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Prevenção à violência infanto-juvenil: um modelo de ação para a implementação de práticas restaurativas em contextos escolares

Joyce Silvério

Lastênia Soares

Muito se tem refletido e buscado sobre estratégias referentes ao fenômeno da violência. Por sua natureza complexa, em aspectos psicossociais, políticos e econômicos, há necessidade de ações integradas, elegendo estratégias qualitativas que intervenham tanto no imediato, quanto na prevenção, com fins de efetivamente dar apoio àqueles que foram vítimas da violência oportunizando-lhes espaços de atenção e promoção da segurança, bem como de responsabilização de quem cometeu o ato violento ademais de sua integração comunitária em uma convivência pacífica.

 

Infelizmente não se trata de uma novidade ser exposto aqui alguns dados que ilustram a dimensão dessa violência. A exemplo disso, tem-se o Mapa da Violência 2014 e o Índice de Homicídio na Adolescência 2012, que apresentam dados alarmantes, quais sejam: a taxa de assassinatos de adolescentes e jovens, entre 15 e 24 anos, no Brasil cresceu 2,7% em 10 anos, no Ceará o índice triplicou; há, ainda, a estimativa que mais de 42 mil adolescentes, de 12 a 18 anos, poderão ser vítimas de homicídio nos municípios brasileiros de mais de 100 mil habitantes entre 2013 e 2019 de acordo com as respectivas pesquisas. Tais dados impulsionam reflexões e ações que efetivamente promovam mudanças significativas no cenário social.

 

Nesse sentido, o Instituto Terre des hommes Brasil (TDH) desenvolve um projeto em Justiça Juvenil Restaurativa desde 2011, incorporando ações no eixo da Prevenção da Violência Juvenil e no eixo do Sistema de Justiça Juvenil em cinco estados do Norte e Nordeste do Brasil: Ceará, Maranhão, Pará, Piauí e Rio Grande do Norte. Em um protocolo nacional pela difusão da Justiça Restaurativa, assinado em 2014 junto aos principais órgãos do sistema de justiça juvenil tais como: o Conselho Nacional de Justiça, a Associação de Magistrados do Brasil, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, entre outros, o compromisso do TDH está na promoção e garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes e, estando estes envolvidos em situações de violência e ato infracional, que seja promovido um processo de responsabilização, reparação do dano e restauração de vínculos.

 

Neste artigo, nosso foco se estenderá sobre as ações de prevenção à violência juvenil e aos atos infracionais em âmbito comunitário, especialmente no que se refere à implementação de um “Modelo de Ação de Prevenção à Violência Escolar e Implantação de Práticas Restaurativas”. Tal modelo de ação resulta do trabalho desenvolvido junto à escolas do Ceará, em parceria estabelecida com o Ministério Público do Ceará e as Secretarias estaduais e municipais de Educação.

 

Esta intervenção tem como protagonistas a família, comunidade, sociedade e poder público, uma vez que estes sujeitos têm o dever, conforme o art. 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente, de assegurar às crianças e aos adolescentes direitos fundamentais. O trabalho envolve a participação efetiva desses atores, buscando construir de forma coletiva a adoção de estratégias para fazer-se um espaço seguro com base nos princípios da justiça restaurativa e de técnicas de gestão positiva de conflitos, tais como os Círculos de Construção de Paz e mediação de conflitos. Ademais, a orientação e apoio às instituições educativas para a implementação de procedimentos de proteção de crianças e adolescentes de qualquer tipo de violência no espaço escolar.

 

Especificamente, em Fortaleza, a parceria estabelecida entre TDH, Ministério Público e Secretarias, tanto municipal como estadual, de Educação vem desenvolvendo, desde 2012, o projeto de Mediação Escolar, e, com base nessa experiência, sistematizou o processo de implementação do projeto, com o passo a passo definido. Esse modelo de ação se constituiu em um conjunto de conceitos norteadores e propostas de ações com fins de responder à problemática do fenômeno da violência e do ato infracional em âmbito escolar. Havendo uma necessidade de fortalecer as competências dessas instituições educativas, a proposta é que através dessas orientações conceituais e técnicas, as escolas possam ter ferramentas que lhes apoiem a construir uma prática educativa sob um enfoque restaurativo de disciplina e de gestão positiva de conflitos.

 

Respondendo ao questionamento levantado por gestores, professores, familiares e alunos sobre o que é possível e necessário para prevenir e intervir diante da violência e do ato infracional no contexto escolar, a experiência tem constatado que é possível promover espaços educativos com princípios, valores e métodos de uma educação para a paz, construindo, com seus protagonistas (alunos, professores, gestores, pais, funcionários e comunidades), o que é necessário para estabelecer em seu cotidiano boas práticas de convivência e de construção de habilidades para a gestão positiva de conflitos, de modo a promover a prevenção da violência e do ato infracional, e como intervir sobre os mesmos.

 

O modelo de ação objetiva compartilhar a experiência do TDH com foco na construção de espaços de proteção no ambiente escolar, ao adotar procedimentos de prevenção da violência e fortalecimento de uma cultura educacional pela paz. Também é norteador para se estruturar ações quando crianças e adolescentes são autores da violência. Por isso, o modelo de ação para as escolas tem objetivos específicos, tais como:

 

  1. Ajudar crianças e adolescentes a se protegerem de suas próprias violências e, para isso, propor ações, aqui previstas, que promovam o fortalecimento das competências infanto-juvenis, apoiando-lhes a aprenderem a gerenciar positivamente seus conflitos, resolvendo-os de modo não violento, ou fazendo uso de práticas que efetivamente lhes ajudem a responsabilizarem-se diante daqueles que sofreram com seu ato e, desse modo, restaurarem vínculos fragilizados por causa do fato ocorrido;

  2. Dar subsídios teóricos e metodológicos, de acordo com as normativas nacionais, para que as escolas compreendam e se empoderem para, sempre que possível, tratarem os conflitos e casos de violência ou atos infracionais leves sem fazer uso de medidas punitivas ou do encaminhamento para o Sistema de Justiça Juvenil (Delegacia, Ministério Público, Judiciário);

  3. Apoiar as escolas a promoverem a integração de adolescentes que se encontram em cumprimento de medida socioeducativa que, muitas vezes, estão evadidos do espaço escolar. Além disso, tal modelo orienta a execução de quatro passos, sendo eles: 1. Sensibilização e parceria; 2.  Conhecendo o contexto escolar; 3. Formação, aplicação das práticas restaurativas e acompanhamento das escolas; 4. Monitoramento e Avaliação.

 

Para tanto, atingir tais objetivos requer inclinar-se a seguir às seguintes ações centrais em termos de orientação:

1. Análise situacional da escola;

2. Plano de ação para proteção de crianças e adolescentes e prevenção à violência;

3. Formação da comunidade escolar;

4. Política institucional para proteção de crianças e adolescentes;

5. Medidas disciplinares restaurativas;

6. Articulação com a rede de apoio; e por último, e não menos importante,

7. Monitoramento dos resultados alcançados com base em indicadores qualitativos e quantitativos previamente definidos na análise situacional realizada.

 

Um dos pilares do modelo de ação é a implementação de metodologias baseadas nos princípios da Justiça Restaurativa, sendo um modelo de justiça que focaliza nas necessidades das vítimas e as consequentes obrigações do ofensor, priorizando procedimentos de colaboração e cooperação para a resolução de problemas (as chamadas práticas restaurativas), como apontam as professoras e pesquisadoras americanas Judy Mullet e Lorraine Amstutz no livro “Disciplina Restaurativa para Escolas” (2012).

 

Duas práticas metodológicas são amplamente trabalhadas junto às escolas, especialmente os círculos restaurativos e a mediação de conflitos. A mediação de conflitos é um procedimento voluntário, pacífico e extrajudicial, que visa proporcionar um espaço de diálogo e análise dos conflitos e das motivações dos participantes, de modo a alcançar uma clara compreensão das divergências e dos reais interesses a serem satisfeitos. O foco dado não é o de construção de acordos, mas oportunizar que as pessoas tenham a experiência do diálogo, saindo da posição de adversários para que, de forma colaborativa, compreendendo os sentimentos e necessidades de cada um, tomem, de forma autônoma, as decisões que melhor atendam suas necessidades.

 

Os círculos restaurativos aplicados seguiram a concepção e o método amplamente difundidos pela especialista norte-americana Kay Pranis, instrutora dos chamados Círculos de Construção de Paz que foram usados pela primeira vez pelo juiz norte-americano Barry Stuart, e por ele assim denominado. São um encontro entre vítima, ofensor e a comunidade, implicando tanto os que indiretamente foram afetados pelo fato ocorrido como os que podem ajudar as partes diretamente envolvidas a restabelecer o equilíbrio, a reparação do dano e a convivência comunitária e social de maneira saudável, podendo incluir serviços de assistência social, conselhos tutelares, lideranças comunitárias, amigos, professores, entre outros. E assim como na mediação, o encontro só ocorre depois de uma preparação prévia das partes, por meio dos pré-círculos.

 

Situações conflituosas ocorridas nas escolas acompanhadas pelo projeto e passíveis de aplicabilidade dessas formas positivas de suas resoluções por meio do diálogo já foram exemplos de sucesso, como o caso explicitado logo mais.

 

O relato de uma professora capacitada pelo TDH Brasil como facilitadora de processos restaurativos e mediação, que está aplicando as metodologias em uma das escolas onde o modelo de ação está sendo replicado traz a dimensão dos benefícios dessas práticas para uma prática pedagógica que prima pela convivência saudável e segura no ambiente escolar. “Quando vou realizar um círculo, os alunos trazem vários problemas, e na visão deles todos tem a razão. Mas quando converso com eles, e utilizo as técnicas das práticas restaurativas, é perceptível a mudança na hora do círculo e após o final. Percebe-se um alívio no olhar, na fala, os sentimentos começam a modificar” (Valdenice, professora da Escola Estadual Osires Pontes em Fortaleza/CE). 

 

Do ponto de vista dos alunos, essa experiência de resolução de conflitos lhes permite a segurança e apoio necessário para a reparação dos danos, a restauração de vínculos e responsabilização “Se tivessem aplicado um corretivo na gente ou alguma punição, e não houvesse a mediação, a gente talvez tivesse continuado com o bullying ou alguma coisa pior”, relata a aluna Vanessa Pereira, participante da mediação na escola Osires Pontes. “Após a mediação além de solucionar o conflito ficamos mais próximas umas das outras, nos reconciliamos e voltamos a ter nossa amizade que era muito boa”, complementa a aluna. 

Para a implementação desse modelo de ação, uma capacitação inicial de 30 horas é realizada com a comunidade escolar, dando-lhes subsídios básicos aos conceitos e técnicas das práticas restaurativas. Entretanto, as escolas seguem um processo formativo de fortalecimento de suas competências para a gestão positiva de conflitos.

 

Conforme nos afirma o professor Marcelo Rangel Pinheiro, da Escola Estadual Matias Beck, ao realizar a capacitação: “[…] Foi uma experiência extremamente rica e trouxe uma proposta restaurativa para os conflitos. Percebemos que era uma necessidade de todos, de abordar as situações conflituosas que acontecem na escola de uma maneira diferente, não apenas punitiva, pois percebemos que não gerava nenhum resultado. Aqui conhecemos uma outra proposta, a restaurativa que é a proposta que estávamos precisando”, afirmou o professor.

 

A mudança de paradigma que esta proposta convida requer cuidar da necessidade de refletir sobre as práticas existentes e consolidadas nas escolas e o que se precisa rever.

NOTAS

[1] Terre des hommes Brasil é uma organização não governamental filiada à Terre des hommes Lausanne, na Suíça, que há 56 anos age de forma participativa e inovadora em prol dos direitos de crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade e risco social.

[2] A justiça restaurativa teve origem na década de 1970, em países como Estados Unidos, Canadá e Nova Zelândia, diante da necessidade de se dar uma resposta mais efetiva para atos criminosos. A possibilidade de uma resposta mais assertiva está na concepção apresentada pela justiça restaurativa sobre conflito, violência ou crime, e de como fazer justiça. Uma mudança paradigmática se apresenta quando qualquer situação de ofensa, inclusive o crime, é compreendida como “[…] uma violação de pessoas e relacionamentos […]. O crime […] cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança”, como afirma Howard Zehr em “Trocando as lentes” (2008).

[3] O Tdh tem sistematizada e aplicada, desde 2002, uma Política de Proteção Institucional que é difundida em todos os seus Projetos e Instituições parceiras. Tal Política prima em preservar o bem estar das crianças e adolescentes que participam das ações desenvolvidas por Tdh e/ou parceiros e prevenir atos de violência sob todas as suas formas. Visa proporcionar às crianças e aos adolescentes um ambiente seguro e acolhedor e, aos profissionais, as orientações necessárias para agir em defesa dos direitos infanto-juvenis.

PARA SABER MAIS 

MELO, Doriam Luis Borges de; CANO, Ignácio (Orgs.). Índice de Homicídios na Adolescência: IHA 2012. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2014. Disponível em <http://www.unicef.org/brazil/pt/br_IHA2012.pdf>. 

SECRETARIA NACIONAL DE JUVENTUDO. Mapa da violência: Os jovens do Brasil. Disponível em <www.juventude.gov.br/juventudeviva>. 

MULLET; Judy H.; AMSTUTZ, Lorraine Stutzman. Disciplina Restaurativa para Escolas. São Paulo: Palas Athena, 2012, 118p.

PRANIS, Kay. Processos Circulares. São Paulo: Palas Athena, 2010.

TERRE DES HOMMES. Construindo relações de cuidado: um guia para implementar práticas restaurativas nas escolas. Fortaleza: Terre des hommes Lausanne no Brasil, 2013.

______. Modelo de ação para prevenção da violência e práticas restaurativas em contexto escolar. / Terre des Hommes. Fortaleza: Terre des Hommes, 2015.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes. Um novo foco sobre o crime e a Justiça Juvenil Restaurativa. Tradução Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008.

______. Justiça Restaurativa. Tradução Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2012.

AS AUTORAS

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Joyce Silvério é assistente social da organização não governamental Terre des hommes Brasil. Atua como facilitadora de práticas restaurativas e mediadora de conflitos.

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Lastênia Soares é psicóloga, mestre em Educação, especialista em Mediação de Conflitos. Trabalha como instrutora e facilitadora de práticas restaurativas. Gerente de educação e Formação da Terre des hommes Brasil e ponto focal em proteção para América Latina.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SILVÉRIO, Joyce. SOARES, Lastênia. Prevenção à violência infanto-juvenil: um modelo de ação para a implementação de práticas restaurativas em contextos escolares. Revista Coletiva, Recife, n. 20, set.out.nov.dez. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-violencia-escolar-prevencao-a-violencia-infanto-juvenil-praticas-restaurativas-na-escola>. ISSN 2179-1287.

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