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mapa do imaginário 8, de Rodrigo Mogiz

Educação e 

Diferenças e...

Editores Temáticos: Alik Wunder e Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

n º 8 |  29 de julho de 2019

Vamos sair um dia para dançar?: currículo, gênero e sexualidade

Thiago Ranniery 

Para Pedro

Escrevi este texto no dia que o Escola Sem Partido anunciou o fim de suas atividades. Confesso: foi estranho não sentir alívio. Para mim e para tantas pessoas envolvidas com a combinação que tomei por título, o Escola Sem Partido representa, para dizer o mínimo, um estreitamento atroz das normas sociais e de formas culturais de expressão e expectativas de gênero e de sexualidade. Talvez, tenha me sentido assim porque, embora nunca tenhamos visto tamanha reação às condições que encontramos, nos últimos anos, para trabalhar gênero e sexualidade nas escolas, esse enlace fez menos do que se poderia esperar para reparar as relações tanto escamoteadas entre os termos em jogo, que muitos de nós tratamos de trazer à tona. Pelo menos é, assim, que, hoje as coisas me parecem porque as respostas políticas, gestadas em toda sorte do nosso espectro de ações, florescem, quase sempre, do “vício da lembrança do nosso próprio sofrimento, que caracteriza toda consciência da vítima”, como afirma o filósofo  Achille Mbembe.

 

Quem sabe, tenha me sentido assim também porque comecei a escrever no aniversário de morte de um amigo. Ainda hoje, apesar de tantas outras marcas na minha formação, não sei precisar ao certo porque a morte se tornou tão inseparável daquilo que escrevo, essa sensação de escrever como que em um cassino funerário, na expressão do filósofo. Entretanto, sei dizer que a experiência de viver em uma comunidade habitada por mortos passou a requerer da combinação título se libertar de noções como informar, lamentar e denunciar – esses atos de fala felizes – se converterem em provas cabais da vitória do colonialismo capitalista. 

Há mais de dez anos atrás, no meio da graduação em Ciências Biológicas, eu cursei, arrastado, é bem verdade, por uma amiga, uma disciplina de História da Arte. Lá, reencontrei Pedro, alguém que só posso descrever como um poeta de gênero. Pedro foi meu colega de turma na primeira escola que estudei quando minha mãe, eu e minha irmã nos mudamos de Maceió para a cidade de Aracaju, em Sergipe, no final dos anos de 1990. Pedro era, então, aluno do curso de Artes Visuais. Ao final da aula, ele se apresentou a mim, esperando que minha memória recordasse da nossa infância compartilhada. Pedro riu deliciosamente quando não o reconheci. Era um sorriso encantador...

 

Na escola católica que estudamos o primeiro ciclo do ensino fundamental, foi ele que, pela primeira vez, chamou-me de bicha. Mas estava, ali, diante de uma figura capaz de combinar delicadamente gestos tão ambíguos quanto sedutores de gênero e sexualidade. Gargalhamos alto no corredor quando Pedro recordou ter me acusado de roubar seu apontador de lápis para uma professora. Nervoso com a acusação, eu joguei um frasco de corretivo aberto sobre ele. Resultado: fui mais um dos tantos meninos gays chamado na coordenação para ser acusado de provocar seu algoz. Naquele reencontro, Pedro se ofereceu para me acompanhar até em casa. Não era um pedido de desculpas. Era um pedido de licença para fazer parte da minha vida de outro jeito: agora, somos duas bichas de mãos dadas, me disse ele. Trocamos mensagens, saíamos algumas vezes. Ele falando de arte e performance, eu buscando traduzir o que era ecologia trófica de peixes. Debaixo de uma árvore do campus, que nem sei se está mais de pé, após uma aula, trocamos nosso primeiro beijo. Dois meses depois, Pedro foi encontrado morto em seu ateliê.

Se eu e Pedro tivéssemos conhecido os termos gênero e sexualidade quando erámos adolescentes, não sei dizer se ele estaria vivo, mas, muito provavelmente, teríamos nos agarrado a eles como quem se agarra desesperadamente a um colete salva-vidas. Não havia, entretanto, naquele nosso mundo, tais palavras. Histórias como a de Pedro - não são as únicas, por certo – reúnem muito do que vem se erguendo sob a combinação currículo, gênero e sexualidade. Para ficar com um exemplo, três das coletâneas mais recentes sobre tal enlace contém experimentos teóricos e analíticos a partir da escolarização de meninos gays e de outras tantas experiências que escapam ao estreito marco cisheteronormativo[1].

Espontaneamente, naquela noite, enquanto caminhávamos de mãos dadas do ponto de ônibus para a casa, Pedro ofereceu algo que só realizaria anos mais tarde: currículo, gênero e sexualidade não são sobre definir quem possui, de uma vez por todas e para sempre, uma identidade normativa e quem não a detém e, por isso, foi lançado ao purgatório. Não é uma questão de métrica de saber quem é, por assim dizer, mais conversador e, por efeito, quem é mais subversivo. Ao invés disso, começa por pressionar os modos pelos quais o gênero e a sexualidade são incorporados no e através dos currículos. Porém, é hora de irmos um pouco mais longe. Com o fantasma de Pedro como guia, quero sugerir que gênero, sexualidade e currículo não nos levam a uma procura desenfreada por determinados tipos de pessoas diferentes – e aquele regozijo encantatório com a sua dor –, mas para uma política imaginativa. Em suma, retém o convite feito por ele naquela noite, vamos sair um dia para dançar?

Aliás, devo assumir que muito do meu trabalho intelectual foi profundamente influenciado por esse convite. Entretanto, por mais que me esforce para colocar em perspectiva e evitar generalizações, nosso estado de pensamento atual e nossa sensibilidade política, embora possam reconhecer essa morte e desejem contá-la – no duplo sentido que o verbo evoca, tanto estatístico quanto narrativo –, desconsidera qualquer dívida quanto à extensão ontológica e epistemológica dessa estilizada interpelação. Sei que posso estar exagerando, mas refiro-me a uma correlação extensiva entre a construção de gênero e sexualidade pelos currículos e à recondução súbita de tantas experiências inconformes à violência que antes empregada contra elas.

 

Penso, sobretudo, na impotência para histotiricizar qualquer coisa realizada por essas experiências na escola e na educação que não seja em troca da afirmação segundo a qual elas não são ninguém. Não seria o espetáculo máximo da cisheteronormatividade a impossibilidade, por excelência, de compor política, ética e epistemologicamente com as bichas, de lhe dar as mãos, de se deixar envolver por seus braços? Creio que há impedimentos às alianças políticas, tão necessárias em nosso tempo, quando se marca essa preferência pelo horror e pela crueldade. Qualquer chance de reinvenção política, “exige em primeiro lugar sair da lógica da vingança, esteja esta vestida ou não com os trajes do direito”. Ou, para escrever nos termos aos quais nos apegamos, quer seja reconhecida ou não em um documento de estado.

Mais do que nunca, resta-nos a questão de redefinir os termos do debate: ao invés de permanecer atados a um conjunto de conflitos erguidos por laços feridos que transformam a alteridade em uma espécie de pedra de toque da normatividade de gênero e sexualidade, invariavelmente imposta pelo trator dos currículos, a combinação bem poderia trabalhar no espaço aberto pela convocação de Viviane Vergueiro, de “retomar nossos passados, desocupá-los de fantasias ciscoloniais, para viabilizar presentes e futuros em resistências”.

 

Enquanto, geralmente, se fala de currículo, nos contentamos em pedir o reconhecimento dos termos, mantendo-se estreitamente dentro de uma política que alimenta a linguagem da pedagogia, a combinação gênero e sexualidade articula um território que não somente não destaca quem é o outro alienígena, mas, mais precisamente, estende-se a reimaginar a educação desde essa experiência. É aqui que podemos vislumbrar como unir gênero, sexualidade e currículo à “meditação sobre o modo de transformar em presença interior a destruição física daqueles que foram perdidos, que viraram pó”, nas palavras de Mbembe. Isto é, devolver ao currículo, na conhecida lição queer, uma espécie de delicada estranheza constitutiva. Não tanto para celebrá-la, antes porque “esse suplemento de vida [é] necessário para reabilitação dos mortos”, para que os mortos, enfim, não sejam derrotados mais uma vez. É que, agora sim, para passar da recusa ao aceite: tomar parte nesta dança é sobre como currículo, gênero e sexualidade podem tomar trajetórias muito diferentes, irredutíveis, por vezes, ao que o impasse dramático entre progresso e conservadorismo pode colocar. 

De minha parte, prefiro manter a combinação currículo, gênero e sexualidade sempre aberta e defendo que é preciso recusar oferecer qualquer certeza. É uma recusa tripla. Primeiro, para suspeitar de qualquer vontade de saber antecipadamente qual pode ser o melhor ou mais acertado termo para descrever esta ou aquela forma de gênero e sexualidade. Talvez, tenha chegado mesmo o momento de prover uma passagem: a preocupação não é mais saber como alcançaremos as melhores e mais precisas descrições ou as mais seguras e transparentes representações de quem somos, mas abordagens mais diversas e mais flexíveis para combinar gênero, sexualidade e currículo que recusem toda forma de identificação da alteridade com a figura da vítima e a concatene com certa poética do mundo.

 

E, de forma mais importante, é uma recusa em tomar essas experiências como o objeto para o qual as práticas pedagógicas e currículos deveriam apenas, com aquele salvacionismo sempre à espreita, se endereçar, mas perguntar o que a eles acontecem quando são postas em conversação, em contato e fricção, quando se assume suas categorizações como dispositivos criativos para o pensamento curricular. A recusa é, assim, também para não situar gênero e sexualidade em relação a um destino que o currículo deveria produzir – às vezes, reinstaurado no interior do próprio pensamento curricular –, uma forma final de quem deveríamos ser, uma configuração estabelecida de identidade, por mais progressista que ela pareça ser. 

É que jogados nessas zonas extrativas das paisagens políticas, nos debatendo diante ao diagnóstico do filósofo queer Jack Halberstam, de uma mudança da mecânica neoliberal da inclusão e da diversidade para às políticas de indução violenta de exclusão e aplicação mordaz da morte, é preciso situar cuidadosamente as implicações entre gênero, sexualidade e currículo, dar alguma complexidade as suas camadas ao invés de reivindicar qualquer estatuto ontologicamente determinado de violência e sujeição.

 

Se várias das respostas políticas tenderam a concentrar as políticas curriculares nos termos das reformas e dos documentos de estado, isso deve, em parte, por se tomar currículo como uma categoria tão óbvia que pensá-lo de outro modo é quase impossível. Existem indícios, deixados por uma longa tradição do campo curricular, de que, ao sucumbir política de currículo a tanto, extirpa-se como a composição gênero, sexualidade e currículo pode exercer pressão para desafiar tendências universalistas dessa fantasia ao transmitir o impossível. À medida que entramos no novo tempo do mundo, essa combinação tem muito a realizar para reimantar a imaginação política sobre como múltiplas agendas poderiam entrar em aliança, em vizinhança, como diz Eva Hayward, a fim de enfrentar nossos impasses. 

Não é despropositado afirmar que currículo, gênero e sexualidade nunca foram sobre o fluxo unidirecional da normatividade ou sobre a deglutição da diferença. Antes, ecoaram a herança de dar corpo a uma recusa à determinação que é, por efeito, uma abertura para a possibilidade. Uma combinação audaz que tem estado na linha de frente de se libertar de dualismos simplistas, de maniqueísmos improdutivos e pensar sobre como se pode enfrentar a devastação atroz da vida para refazer outro mundo possível. Para muitos de nós, esta nunca foi mesmo uma opção, era a saída para não sucumbir. 

NOTAS

[1]  Obras organizadas por Marlucy Paraíso e Maria Carolina Caldeira, Currículos, gêneros e sexualidades (2018); por Alice Lopes e Anna Luiza Oliveira, Os gêneros da escola e o (im)possível silenciamento da diferença no currículo (2018); e por mim e Elizabeth Macedo, Currículo, sexualidade e ação docente (2017).

PARA SABER MAIS 

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

 

GÓMEZ-BARRIS, Macarena. The Extractive Zone: Social Ecologies and Decolonial Perspectives. Durham: Duke University Press, 2017.

 

HALBERSTAM, Jack. Trans*: a quick and quirky account of gender variability. Oakland: University of California Press, 2018.

 

HAYWARD, Eva. Spider city sex. Women & Performance: a journal of feminist theory, n. 20, v. 3, p. 225-251, 2010.

 

MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petropólis, RJ: Vozes, 2019.

 

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

O AUTOR

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Thiago Ranniery é Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Janeiro, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição (PPGE/FE/UFRJ) e no Programa de Mestrado Profissional em Rede Nacional em Ensino de Biologia (PROFBIO). É membro pesquisador do Laboratório Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Currículo (LaNEC), onde coordena o BAFO! – Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ética e Diferença. É bolsista Jovem Cientista Nosso Estado da FAPERJ com o projeto de pesquisa intitulado Currículo, ontologia e estudos queers, transitando entre os temas de gênero, sexualidade, diferença, performance, política de currículo e políticas ambientais.

COMO CITAR ESSE TEXTO

RANNIERY, Thiago. Vamos sair um dia para dançar?: currículo, gênero e sexualidade. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e... nº 8. Publicado em 29 de jul. de 2019. Disponível emhttps://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-n8-curriculo-genero-e-sexualidade-por-thiago-ranniery.  ISSN 2179-1287.

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