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Entrevista com Alexandre Brasil Fonseca 

Por Joanildo Burity

A tolerância religiosa e o papel do Estado na garantida da liberdade e culto

Uma das referências nas ciências sociais brasileiras, que esteve diretamente envolvido na articulação e promoção de uma política pública da diversidade religiosa e dos direitos humanos no Governo Federal entre 2012 e 2016, Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca é o convidado deste número da Revista Coletiva para falar sobre tolerância religiosa e o papel do Estado na garantia da liberdade de culto e de uma convivência pluralista entre as religiões e a não-religião. “Episódios de intolerância têm ocorrido em diversos contextos, sendo o religioso mais um. Esses episódios têm muita relação com outras discriminações, como a racial e a homofobia. Disputas patrimoniais também estão presentes”, afirma.

 

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ficou cedido, entre agosto de 2012 e o início de 2017, à Presidência da República, onde tratou, além da diversidade religiosa e dos direitos humanos, de temas como participação social, diálogos sociais e segurança pública. Para ele: “O estabelecimento de espaços de solidariedade e de apoio social cumpre importante tarefa no cotidiano das comunidades. As religiões representam significativa expressão cultural da vida humana e, como tal, representam um valor a ser conhecido e considerado”. Alexandre Brasil Fonseca é autor, entre outros, do livro “Estado, secularização e diversidade religiosa no Brasil” (2011).

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Revista Coletiva – Qual a sua avaliação das relações, seja na dimensão do cotidiano ou da vida pública, entre as diferentes tradições religiosas existentes no Brasil? Você acha que se pode aplicar o conceito de pluralismo religioso?

Alexandre Fonseca – O Brasil passa a experimentar uma situação de pluralismo religioso recentemente e de forma ainda inicial. Temos ainda um predomínio católico significativo aliado ao crescimento e expressão de outro grupo cristão, os evangélicos. Esse quadro tem alterado a configuração do campo religioso brasileiro e tem se estabelecido uma situação de diversidade com um grande leque de opções e tradições sendo criadas e se estabelecendo. Nos últimos anos, também há o crescimento do número de pessoas sem religião e com isso cabe, cada vez mais, ao Estado dar respostas que garantam a laicidade, a liberdade de culto e o respeito às crenças e convicções.

Revista Coletiva – Que aspectos das práticas institucionais das religiões interessam à ação do Estado? E que papel você visualiza para o Estado brasileiro em relação às religiões, em relação aos temas da liberdade religiosa, da garantia dos direitos humanos de todas as pessoas e da contribuição cívica das religiões à democracia e às políticas públicas?

Alexandre Fonseca – As ações de assistência e de acolhimento das religiões são uma importante presença na sociedade. Com sua capilaridade, essas instituições promovem diferentes modalidades de acolhimento e cuidado que são importantes para o tecido social. O estabelecimento de espaços de solidariedade e de apoio social cumpre importante tarefa no cotidiano das comunidades. As religiões representam significativa expressão cultural da vida humana e, como tal, representam um valor a ser conhecido e considerado. O Estado deve buscar adequar o diálogo com estas instituições, como também com as outras entidades da sociedade civil. Por exemplo, a partir de um longo processo de diálogos e trocas, em 2016, passou a vigorar o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, iniciativa que demarcou bem o papel do Estado no estabelecimento de parâmetros republicanos para a sua relação com as entidades religiosas e a sociedade civil.

 

Em relação à liberdade religiosa, o Brasil é considerado o país com menor presença de restrições governamentais às práticas religiosas no mundo. Isso é interessante e demarca a quase ausência de regulamentação, que sempre é sensível e limitada. Por outro lado, essa situação abre possibilidades para toda e qualquer iniciativa, contexto em que cabe ao Estado, por meio dos seus órgãos competentes, garantir a liberdade de culto, enfrentar a intolerância religiosa e promover o respeito à diversidade.

Revista Coletiva – Você poderia falar sobre as iniciativas, no âmbito do Governo Federal, que lidam com a temática do pluralismo religioso no Brasil, desde que você passou a integrar a equipe da Secretaria Geral da Presidência e posteriormente o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos?

Alexandre Fonseca – Na Secretaria Geral, foram desenvolvidos dois projetos. Um, em parceria com a FUNDAJ, que foi o Projeto Oficinas Deliberativas Direitos Humanos e Diversidade Religiosa, com o objetivo de promover, no território, o encontro de pessoas de diferentes confissões e pessoas sem religião para pensar e discutir a temática da religião à luz dos direitos humanos. Com essas oficinas, buscamos promover oportunidades para a reflexão e a interação entre lideranças.

 

Outra frente, em parceria com a UNICEF, foi o Movimento Paz & Proteção. Nessa iniciativa, dialogávamos com lideranças religiosas visando a colaboração entre si e com o poder público, no sentido de estabelecer cada comunidade religiosa como um local seguro para crianças e adolescentes. Um dos focos dessa iniciativa é o registro civil de nascimento, buscando garantir que todas as crianças no território das comunidades tenham acesso a essa documentação.

 

Em todas essas iniciativas, tivemos a participação de um amplo escopo de confissões religiosas. Já a partir do segundo semestre de 2015, um foco importante foi o desenvolvimento de ações de promoção ao respeito à diversidade religiosa, a partir da criação e fortalecimento de mecanismos para tal (cabe citar aqui os comitês estaduais e o nacional de promoção do respeito à diversidade religiosa e o Disque 100, que recebe denúncias de casos de intolerância religiosa).

 

A partir da Secretaria de Direitos Humanos (SDH), foram iniciados processos para a criação de uma rede de proteção às vítimas e foi produzido o Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil, finalizado em maio de 2016, trabalho que reuniu cerca de 20 pesquisadores e que coletou dados nos estados a partir de reportagens, autos policiais, processos judiciais, informações de ouvidorias e estudos de caso. Também foram produzidas duas campanhas pelo Governo Federal: “Filhos do Brasil” e “#Acredite no Respeito”, as quais infelizmente circularam bem menos do que o esperado em decorrência do afastamento da Presidenta, a partir de maio de 2016.

Revista Coletiva – Como você percebe, nessas experiências governamentais e em suas andanças pelo país, nos últimos anos, os papéis cumpridos pelas religiões nos contextos da pluralidade social, cultural e da conflitividade política do Brasil? Onde você identificaria os maiores problemas?

Alexandre Fonseca – Às vezes, percebo o aumento da fervura em relação a alguns conflitos existentes, daí ser necessário um maior investimento dos órgãos públicos e da sociedade na fomentação de espaços de trocas e diálogos. Episódios de intolerância têm ocorrido em diversos contextos, sendo o religioso mais um. Esses episódios têm muita relação com outras discriminações, como a racial e a homofobia. Disputas patrimoniais também estão presentes. Estamos, então, diante de um complexo quadro social que possui vários elementos e só perdemos se o reduzirmos a uma situação que serve mais para alimentar polarizações. Superar essas questões, ter uma ação eficiente do Estado no enfrentamento desta situação e garantir os direitos de cada um para que possam professar sua fé, direito humano fundamental, é o desafio que se coloca em nosso cotidiano. Penso que essa busca de se evitar polarizações simplistas seja o maior desafio.

Revista Coletiva – Como você relaciona a desenvoltura política de algumas religiões no Brasil em relação aos temas do pluralismo religioso e da convivência democrática?

Alexandre Fonseca – Esse é um ponto sensível e complicado, especialmente porque a religião passa a ser utilizada como narrativa central do mandato de alguns políticos. Essa mistura da religião com a política geralmente traz consequências complicadas e é preciso muita maturidade da sociedade brasileira para termos a compreensão de que convicções de uma religião não cabem como referência ordenadora do direito e da vida da sociedade.

 

Como, para alguns, o discurso religioso é fundamental em sua estratégia de conseguir votos, acaba sendo natural o transbordamento desse em suas práticas e atos. Separar isso é fundamental, reconhecendo o direito que cada um possui de exercer a sua fé ou não-fé, porém, isso passa pela diversidade de opções existentes, não podendo ser algo imposto a partir de uma perspectiva. Ouvi certa vez um advogado afirmar que o direito à liberdade religiosa era referência central para os novos direitos sociais, pois por meio dele a sociedade viu ser possível a convivência entre diferentes de forma respeitosa e amigável.

Revista Coletiva – Você tem acompanhado as ações do Comitê Nacional da Diversidade Religiosa desde sua criação. Como avalia a contribuição desta instância de representação social na atual conjuntura e que potencial vê para ela nos próximos anos?

Alexandre Fonseca – O Comitê tem apenas três anos de funcionamento, sendo um importante desafio o diálogo para dentro do governo. Uma das primeiras decisões do Comitê foi a de ampliar a presença de representantes dos Ministérios no colegiado, reconhecendo a importância desse diálogo permanente. O Comitê produziu boas discussões sobre a temática do Ensino Religioso, tendo participado de audiência pública no STF e tendo feito uma de suas reuniões no contexto do Congresso Nacional sobre Ensino Religioso do FONAPER.

 

A criação de uma rede de proteção às vítimas faz parte de resposta à discussão iniciada no Comitê, como também foi o caso da criação de um módulo específico no Disque 100 para denúncias por discriminação religiosa em terreiros, solicitação feita pelo comitê. A existência do Comitê certamente contribui para que no dia 21 de janeiro de 2016, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, sejam realizadas diversas atividades em quase todos os estados. O comitê também tem tratado de temas mais gerais, como a questão da maioridade penal, posicionando-se contrariamente à redução.

Revista Coletiva – Num país cuja cultura pública é ainda fundamentalmente uma mescla tensa de catolicismo e laicismo, como você percebe a participação de agentes e gestores públicos vinculados a outras religiões no âmbito das estruturas de Estado e de governo? Há pluralismo religioso também nesse nível?

Alexandre Fonseca – Essa é uma questão difícil, afinal, não se pergunta a religião do outro como se pergunta o nome.  Mas, de um modo geral, penso que o perfil religioso acompanha muito o perfil socioeconômico. Gestores públicos têm formação superior, muitos possuem pós-graduação e em geral estão nos estratos mais altos da sociedade. Isso demarca uma configuração religiosa e diria que, pelo que vejo, ela caminha nessa direção nesses espaços.

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