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E n t r e v i s t a 

Publicada:  13.06.2018

Entrevista realizada no dia 29.03.2018

Por Aline Cavalcanti, Cecília Godoi, Marcela de Aquino, Pedro Silveira

Vilma Reis

Vilma Reis é  ativista do movimento de mulheres negras e, desde de 2015, Ouvidora Externa da Defensoria Pública da Bahia. Tem graduação e mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde atualmente faz seu doutorado no Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos.

Cresceu na cidade de Nazaré das Farinhas, no Recôncavo Baiano, região historicamente marcada pela irrupção de rebeliões negras. Lá, vivenciou com a família as tradições das Festas de Largo e entrou em contato com a atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Aos 14 anos, foi morar no Subúrbio Ferroviário de Salvador, onde se aproximou do movimento estudantil e das lutas em defesa da escola pública.

Em 1992, participou da coordenação do 12ª Encontro Nacional Feminista, o qual tinha o intuito de formar um espaço político que afirmasse a especificidade do feminismo negro, indo além dos espaços demarcados por um feminismo branco, de classe média e acadêmico. Seis anos depois, participou do primeiro programa de mulheres negras brasileiras, realizado na Universidade de Harvard, em Washington, durante 5 anos. Após seu retorno ao Brasil, trabalhou no projeto Raça e Democracia nas Américas com a Dra. Luiza Bairros, referência no combate ao racismo institucional. A formação intelectual de Vilma rompe com o projeto de sociedade baseado no modelo da Casa Grande que dissemina a violência institucional no país.

Em 30 anos de trajetória política, integrou o Coletivo de Mulheres Negras da Bahia, o Fórum de Mulheres de Salvador, a coordenação do Centro de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa da Bahia e do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceafro). Também assumiu a presidência do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN), órgão vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi).

 

Entre 2009 e 2012, participou do Movimento de Defesa das Comunidades Quilombolas na Chapada Diamantina. Recebeu, no ano de 2016, a medalha Zumbi dos Palmares por sua luta contra o racismo e a favor da cultura afrodescendente .  Entre os principais trabalhos de sua autoria, está a tese de doutorado “Mulheres Negras – Criminalizadas pela Mídia, Violadas pelo Estado”.

COLETIVA : Vilma, conte-nos sobre o trabalho que você realiza na Defensoria Pública e qual é a importância da defensoria no acesso à justiça das populações mais vulneráveis?

O que as Ouvidorias Externas apresentam às Defensorias Públicas do país é um projeto que garanta o que nós, efetivamente, temos usado como voga: sem ouvidoria externa, não há democracia na justiça. A experiência histórica da população mais vulnerável em relação à justiça era sempre de larga situação de medo, na condição de ré e, muitas vezes, de subalternidade. Nós decidimos pautar o sistema de justiça em outro posicionamento e a partir de outro lugar, que é o da altivez, ou seja, o de entrar pela porta da frente e não falar baixo. Isso se deu quando a dinastia de togas, cujo sistema era intocável e inquestionável, foi desafiada pela experiência das ouvidorias externas, em 2006. A criação da Defensoria Única de São Paulo viabiliza essa experiência e, em 2009, a segunda Ouvidoria Externa da Defensoria Pública no Brasil passa a ser da Bahia. Nós iniciamos essa Ouvidoria com o objetivo de ser parte do controle de participação e representação democrática dentro do sistema de justiça. É um desejo nosso o de que a sociedade não esmoreça em dar opinião, se colocar, questionar e, inclusive, discordar do que os senhores dentro dos tribunais pensam e decidem sobre a vida da população.

 

Agora, imagine ter uma representação quilombola no conselho consultivo da Ouvidoria do Trabalho, como nós temos Rosimeire dos Santos, uma das principais representantes da luta do Quilombo Rio de Macacos da Bahia, que vem enfrentando, por pelo menos 11 anos, a Marinha de Guerra do Brasil. Imagine ser um conselho que tem Odara, mulher trans que compõe o conselho no grupo cooperativo da Ouvidoria Cidadã da Bahia; ter Mãe Zilda Pascoal, Ialorixá de Santo Amaro, posicionada dentro desse conselho; poder contar, ainda, com o jovem Vitor Marques, fundador de um quilombo educacional, o Quilombo do Orobu, dentro de uma área de 600 mil habitantes no bairro de Cajazeiras, em Salvador. Isso é muito revolucionário e muito importante no debate sobre educação e direitos, sobretudo em um campo cheio de certezas como é o campo da advocacia profissionalizada, seja nos tribunais de justiça, no Ministério Público, na Defensoria Pública e nos demais eixos do sistema de justiça. Essa experiência, portanto, é histórica.

 

Atualmente, sou a presidente do Conselho Nacional das Ouvidorias da Defensoria Pública no Brasil. No Ceará, a companheira Meyre Coelho, representante do Instituto Negra do Ceará (INEGRA), tem como uma de suas principais bandeiras a luta contra o encarceramento feminino. Ela cumpre o segundo mandato como ouvidora externa da Defensoria Pública do Ceará. No Pará, recentemente, foi criada a Ouvidoria Externa e, no Acre, a companheira Solene acabou de ser eleita. Uma mulher que vem do núcleo de direitos humanos, eleita ouvidora externa da Defensoria Pública do Acre. Então, são doze estados que já têm Ouvidoria Externa, incluindo aos já mencionados: Distrito Federal, Mato Grosso, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Isso é muito significativo para um sistema que não sofria questionamentos. Uma coisa é uma quilombola chegar no balcão da Defensoria e apresentar uma questão, outra é uma quilombola ser membro do conselho externo da sociedade civil e poder, a partir de seu município ou da Região Metropolitana de Salvador, apresentar uma questão diretamente, como parte de um processo.

COLETIVA: De forma mais geral, quais são as principais questões que atingem as mulheres negras no Brasil? 

Na última Campanha do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), 16 propostas contra o encarceramento em massa foram defendidas ao se observar que, em uma década, houve um incremento de 516% no aprisionamento de mulheres implicadas nesse absurdo, nessa obscenidade chamada guerra às drogas. Enquanto ativistas do Movimento Mulheres Negras, enquanto parte de uma organização anticapitalista e antirracista, nos posicionamos contra o projeto de desenvolvimento que aniquila as possíveis formas de bem viver de nossas comunidades. Nos juntamos à fala de Angela Davis que diz: quando nós, mulheres negras, nos movemos, nós movemos também toda a sociedade, porque essa sociedade continua em nossas costas e nós continuamos sendo a base dessa pirâmide. Nesse sentido, a própria Angela Davis nos convoca a não recuar e a questionar o super-encarceramento, a guerra às drogas e o desmonte das políticas sociais no Brasil, conquistadas com muita dificuldade nos últimos 15 anos.

 

Nós temos enfrentado barreiras no mundo do trabalho. O desafio, em um país de concursos para serviço público, era o de, até chegarmos em 2012, vencermos o questionamento incompreensível da inconstitucionalidade das cotas. Enquanto a gente encontra respostas e reage, o racismo segue articulado interseccionalmente com o sexismo e mais outras categorias de opressão. Ele ergue novos desafios, novas perguntas. Até ontem, a resposta covarde do racismo à brasileira era que nós não estávamos no mundo do trabalho a não ser através do chão de fábrica e da dureza que é o trabalho informal. Muitas vezes, a situação do campo de serviços em que as mulheres negras estão é exatamente a mais insalubre ou elas estão jogadas no trabalho doméstico. 7,8 milhões de mulheres negras ocupam essa atividade.

 

É importante lembrar: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que o trabalho doméstico não recua no Brasil e isso nos diz muito sobre essa sociedade. É importante dizer que essa resposta covarde do racismo à brasileira até ontem era articulada pelo discurso “vocês não conseguem ir para outros lugares, porque vocês não alcançaram o ensino formal superior e não chegaram às universidades”. Então, em 2001, é implementada a instituição das cotas raciais no Rio de Janeiro e, após o advento das cotas na UNB em 2004, ela é aplicada em mais de 127 instituições públicas de ensino pelo país. Quando se acrescenta os programas PROUNI e FIES no sistema privado de ensino superior, inverte-se uma falta que os pesquisadores como Ricardo Henrique e outros diziam que, apenas com muita luta, levaria 132 anos para se superar. Nós invertemos uma situação que parecia um desafio secular, e o fizemos em 15 anos de cotas. Hoje, a nossa presença é significativa no ensino superior e, inclusive, nas chamadas carreiras imperiais, como é o caso das engenharias, ciências médicas e biológicas e no campo das ciências jurídicas.

 

O acesso digno ao mundo do trabalho implica luta acirrada, contudo no horizonte é possível observar uma vitória contundente, assim como foi a vitória das políticas de ações afirmativas no ensino superior. Obviamente que, quando se tem uma situação em que quase 8 milhões de mulheres subsistem do trabalho doméstico, sendo 70% delas mulheres negras, segundo a OIT, ainda é necessário muita luta. A natureza desse trabalho sedimenta uma cultura apoiada na colonialidade do racismo. Por isso, está impregnado no imaginário coletivo que somos de outro lugar ou que existe um lugar pré-determinado para nós. Desconstruir esse imaginário, paralelamente à luta pela ocupação digna do trabalho, é uma medida decisiva. O Mapa da Violência, divulgado exatamente no dia da Marcha de Mulheres Negras em 2015, nos mostra que em uma década houve o recuo de 9% da violência contra as mulheres brancas enquanto que, no mesmo período, a violência se ampliou em 54% para as mulheres negras. Esse deveria ser um dado assustador para todo o país, mas, lamentavelmente, apresenta-se assim apenas para determinados setores. Angela Davis nos alerta que não basta não ser racista, não basta não praticar racismo; é preciso ser antirracista.

COLETIVA: Em países como o Brasil e os Estados Unidos, a população tem denunciado o genocídio da população negra. Eu gostaria que você explicasse ao leitor que não está familiarizado com esse debate o que é que significa falar em genocídio e como essa violência afeta, em especial, as mulheres negras.

É importante dizer que não vamos substituir a dor e a subjetividade das mulheres negras colocando-as, exclusivamente, como  as mães de vítimas. Essa é uma primeira questão que pesa muito, porque é como se, mais uma vez, as mulheres não tivessem direito à própria vida. É importante dizer que essa tragédia que se abate sobre o Brasil tem impacto direto na vida das mulheres negras, independentemente de serem mães ou não. As ideias que observamos nascer no movimento de mulheres negras na marcha, em 2015, tem a ver com o direito de existir. Essa é uma segunda questão. Diante da ausência de políticas, de saídas, de priorização da população negra, seja no campo ou na cidade, seja em relação às populações pescadoras ou às quilombolas, a única organização de socialização em seus bairros é o terreiro de candomblé. Toda a política básica que deveria estar no bairro é completamente ausente. As mulheres dessas comunidades não têm direito à creche e, assim, o espaço do terreiro, que é do povo, passa a ser o local onde elas podem deixar as crianças.

 

Uma baiana que vende acarajé em Salvador, sai para trabalhar e emprega de 10 a 20 pessoas. Muitas vezes, inclusive, acolhe o filho daquela outra mulher que trabalha com ela, porque não há o direito à creche. Quando essa mulher [a baiana] se vê cercada, no seu bairro, por uma força de segurança que deveria estar ali para ser mediadora de conflito e é, contrariamente, intensificadora, com seus camburões e viaturas, não há paz no bairro. Naquele dia, não há produção. Ela não será a líder que ajudará a sustentar uma cadeia para que homens e mulheres negros tenham dignidade. No momento em que se estabelece a militarização de um território negro, seja em Recife, seja em Maceió, seja São Luiz do Maranhão ou Salvador, você destrói uma cadeia e um processo comunitário de vivência e sobrevivência da população negra, o qual era liderado por mulheres negras. Essa é uma face direta da violência institucional dentro dos bairros, que não entra, muitas vezes, na contagem desse campo trágico do genocídio. Precisamos pôr em evidência esse papel das mulheres negras.

 

Para cada jovem que tomba, como é que essa comunidade inteira acolhe aquela mãe que se torna morta-viva? Esse peso inteiro está nas costas das mulheres negras. O que temos posto em pauta é como essa sociedade vai realizar políticas reparatórias, porque uma coletividade inteira está sendo impossibilitada de continuar, de existir, de ter direito à vida. Em um modelo no qual os homens negros são absolutamente aniquilados, paralisados, segregados e desterritorializados, Luiza Bairros nos lembra que eles, lamentavelmente, não viverão muito, mesmo no que se anuncia como projeto histórico de valorização da masculinidade. Esses homens estão paralisados desde os 14, 16 anos e, quando eles completarem 21, ainda estarão, porque não existem políticas focadas neles e, mais uma vez, serão as mulheres que continuarão segurando o barco.

Ilustração:  Ianah Maia

COLETIVA: A partir desse processo violento de genocídio da população negra, como você percebe a especificidade referente à população negra LGBTQ?

Os impactos da transfobia e do transfeminicídio têm sido tão demarcados por raça que nós ainda devemos um levantamento contundente nessa área. Mas me anima ver lideranças como Thiffany Odara, Lisa Ferreira, Viviane Vergueiro e Jô de Andrade, mulheres lésbicas que compõem o conselho da Ouvidoria e fazem lutas muito fortes na Bahia contra essa violência. Quando eu falo de Keyla Simpson, eu estou falando de todas as lideranças negras LGBT que se levantam na luta, aqui na Bahia, e que nos chamam para um campo de compreensão, muitas vezes, silenciado e aniquilado do debate.

 

Durante muito tempo, o debate LGBTQ no Brasil foi percebido como um campo de lutas que não tinha a presença de negras e lésbicas negras, de homens gays negros ou da população  trans negra. Nós observamos essa presença e essa representação, através das quais todas as identidades lutam para assumir a superfície de forma legítima, e nos chama a atenção o fato de a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil ser de apenas 35 anos, segundo a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra). O coletivo Transs Pra Frente, desde o ano de 2015, tenta se aproximar do sistema de justiça, não só para garantir as questões e os embates pelo direito ao nome social e às cirurgias para a mudança física, mas também para construir redes estratégicas. Vejo isso tomando muita força, mais do que os movimentos mais tradicionais do campo LGBT, muito marcado por uma presença masculina, branca e de classe média. Quando o Coletivo Bafo e outros se erguem na Bahia, fico com muita esperança, porque são jovens que se organizam a partir da periferia, que não estão deixando que outros jovens substituam suas vozes.

COLETIVA: Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio mostram que as mulheres que vivem nas áreas rurais têm um alto nível de vulnerabilidade social. Como você enxerga o panorama geral das questões quilombolas com relação à vulnerabilidade das mulheres?

Temos acompanhado uma luta mais nacional junto ao Conselho Pastoral de Pescadores e Pescadoras (CPP), o qual mobiliza e reúne a luta quilombola. A questão desafiadora foi a votação do decreto 4887/2003, que versa sobre a demarcação de terras ocupadas por remanescentes quilombolas. Ela foi ameaçada pelo DEM e pela ação covarde da bancada ruralista no Congresso. Uma coisa que a gente tem observado é que a maioria das lideranças das comunidades quilombolas são constituídas por mulheres. Elas são descritas como pescadoras, porque têm duas atividades (plantio e pesca), e, muitas vezes, são constrangidas ao tentarem comprovar a aposentadoria nos postos do INSS.  

 

É importante mostrar a dimensão da violência institucional sobre uma população que foi e continua sendo desassistida. Muitas vezes, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Quilombola é o último a oferecer assistência aos municípios. Na Bahia, estamos vivendo um horror com o fechamento das escolas quilombolas. Tem denúncia realizada à Ouvidoria da Defensoria Pública no Quilombo do Agreste, na região da Chapada Diamantina, no município de Seabra. Outra denúncia é do Engenho da Ponte, no município de Cachoeira, região histórica da Bahia, no Recôncavo, onde uma escola fundada em 1953 foi covardemente fechada e tivemos que entrar com liminar para que fosse imediatamente reaberta.

 

Lideranças como dona Bernadete, como dona Claudenice do Quilombo da Iúna e todas essas mulheres correm riscos para apresentar as denúncias. Ao acompanharmos essas comunidades, é visível a ausência do poder público, do ponto de vista da política de base. Enquanto a mulher está coletando e fazendo beneficiamento do marisco, ela poderia ter direito à assistência, a uma creche para seus filhos. Assim como tem assistência hoje no Quilombo da Ilha de Maré, território constituído por nove comunidades quilombolas, mas isso é devido à iniciativa dos próprios moradores. São as mulheres que não têm o aparato da política básica que são as mais afetadas.

 

Quando elas entram em um clima de muito sofrimento devido às lutas, perseguições e tentativas de invasão de território, ao procurarem o sistema de saúde, lamentavelmente recebem um tratamento inadequado. Se nós visitamos um CRAS e pedimos informação aos assistentes sociais que trabalham nessas áreas, a primeira questão discutida é exatamente o aspecto do mural da unidade de saúde na comunidade quilombola. Esse mural precisa ter a cara das pessoas da comunidade para elas se sentirem representadas.

 

Outra coisa é o campo da educação. Sabemos que há um reforço de 40% na merenda escolar daqueles municípios que anunciam para o MEC a existência de comunidades quilombolas em seu perímetro. Lamentavelmente, quando você tem iniciativa de prefeito para desmontar as escolas, são exatamente essas comunidades as primeiras a serem afetadas. Isso é uma covardia. Então, nós temos ido até essas pessoas, assistentes sociais do CRAS, que estão na ponta da política, a fim de que elas se importem e se importem, particularmente, com as mulheres, porque são elas que carregam a luta.

COLETIVA: Quais as perspectivas que você enxerga para uma educação quilombola afrocentrada, ou seja, para a construção de uma proposta específica de educação quilombola?

Desde o início da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) no MEC, em 2003, com as professoras Eliane Cavaleiro, Andrea Lisboa e Denise Botelho, a nossa expectativa sempre foi a de olhar para uma experiência realizada pelo movimento de mulheres negras: a organização no campo de assessoria às comunidades quilombolas. Nós lutamos pelas escolas quilombolas, lutamos, inclusive, para criar uma coordenação quilombola dentro do MEC. Durante muito tempo, a companheira Maria Aparecida coordenou esse setor ao lado das companheiras da Secadi. Outra realização proposta foi o Fórum de Educação e Pluralidade Étnico-racial dentro do MEC, que esteve em constante diálogo com a sociedade civil e as lideranças das comunidades quilombolas.

 

Quando há um equipamento público como a escola dentro de uma comunidade quilombola, o poder público não deveria se retirar e precisaria oferecer as políticas mínimas, como posto de vacinação. O ambiente escolar é onde se constrói os novos arranjos que surgiram com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O ato de fechar as escolas aniquila, portanto, outras políticas. No final de semana, a escola será o lugar da reza, de rezar o São Gonçalo, será o lugar que o mestre de capoeira terá como referência para agendar um trabalho de socialização com os jovens.

 

Outro fenômeno que se observa na instituição das escolas, muitas vezes, é a presença de um corpo docente que vem da sede do município sem qualquer identidade com aquele território, com aquelas pessoas, com aquela cultura. Muitas vezes, fruto de uma educação colonial, essas pessoas reproduzem pensamentos infames em sala de aula como “Estude para você não ser igual ao seu pai e à sua mãe”. Em 20 de novembro de 2010, no Quilombo Segredo, localizado na cidade de Souto Soares, eu fiquei tão impactada ao ver como os jovens se posicionaram a respeito de seu pertencimento territorial, do qual os educadores não tinham ciência. Eram jovens que tinham sido desterritorializados durante um tempo e cuja grande parte nascera em São Paulo, embora suas famílias sempre tenham sido do Quilombo do Segredo. Com o fortalecimento das questões sociais do Nordeste, esses jovens começaram a retornar. Muitos deles já eram meus alunos da UNEB e reafirmaram aos professores que não tinham, necessariamente, uma identidade com a atividade agrícola. Eles e elas iniciaram uma cooperativa para trabalhar como produtores, DJ’s, levando seu trabalho com arte para outras comunidades. Esse novo fenômeno que envolve essa geração da roça e também da cidade se desenvolve em decorrência do contato com as novas tecnologias. Essas são experiências concretas que jovens estão vivendo e realizando em seu território, ao desafiar o modelo educacional baseado em um pensamento congelado sobre o que é ser infância, adolescência e juventude quilombola.

 

Toda a luta dos quilombos da Ilha de Maré é pela manutenção da sua juventude no território. Quando você tem um grupo de professores que grita “Isso aqui não é para você. Você tem que ir procurar um emprego na cidade”, isso já se configura como um estímulo para os alunos abrirem mão de seu território. O CPP, o Conselho Pastoral de Pescadores do companheiro Marco Brandão e da companheira Maria José Pacheco, tem batalhado muito nessas oficinas para transformar a mentalidade de educadores e educadoras. O propósito disso é que as comunidades, principalmente, as que estão mais próximas de Salvador, permitam que esses jovens no futuro tenham um território ou um pertencimento territorial.

COLETIVA: Nota-se que existem muitos coletivos negros urbanos organizados que têm as comunidades quilombolas como uma referência simbólica, mas mesmo assim a gente vê uma articulação muito fraca entre os movimentos urbanos e o movimento quilombola. Como você imagina que é possível agregar a atuação desses coletivos negros urbanos com as lutas das comunidades quilombolas?

A Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD) é uma irmandade negra que foi criada em 1832 e que, em 2006, é presidida pela primeira vez por uma mulher, a companheira Lígia Margarida Gomes. Lígia tem feito essa ponte com a comunidade quilombola no interior da Bahia. Em um  encontro no ano passado, ela reuniu as comunidades de Salvador e muitas lideranças dos distintos movimentos vieram. Mas eu considero como marco o ano de 1988, quando o Movimento Negro Urbano (MNU), dirigido por Luiza Bairros, junto às lideranças do Ileaê e MaKota Valdina, dirigiu-se de Salvador até o território de Rio das Rãs. Imagine viajar 14 horas até Bom Jesus da Lapa e apoiar a luta do território de Rio das Rãs, onde os fazendeiros chegaram ao acinte de envenenar as lagoas para fazer com que os quilombolas fossem embora de seu território. Comunicação e luta acontecem há muito tempo. Alcântara no Maranhão não estaria de pé até hoje sem o Centro de Cultura do Maranhão (CCN) e o Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa. O coletivo Mãe Andresa se posiciona dentro da capital para enfrentar o poder colonial dos Sarney e derrotou os interesses da família dentro do território de Alcântara. E eu estou falando de 30 anos de experiência (na luta). O caso de Rio dos Macacos não teria tido o êxito que teve sem essa aliança com os movimentos urbanos em Salvador. E a aliança que Conceição das Crioulas faz em Recife com as lutas organizadas é outro exemplo.

COLETIVA:  Em sua opinião, qual o significado político da execução de Marielle Franco, mulher negra, vereadora e militante dos direitos humanos? E como você analisa esse fato no cenário político do Brasil atual com a intervenção militar no Rio?

Nós estamos construindo essa resposta, mas a leitura de conjuntura nos diz que o assassinato político de Marielle Franco é uma obscenidade do golpe, como bem mencionou o professor Edson Cardoso, coordenador da iniciativa de comunicação Ìrohìn. O assassinato de Marielle tem proporções semelhantes às da bomba do Rio-Centro de 1983, quando a sociedade brasileira lutava pelo fim da ditadura de 1964. O assassinato de Marielle tem o mesmo efeito e veio da mesma fonte. Não podemos deixar que uma Rede Globo implemente o esvaziamento político desse assassinato e o transforme em um caso de violência urbana. Não é um caso de violência urbana. Em meio a toda repercussão internacional, Ângela Davis pede pela investigação independente do caso de Marielle como assassinato político. Marielle Franco, essa mulher eleita por 46.500 votos, era e continua sendo um símbolo da nossa representação. Ela é uma voz ativa e que se amplificou, através de milhões de brasileiros e brasileiras, pelo mundo afora. O assassinato político de Marielle ainda vai custar muito aos golpistas. Eles não pensem que vão fortalecer a intervenção no Rio com o silêncio da população. Ela se revolta frente a matança de pessoas pobres e negras neste país. Estamos de pé e estamos vivas, porque sabemos que só vale ficar viva, se for de pé e orgulhosa e não, de joelhos, fazendo papel de mansa na frente dos nossos opressores. Viva a luta negra e feminista neste país!

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