidão passada, na qual os senhores de engenho no Brasil compravam os escravos dos traficantes holandeses. Hoje, você pode ter uma empresa que terceiriza toda a sua produção contratando terceirizados para outra empresa sempre por tentar quebrar a relação de trabalho e outra porque a legislação protetora do trabalho tem que ser demolida visto que o binômio neoliberalismo-financeirização da economia é devastador em relação ao trabalho. Isso afeta todos os ramos da produção.

Revista Coletiva – O Brasil, assim como grande parte dos países do hemisfério sul, sofre bastante com a precarização. Como manter a competitividade diante dessas imposições de reformas que vêm ocorrendo no mundo como um todo?

Ricardo Antunes – Nós, então, chegamos ao “nó” da questão. O nosso gênio da literatura brasileira, João Guimarães Rosa, disse uma frase que eu vou repetir: “- Pão ou pães é questão de opiniães”. É genial essa frase, pois ela mistura o linguajar popular brasileiro com o de um literato. Se imaginarmos que temos que ser produtivos a ponto de competir com a China, o México, o Haiti, os Estados Unidos e a Alemanha, nós estamos aniquilados porque não é assim que funciona. Há uma nova divisão internacional do trabalho. Quem achar que tem que ser produtivo aqui para ganhar o lugar da China vai ver uma população brasileira destroçada, mais do que já é.

Só para dar um exemplo: quando eu estive na Índia, em 2015, o primeiro ministro indiano fez uma proposta. O mundo hoje é conhecido por ser “made in China”, em função de tudo o que é produzido lá. A ideia do ministro da Índia era criar o slogan “make in Índia” para os produtos produzidos na Índia. E qual seria o discreto charme da Índia? Lá, você poderia explorar mais a classe trabalhadora, ainda mais que na China. Há cerca de três anos, quando eu estava no México dando um curso, eu vi um empresariado dizer o seguinte: “- Venha produzir no México que aqui os salários são mais baixos que na China”. No Haiti, você tem condições análogas à escravidão que nem no Brasil tem. Então, é muito mais complicado ter competitividade para produzir a indústria suja para competir com a indústria limpa. Nós temos de pensar num outro mundo. O mundo da produtividade do capital é o mundo da destruição do trabalho. É isso que nós estamos vendo.

O filósofo húngaro István Mészáros dizia no seu livro Para além do Capital, em 1995, ou seja, mais de 20 anos atrás, mais ou menos o seguinte: se a China seguir o american way of life e o padrão capitalista norte-americano em que um em cada três indivíduos tem carro, nós não vamos mais conseguir respirar. A China é altamente produtiva. Quinze anos atrás, a gente pensava que a China produzia quinquilharia, relógio e computador de baixa qualidade. A China está dando um banho de produtividade. A indústria de transporte e o trem-bala chinês são equivalentes aos europeus, a arquitetura chinesa é capaz de fazer uma ponte que ninguém no mundo ocidental consegue imaginar. O custo disso tudo é que você está vendo a China com esgotamento e destruição do seu ar e a degradação da sua população trabalhadora.

Se a lógica destrutiva do capital que preside hoje nas empresas e nas cadeias produtivas continuar assim, nós vamos ter uma classe trabalhadora, daqui a certo tempo, parecida com a Índia. Eu pensei que conhecesse a miséria por morar no Brasil, mas, quando fui à Índia, percebi que não sabia até aonde a miséria humana pode chegar. As condições de exploração da classe trabalhadora chinesa são consideradas hoje o ideal de exploração em escala global. Então, a questão é muito mais profunda. Produtividade, para nós nos tornarmos países ricos, é para 1% ou para 99% da população? Esse é o desafio do século XXI.

Revista Coletiva – Mas se não falarmos de produtividade nem de competitividade, falaremos do que então?

Ricardo Antunes – Humanidade.

Revista Coletiva – Que tipo de humanidade?

Ricardo Antunes – Uma vez eu estava numa determinada praia do Nordeste brasileiro onde tinha ido descansar depois de participar de um debate. Lá, pedi alguma coisa para comer. Do meu lado, tinha um casal comendo hambúrguer, batata frita e tomando um frapê. Quando esse casal terminou de comer, deixou três ou quatro batatinhas no prato e um restinho da bebida. Em seguida, um cara desesperado veio, pulou em cima daquela comida e começou a comer, como se tivesse degustando um manjar ou uma dessas comidas sofisticadíssimas tal o desespero dele.

 

Então, nós temos que pensar em humanidade, em produzir soja para o mercado exportador chinês, minério para o mercado exportador chinês e alimento para a nossa população. Faz sentido que toda cultura tenha mais de 90% dela voltada para as commodities?  Nem soja nós comemos, entende? Nós temos que pensar num novo desenho do mundo. A produtividade não é uma criação do capitalismo. Toda história da humanidade, de certo modo, caminhou como uma roda da história. Não foi o capitalista quem criou o mundo produtivo, os gregos sabiam ser produtivos; os romanos e os egípcios também.

Costuma-se dizer que a Idade Média representou uma “idade das trevas”, mas as populações se alimentavam. Quando um feudo produzia mais vinho e outro, mais trigo, e faltava o vinho, o que é que eles faziam? Uma troca. Eu sou socialista há mais de 40 anos. Não podemos cair na ideia do filósofo e economista americano Francis Fukuyama de que o capitalismo é o fim da história, então vamos nos salvar no capitalismo, não há salvação para a classe trabalhadora no capitalismo, e mais ainda sendo nós do sul do mundo.

 

É ontologicamente impossível você construir uma Suécia no Brasil. É mais fácil a Suécia tornar-se o Brasil do que o Brasil se tornar a Suécia. Dentro do desenho global, onde os países capitalistas avançados da Europa e os Estados Unidos jogam seus dejetos nucleares? É no sul. Por exemplo: alguns países da Europa jogam seus dejetos nucleares no mar para caírem nas praias da África. Eles falam: “mas são todos negros e pobres lá, não faz mal”. Eu nunca vi dejetos no mar da Dinamarca. Daria uma guerra, mas a África e a América Latina sempre foram colônia. Isso ocorre em pleno século XXI.

Para usar uma expressão kantiana, impõem-nos um “imperativo categórico” [um dos principais conceitos do filósofo Immanuel Kant (1724-1804) que representa o dever de toda pessoa agir conforme princípios que considera benéficos se fossem seguidos por todos]. Que sociedade nós queremos para o século XXI? É a sociedade da competitividade? Da informalidade? Da precariedade? Ou é a sociedade da humanidade? Só numa sociedade completamente caótica como a nossa é que poucos trabalham 12 horas, 14 horas, 16 horas por dia e muitos não trabalham hora nenhuma porque não têm trabalho.

 

Qualquer criança com fundamento em matemática diria: se um trabalha 16h e o outro não trabalha hora nenhuma, vamos diminuir o trabalho desse trabalhador para 8h de modo que o outro trabalhe 8h e os dois sobrevivam, e hoje podemos ter uma jornada muito menor. Só que aí você toca no 1% que controla o mundo e esse 1% que controla o mundo, hoje, é o capital financeiro. É ele quem tem o domínio do capital produtivo. É possível que a Grécia leve a sua população idosa à morte para poder remunerar os bancos alemães europeus. Então, nós estamos sendo desafiados a buscar alternativas.

Revista Coletiva – O mundo era muito mais acolhedor antigamente.

Ricardo Antunes – Estamos no momento em que nós temos que recusar o pensamento do “desvalor do pensamento” por alguma coisa como dignidade. A forma, por exemplo, como o governo italiano de Sílvio Berlusconi [político neoliberal que foi primeiro-ministro da Itália entre 1994 e 1995, 2001 e 2006 e 2008 e 2011] tratou as crianças estudantes imigrantes, num contexto de restrição das fronteiras do país para a imigração, ou pelo governo fascista húngaro, para não citar todos os demais, fez com que tivéssemos hoje uma política institucionalizada denominada pelo sociólogo italiano Pietro Basso como uma política de “racismo de estado”. Usa-se o imigrante para o que lhes interessa, para fazer o trabalho sujo e para rebaixar os salários e se jogam fora os estudantes imigrantes, jogam fora os imigrantes quando eles não interessam mais. Então, você não tem como segurar esses milhões de homens e mulheres que estão desesperados numa guerra que não é deles.

Lembram que diziam: “Vamos tirar o Saddam Hussein”? Mas o problema do Saddam Hussein era o país. Só muito excepcionalmente é que o mundo poderia intervir em guerras desse nível quando o banho de sangue é completo. Os Estados Unidos intervêm na política dos países do Oriente Médio por causa das riquezas de petróleo lá produzidas, e querem mostrar que o american way of life é o melhor modelo do mundo e que a democracia americana, também é a melhor. A Alemanha, que quase nos levou à hecatombe 60 anos atrás, não está qualificada para dizer, hoje, como é que os gregos devem viver, quando os gregos, muito antes de a Alemanha existir, já viviam a república. Está tudo de cabeça para baixo. O trabalho é um dos enigmas da nossa sociedade. Se nós não formos capazes de retomar uma vida dotada de sentido para o trabalho e fora do trabalho, nós vamos continuar sustentando um sistema de metabolismo social. Um sistema no qual o trabalho é desprovido de sentido porque ele produz para uma sociedade que é desprovida de sentido de tal modo que a nossa vida no trabalho não tem sentido humano/societal e a nossa vida fora do trabalho também não tem.

Não faz nenhum sentido trabalharmos 12h, 14h por dia para produzir bombas ou um produto que daqui a um mês vai estar desatualizado. Saiu a Apple, amanhã a Nokia vai querer fazer um superior para vender mais e a gente joga fora o anterior. Essa é a lógica do consumo: eu vou jogar fora esse que comprei faz dois meses e agora saiu um que faz outra coisa, depois jogo fora o outro para comprar outro diferente. E eu não sei se vocês sabem, a empresa Apple queria antecipar um lançamento para quebrar uma concorrente e dizer: “o nosso saiu primeiro”. Porém, um jovem que trabalhava na Foxconn, na China, onde se produz os aparelhos da Apple, foi profundamente penalizado porque cometeu um erro que quebrou a programação e o seu “atropelo” fez com que o cronograma de antecipação mudasse e a grande transnacional perdeu a chance de lançar o seu produto na frente. Isso foi em 2009 e o operário se suicidou por não suportar a culpabilização. É essa a produtividade que nós queremos? Não.

Isso não significa que nós não podemos pensar na ciência e na produção sobre novos valores. Então, como impedir o aquecimento global? Alguém de nós tinha noção dos riscos que as mineradoras causariam ao Brasil? Rompeu uma barreira, tem mais duas ao lado na iminência de serem implodidas. Tem centenas de barreiras nas lagoas e os dejetos dos minérios de Minas Gerais. A previsão da mineradora Samarco, se houvesse uma crise tal qual a que ocorreu, era chegar perto daquela cidade que foi tomada. Isso não tem visão. E nós estamos falando de uma empresa ligada a um grupo considerado modelo, o melhor do mundo, que é a Vale S.A. (antiga Companhia Vale do Rio Doce, privatizada em 1997). Então, o que é que a Vale nos trouxe? Uma destruição inimaginável. Você imagina se a segunda ou a terceira dessas barragens tivesse arrebentado. Poderia ter parte de Minas ou Espírito Santo completamente eliminado. Então, quando a gente diz que a lógica produtiva destrói o trabalho e a natureza, isso nos impõe uma lógica da competição.

Revista Coletiva – É por isso que o senhor defende a desestruturação do capital através de um trabalho estruturante da humanidade?

Ricardo Antunes – É isso mesmo. “Trabalho é uma atividade vital”, como diria o Karl Marx [sociólogo alemão que viveu entre 1818 e 1883 e foi responsável por parte importante do entendimento atual sobre o trabalho e sua relação com o capital], mas essa atividade vital, sob o domínio da mercadoria e do capital, reconfigurou-se e se deformou ainda mais, tornando-se necessária tão somente para o enriquecimento de 1% da população. Por isso que eu digo que o trabalho estrutura o capital e enriquece o capital, desestruturando a humanidade. A saída então é pensar num trabalho que desestruture o capital para reestruturar a humanidade. O capitalismo não é o fim da história. Lembra quando eu dizia que o capitalismo é o fim máximo da história? Só que nós não sabemos as alternativas.

 

Tiveram várias para nós, socialistas, mas qual socialismo nós queremos? Do século XIX? Não, porque ele foi derrotado. Do século XX? Não, porque foi derrotado também. A humanidade vai ter que reconstruir seus projetos societais, mas só poderá fazê-los fora da lógica do pensamento dominante hoje porque a lógica desse pensamento não é voltada para o atendimento dos 99% da população, é para aquele 1%. Qual é a lógica que existe no sistema financeiro? É reproduzir mais dinheiro a qualquer custo sempre. E nós não podemos aceitar isso, porque a contrapartida disso é a desestruturação da humanidade. Recuperar o sentido do trabalho como atividade socialmente útil é incompatível com o capitalismo destrutivo. Se nós continuarmos nessa, daqui a dez anos vamos estar com índices oficiais de 25% de desemprego.

Revista Coletiva – O senhor falou que o consenso está cada vez mais difícil e isso parece ser um grande sintoma de que já não está mais tão fácil convencer as pessoas de que esse é o melhor dos sistemas.É por isso que o senhor defende a desestruturação do capital através de um trabalho estruturante da humanidade?

Ricardo Antunes – O trabalho também é muito desestruturado. Hoje as pessoas acham que o neoliberalismo foi um fim glorioso. O principal que o neoliberalismo conseguiu foi incutir a ideia de que você tem que ser um idealista possessivo porque o sucesso depende da eliminação do outro. Como é o café da manhã de muitos casais? A confusão começa aí, só para dar um exemplo. A dissociabilidade começa no universo mais micro, que é o familiar. Quando você sai do universo microcósmico e vai às empresas, a filmografia francesa e a espanhola são geniais. Muitos filmes recentes sobre as tragédias do trabalho, como o filme belga “Dois dias, uma noite” (Deux jours, une nuit) ou o britânico “Ou tudo ou nada” (The full monty), apontam que o trabalho se tornou o espaço da destruição. Mas não era para ser assim. Isso não é uma lei. O mundo é uma conquista humana, a humanidade pode buscar caminhos. Estamos numa época difícil em que a contra produção, o horror nazifascista, o horror xenofóbico e o horror dos que discriminam têm ganhado força. Isso é assustador, uma fase em que o horror desponta como o novo “pós-moderno”.

Revista Coletiva – Seria somente através de uma revolução que a gente poderia mudar esse cenário no qual 99% precisam de uma nova perspectiva de viver um sentido do trabalho que tenha realmente sentido contra 1% que comanda as regras, as leis e o mundo em si? Como podemos mudar esse cenário?

Ricardo Antunes – O capitalismo é um sistema totalizante e totalitário. Evidente que, se eu falar “sim, será por uma revolução”, deveria dizer que tipo de revolução será e eu não tenho a menor ideia. Será uma revolução como a cubana, a chinesa ou a russa? Penso que não. Então, a palavra revolução é muito marcada de um sentido histórico. No século XXI, não vamos ter uma revolução nos moldes da francesa ou da russa. No mundo atual, ou você tem uma transformação profunda, uma revolução no modo de vida e no sistema de metabolismo social que comanda a humanidade ou vamos caminhar para a destruição. E tem mais: não é só a destruição do trabalho e da natureza ao modo da ariana ou ao modo da hecatombe chinesa de hoje ou ao modo do vazamento de petróleo e gás no Golfo do México que ocorreu em 2010 com a explosão da plataforma da petrolífera inglesa British Petroleum (BP).

 

Estamos na eminência da destruição que pode advir de uma guerra. Com o deslocamento de um milhão de pessoas pelo mundo, você tem um descaso humano absoluto e a iminência de uma conflagração mundial, não restrita a um país que tem a bomba atômica. Eu diria que nós estamos numa época de transição. As placas tectônicas estão batendo. Quando elas batem, na geofísica, geram os terremotos e os maremotos. Eu estou falando das “placas tectônicas sociais”. Em meio a toda essa confusão, nós somos privilegiados porque estamos vivendo um momento espetacular para analisar isso. Pode-se dizer que é o momento mais difícil da sociedade que podemos imaginar. Mas é, ao mesmo tempo, espetacularmente imprevisível. Quem podia pensar que a União Soviética, o segundo país mais forte do mundo e com um império militar similar ao norte-americano, iria cair da maneira que caiu, sem nenhum invasor agindo para derrubá-la. Caiu igual a um castelo de areia. Ninguém poderia escrever, há alguns anos, que estaríamos à beira de um colapso soviético.

 

A história é imprevisível. Podemos estudar para compreender. A história não é teleológica, é uma criação cotidiana. A história irá aonde a humanidade for. E com a humanidade tão heterogênea, difundida e fraturada como a de hoje não há nenhum sinal apontando aonde ela vai. O momento, como disse, é difícil, mas a luta central da humanidade, neste século XXI, deve ser pela emancipação.

COMO CITAR ESSE TEXTO

ANTUNES, Ricardo. Entrevista com Ricardo Antunes [maio.jun.jul.ago. 2016] Recife: Revista Coletiva. Entrevista concedida à Marcelo Robalinho e Simone Wolff. Disponível em: <https://www.coletiva.org/entrevista-dossie-precarizacao-e-trabalho-n19-com-o-sociologo-do-trabalho-ricardo-antunes>. ISSN 2179-1287.

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