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Justiça e educação: parceria necessária ou judicialização das relações escolares?

Claudia Aparecida Scotuzzi

No Brasil, o direito à Educação foi garantido pela Constituição Federal de 1988 e ratificado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. Reconhecida a Educação como direito público subjetivo, foi possível exigir-se do Estado a prestação do prometido, cabendo ao Poder Judiciário, a garantia da efetivação deste direito.

 

Assim, os equipamentos necessários para que a Educação se efetive, como os relativos ao prédio escolar, à merenda e transporte, à contratação de professores, à inclusão de alunos com necessidades especiais, à vaga em creche e pré-escola, entre outros, sofrem intervenção judicial, para sua garantia, caso não se concretizem.

 

Porém, além dessas questões estruturais, assuntos de soluções mais propriamente pedagógicas, como os atos indisciplinares e o descumprimento de regras no ambiente escolar, as incivilidades e/ou os casos de evasão têm sido igualmente transferidas para a esfera judicial.

 

Os mecanismos utilizados pela Justiça têm entrado com força nas escolas que, diante de um número de ocorrências cada vez maior em seu interior e entorno, assimila-os como possibilidade de resolução dos conflitos. À medida que as punições já consagradas vão enfraquecendo e perdendo seu poder de controle, novas técnicas, cada vez mais severas, vão ocupando seu lugar. Assim, no limite, quando extrapoladas todas as alternativas previstas no código disciplinar da escola, apela-se para a polícia e para o encaminhamento dos envolvidos à Justiça, como relato na minha dissertação de mestrado “Gestão democrática nas escolas e Progestão: que relação é esta?” (2008).

 

Caracteriza-se, assim, o fenômeno da judicialização das relações escolares, ou seja, a ação da Justiça no universo da escola, resultando em condenações das mais variadas, excluindo os educadores do protagonismo das decisões e o tratamento pedagógico que os conflitos escolares merecem, como afirmam os pesquisadores Álvaro Chrispino e Raquel Chrispino, em “A judicialização das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores” (2008).

 

A intervenção da Justiça nos episódios de indisciplina e violência que acontecem no ambiente escolar, bem como a entrada da polícia na escola, têm sido corroboradas por políticas e programas adotados por diferentes estados do país.

 

Nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, os programas desenvolvidos para a prevenção e/ou minimização da violência em ambiente escolar incluem manuais de orientação para educadores, cujo teor fortalece ou favorece a judicialização das relações escolares.

 

Os textos do material definem conceitualmente o que são crimes, contravenções e atos infracionais e, embora destaquem que este último se refere a crianças e adolescentes, faz uma lista de ocorrências no ambiente escolar à qual denomina de “crimes mais comuns na escola”.  Utilizam, ainda, o termo crime reiteradas vezes, referindo-se às ações de danos, pichações e ameaças, até porte de arma, tráfico de entorpecentes e estupro. Todos tratados com a mesma gravidade.

 

O manual de São Paulo adota, ainda, termo jurídico e inadequado para qualificar os alunos, como “apenados” para adolescentes em conflito com a lei e que cumprem medida socioeducativa. O tratamento jurídico sugerido pelos manuais, tanto de SP como do RJ, é reforçado na afirmação de que “a responsabilidade da escola se estende aos danos que um aluno cause a terceiros, mas, neste caso, a escola pode entrar com uma ação de direito regresso para que a família do aluno que causou danos faça o ressarcimento à escola”.

 

Observe-se que o ressarcimento de danos pode (e deve) estar previsto no Regimento Escolar, pois se trata de uma ação educativa, não necessitando, a priori, de ação judicial. O manual do RJ acrescenta a este texto a frase “[…] esgotadas as possibilidades de negociação com os pais […]”.

 

O foco dos manuais deveria ser, portanto, as possibilidades de negociação com os alunos e/ou famílias. E aí perguntamos: quais são essas possibilidades? Sendo manuais para escolas e educadores, por que saltar para as questões judiciais antes de orientar sobre as questões pedagógicas? Esse posicionamento é contraditório ao próprio manual do RJ, que orienta que sejam evitadas as judicializações de conflitos nas relações escolares.

 

Ainda, muitas são as orientações do manual da Secretaria Estadual de Educação (SEE) de SP sobre encaminhamentos à Polícia Militar ou ao Ministério Público, em casos de episódios de violência na escola. Um exemplo é que ao tratar sobre alunos com problemas de envolvimento com álcool e/ou drogas, orienta que “independentemente da idade do aluno, a Polícia Militar (190) deverá ser acionada, para que sejam tomadas as providências cabíveis” e sugere que o aluno seja encaminhado ao Conselho Tutelar, que por sua vez, o direcionará à rede socioassistencial adequada. 

 

O manual do RJ propõe o mesmo encaminhamento. Parecem ações amparadas apenas na lógica de encaminhamentos, ou seja, da transferência de responsabilidades. É claro que ações em parceria são as mais eficazes nestes casos, mas é curiosa a ausência de procedimentos ou projetos pedagógicos para se lidar com a questão da drogadição na escola, em se tratando de materiais elaborados para educadores. Projetos dessa natureza não são nem mesmo mencionados ou sugeridos nos materiais.

 

No que diz respeito à entrada da polícia na escola, muito se tem sabido dos prejuízos dessa intervenção. De acordo com os pesquisadores Luiz Alberto Gonçalves e Marilia Sposito, no artigo “Iniciativas públicas de redução da violência escolar no Brasil” (2002), essa prática de registrar as ocorrências em delegacias, na ronda escolar ou, em muitos casos, de chamar a polícia para intervir nas escolas, em episódios ligados à indisciplina fora da sala de aula ou nas ameaças de agressão e brigas entre alunos, se fortaleceu na década de 1980, em resposta à demanda de segurança reclamada pela sociedade.

 

Porém, entendemos que essa prática de intervenção policial em questões especificamente escolares tem produzido, além de mais violências, a dificuldade de compreensão do que sejam realmente atos violentos no interior da escola. Para o pesquisador francês Loïc Wacquant, em seu livro “Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]” (2007): “A prática de tratar a menor contenda nos corredores das escolas, a manifestação de indisciplina em sala de aula ou a briga entre estudantes na hora do recreio, não como transgressão disciplinar concernente à autoridade pedagógica do estabelecimento, mas como infrações à lei, que devem ser sistematicamente informadas ao delegado de polícia do bairro […] produz uma epidemia de ‘violências escolares’”.

 

Nesse sentido, os autores Eduardo Melo, Madza Ednir e Vania Yazbek, em “Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul” (2008), afirmam que a entrada da polícia na escola prejudica as relações pedagógicas, pois “uma atuação violenta da polícia no atendimento inicial […], afeta todo o processo de atendimento e inclusão, porque dificulta sobremaneira o estabelecimento de vínculos”. Ainda, segundo os autores, jovens e agentes de segurança se veem como ameaças recíprocas e, quando isto acontece, inviabiliza-se o estreitamento, a aproximação e a humanização das relações, necessárias para a construção de um ambiente mais democrático e acolhedor.

 

Esse caráter judicial/policial apresentado nos manuais tem um apelo forte e parece desconsiderar a natureza educativa da escola. Quando os textos se referem, por exemplo, à necessidade de registro de Boletim de Ocorrência na constatação de ilícitos no ambiente escolar, fazem-no com a intenção explícita de coibir a violência por meio do exemplo punitivo. De acordo com o material de São Paulo, “as apurações e sanções decorrentes dos registros [em Boletim de Ocorrência] diminuem a sensação de impunidade e contribuem para inibir novos casos de violência no âmbito da escola”.

 

O texto do manual do Rio de Janeiro adota o mesmo enfoque da punição como reguladora de novos episódios de violência no ambiente escolar, destacando que: “as apurações e sanções decorrentes dos registros [policiais] diminuem a sensação de impunidade e contribuem para inibir novos casos de violência no âmbito da escola. No caso de violência contra a criança ou o adolescente, o registro de Boletim de Ocorrência pode contribuir para interromper esse tipo de ação contra as vítimas”.

 

Percebe-se, assim, que os materiais das SEE de SP e do RJ expressam claramente a opção pela adoção de mecanismos da justiça retributiva, cujo movimento se ampara na fórmula crime–culpa–castigo. A própria estrutura regimentar ou o código disciplinar da maioria das escolas no nosso país, assemelha-se ao código penal que conhecemos e utiliza a equação indisciplina–culpa–punição, com aplicação de penas como suspensões e transferências compulsórias, seguindo o modelo do sistema jurídico tradicional.

 

Essa estrutura deve ser repensada, discutida e reelaborada com a participação de todos os segmentos da escola e, especialmente, das crianças e dos jovens que compõem o corpo discente escolar, se esperamos e pretendemos uma escola transformadora e garantidora de direitos.

 

Podemos ver, tomando como modelo algumas ações dos governos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro e, com base, ainda, no cenário nacional, que essas orientações para educadores apresentam uma dicotomia de ideias, um caminho bifurcado, ora direcionando ações para a prática democrática e o diálogo na escola, ora sugerindo encaminhamentos de caráter jurídico/policial. A escolha de um desses caminhos certamente levará a diferentes resultados, não só para as escolas, mas para a sociedade em geral.

 

É necessário compreender que a construção pedagógica de relações mais humanas, que reconhece o outro como relevante, que faz prevalecer o diálogo na resolução de conflitos e que se fundamenta em compromisso e fortalecimento de vínculos, se contrapõe fortemente à punição irreflexiva, que se justifica apenas no castigo como modelo a ser seguido ou, nas palavras do pesquisador americano Howard Zher, em seu livro “Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça” (2008), como aplicação de doses “justas” de dor.

 

Esse é papel da Educação e da escola.

A intervenção judicial é importante quando direitos são violados ou negados. O trabalho, em rede, da escola com as demais instituições do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente é indiscutivelmente essencial para um desenvolvimento saudável de crianças e jovens; as parcerias são hoje, mais que nunca, fundamentais para o trabalho educativo.

 

No entanto, a construção das relações na escola e o restabelecimento do equilíbrio rompido, decorrente de situações de indisciplina ou de atos considerados violentos, cabem fundamentalmente aos atores escolares, cujas ações devem amparar-se em práticas restaurativas e princípios essencialmente pedagógicos como a participação, o respeito, a honestidade, a humildade, a responsabilidade, o empoderamento e a esperança, entre outros.

NOTAS

1] Segundo Howard Zehr, o paradigma retributivo concebe a justiça como aplicação da lei, que se concretiza especialmente pela punição. Para o autor, se culpa e punição são os fulcros gêmeos do sistema judicial, as pessoas, nesta lógica, “devem sofrer por causa do sofrimento que provocaram [pois] somente pela dor terão sido acertadas as contas”. Desta forma, a lei penal se tornou um mecanismo para administrar doses “justas” de dor. O dano praticado pelo ofensor é contrabalanceado pelo dano imposto ao mesmo.

PARA SABER MAIS 

CHRISPINO, A.; CHRISPINO, R.S.P.  A judicialização das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores, Revista Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 58, p. 9-30, jan./mar. 2008.

GONÇALVES, L. A. O.; SPOSITO, M. P. Iniciativas públicas de redução da violência escolar no Brasil, Cadernos de Pesquisa, n. 115, mar. 2002.

RIO DE JANEIRO (ESTADO). Manual de Proteção Escolar e Cidadania. Rio de Janeiro: SEE, 2014.

SÃO PAULO (ESTADO). Manual de Proteção Escolar e Promoção da Cidadania. São Paulo: FDE, 2009.

MELO, E.R.; EDNIR, M.; YAZBEK, V. C. Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul.  São Paulo: CECIP, 2008.

SCOTUZZI. C. A. S. Gestão democrática nas escolas e Progestão: que relação é esta? 2008. 262f. Dissertação (Mestrado em Educação) –  Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, São Paulo, 2008.

SCOTUZZI. C. A. S. O Sistema de Proteção Escolar da SEE de SP e o Professor Mediador nesse contexto: análise de uma política pública de prevenção de violência nas escolas. 2012. 211f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) –  Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, São Paulo, 2012.

ZEHR, H. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.

WACQUANT, L. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

A AUTORA

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Claudia Aparecida Scotuzzi é doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho (Unesp), mestre em Educação pela mesma instituição, graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Bernardo do campo e em Educação Física pela Faculdade de Educação Física de Santo André. Atualmente é supervisora de Ensino da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e gestora regional do Sistema de Proteção Escolar. Participa do Projeto As Propostas de Enfrentamento da Violência nas Escolas Públicas e Mediação de Conflitos, do Unesp de Rio Claro. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em políticas públicas, gestão e supervisão escolar e formação continuada de professores e gestores.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SCOTUZZI, Claudia. Justiça e educação: parceria necessária ou judicialização das relações escolares? Revista Coletiva, Recife, n. 20, set.out.nov.dez. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-violencia-escolar-n20-justica-e-educacao-parceria-necessaria-ou-judicializacao-das-relac>. ISSN 2179-1287.

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