Este texto objetiva refletir sobre como a escola identifica os alunos protagonistas de violência e como são tratadas as atitudes provocadas por esses jovens. Para isto, serão apresentados alguns dados já coletados e discutidos em uma investigação desenvolvida por um grupo de pesquisa interinstitucional, que abrange duas universidades públicas do estado de São Paulo (UNESP e UFSCAR), denominado Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Participação e Direitos Humanos (GEPEPDH). As reflexões do grupo sobre estudantes considerados autores de violência resultaram em um projeto de estudo nomeado “Trajetória de alunos protagonistas de violência”, com apoio do CNPq (Edital Universal 2013).
A proposta tem sido investigar questões relativas à violência na juventude, com perspectivas de mapear e analisar trajetórias de alunos identificados como indisciplinados e/ou violentos tanto na escola como fora dela. Sendo assim, a pesquisa busca compreender os elementos constitutivos da lógica de criminalização da pobreza e juventude à luz da perspectiva teórica histórico-cultural, refletindo sobre como as instituições escolares e de justiça têm tratado a questão, apontando possíveis consequências para a vida dos jovens, para a escola e para a sociedade contemporânea.
Caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, com três momentos de aproximação com o campo: levantamento de dados nas escolas; levantamento de dados junto à Vara da Infância e Juventude; e entrevista com a equipe escolar, Conselho Escolar e com os jovens considerados protagonistas de violência.
Foram coletados dados em quatro escolas públicas, de dois municípios do interior paulista que apresentam altos índices de violência. Os dados se referem aos “Livros de Ocorrência Escolares” (LOE) e entrevistas realizadas com a equipe gestora. A análise dos dados evidenciou que a maior parte dos registros retratava situações relacionadas às questões pedagógicas e não necessariamente à violência, sendo algumas dessas ocorrências a não realização de tarefas, conversas/ruídos/gritos, desrespeito ao professor e ações inadequadas para a convivência social.
As providências mais utilizadas pelas instituições de ensino foram advertências, convocação para os pais comparecerem à escola e suspensão do aluno. Os recursos pedagógicos são pouco utilizados na resolução/redução de conflitos ocorridos no espaço escolar, contrariamente à expectativa de que na escola utilizaria-se primeiramente recursos de caráter educativo.
Contraditoriamente, apesar de sua natureza punitiva, em uma das quatro escolas estudadas, o livro de ocorrências também foi utilizado para registros de boa conduta do aluno e felicitação pela realização de alguma atividade.
De forma geral, os dados apontam que os casos de violência ainda são poucos. Os atos praticados pelos alunos constituem-se, em sua maioria, como incivilidades, termo sugerido pelo professor e pesquisador francês Bernard Charlot em seu texto “A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão” (2002), e uma parte menor refere-se a atos de agressividade, potencialmente considerados como violentos.
Refletimos, à luz dos registros encontrados, que o problema da violência escolar está superestimado, sendo também observada a existência de um componente de resistência dos alunos em relação à escola, quando observamos os registros. No entanto, podemos considerar que a não existência de registro não garante que outros fatos não ocorram no cotidiano da escola.
Questionamos por que situações de indisciplina e/ou violência mais graves não seriam ali registrados. Pesquisadores sobre violência na escola, como Bernard Charlot e o também francês Éric Debarbieux, têm apontado que os desrespeitos, os desacatos, as pequenas agressões, as grosserias e as incivilidades que se repetem sem parar são o núcleo do que se tem considerado violência e que acontecem cotidianamente nas escolas, criando um clima de insegurança no ambiente escolar. Bernard Charlot faz uma distinção importante, na tentativa de compreender melhor este cotidiano escolar e o que se tem denominado de disciplina/indisciplina, incivilidade e violência, além de apontar os diferentes personagens produtores de situações de violência.
Segundo o pesquisador: “[...] a transgressão é o comportamento contrário ao regulamento interno do estabelecimento (mas não ilegal do ponto de vista da lei): absenteísmo, não-realização de trabalhos escolares, falta de respeito, etc.” Dessa forma, podemos entender que a transgressão e a incivilidade não contradizem a lei, mas sim as regras da boa convivência: desordens, empurrões, grosserias, palavras ofensivas, geralmente cotidianos e repetidos com frequência. O autor faz a distinção entre violência na escola, à escola e da escola.
A violência na escola é aquela que tem sua origem fora dela, mas que acaba tendo como desfecho algum episódio dentro da escola, mas não necessariamente relativo a conflitos escolares; a violência à escola é aquela dirigida aos agentes escolares ou ao patrimônio, tais como agressões aos professores ou colegas e a destruição de espaços da escola; e a violência da escola, aquela que nem sempre é identificada como tal, quando, por exemplo, a escola deixa de cumprir seu papel de ensinar ou mesmo submete o aluno à situações vexatórias ou de desrespeito.
Foi possível ouvir de uma equipe gestora que não se registra para que a escola “não fique falada”. Ou seja, alguns episódios são encaminhados para outros órgãos ou são registrados em Boletins de Ocorrência, mas eles não constam nos LOE, ficando a informação sob domínio da equipe gestora. Outros professores atribuem os registros nos LOE à construção de provas para se defenderem de possíveis acusações dos pais ou da sociedade. Os LOE datam do início do século XX, como aponta a pesquisadora Neiva Moro no texto “O ‘livro preto’ nas escolas da região dos Campos Gerais” (2002), e desde então são utilizados como instrumentos de controle e proteção da escola.
Buscamos identificar os casos dos alunos considerados protagonistas de violência pelas escolas (com registros nos LOE ou indicados pela equipe gestora) que respondiam a processos judiciais. Neste levantamento, ficou evidente que são poucos os casos de alunos envolvidos com processos judiciais iniciados pela escola. Entretanto, ao pesquisarmos os registros nos LOE, constatamos que grande parte desses jovens não pratica atos muito diferentes daqueles que outros jovens da escola o fazem.
Foi possível perceber uma ausência de critérios claros na definição dos atos considerados como violência. Em alguns processos, é possível evidenciar que vários alunos parecem criminalizados antes mesmo de cometerem necessariamente uma violência. Diante das primeiras manifestações de incivilidades, e tendo como referência sua família (histórico de envolvimento com crime ou tráfico de drogas), seu bairro ou mesmo seu linguajar, tendem a ser taxados, e até mesmo estigmatizados.
Os dados indicam que a gravidade ou o procedimento a ser tomado depende muito da situação e de quem são os envolvidos, passando pela interpretação daquele que presencia/registra o fato (professor, equipe gestora, professor mediador). Curioso verificar que em nenhum dos registros existe a versão do aluno, mas em muitos casos sua assinatura dando ciência. Neste sentido, um aluno que pratica uma agressão física pode ser apenas advertido pela escola, enquanto outro, sob o argumento de desrespeito ao professor (sem esclarecer o que seria esta ausência de respeito), por chegar atrasado à aula ou se utilizar de vocabulário não aceito na cultura escolar, pode ser criminalizado (confecção de Boletim de Ocorrência e consequente processo judicial).
Quando observamos os registros nos LOE, não havendo clareza do fato ocorrido, diferentes interpretações podem ocorrer, tendo em vista que esses registros podem se constituir como prova ou como um instrumento de defesa do professor diante de questionamentos dos alunos, de seus familiares ou mesmo da justiça. A recente tendência à judicialização das relações escolares e consequente responsabilização do jovem ou do professor tem sido apontada em estudos como no artigo “A judicialização das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores” (2008), dos pesquisadores Álvaro Chrispino e Raquel Chrispino.
Na análise dos processos judiciais, também se evidenciou que nem todos os procedimentos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente são cumpridos pelo sistema de justiça, o que leva à aplicação de medidas socioeducativas de forma pouco clara quanto aos critérios e justificativa para o seu cumprimento em cada caso. Nesta situação, nos deparamos com casos onde dois jovens foram denunciados pela escola sob a alegação de que desrespeitaram a professora, sendo que um recebeu remissão (arquivamento do processo), enquanto outro cumpriu medida socioeducativa em meio aberto.
Esses achados nos proporcionaram refletir sobre esses procedimentos, principalmente pelos equívocos apresentados no desenrolar dos processos, sem que qualquer um dos atores tenha questionado esses equívocos, nem mesmo o defensor público. Ainda observamos que os processos iniciados no contexto da escola geralmente acabam arquivados, porque os atos denunciados e supostamente praticados pelos alunos não se configuram necessariamente como crime ou contravenção penal.
Acreditamos que um maior conhecimento desses trâmites e de como discernir violência/indisciplina e incivilidade possibilitaria à equipe escolar pensar outras formas de trabalhar os conflitos escolares, sem o desgaste de um registro ou de Boletim de Ocorrência, que resultaram muitas vezes em arquivamento e consequente descrédito na legislação (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA) e no sistema de justiça. É possível discutir que alguns promotores e juízes, mesmo não qualificando os atos como crime ou contravenção penal, têm representado e aplicado medidas socioeducativas a jovens que não necessariamente descumpriram a lei. Disso resulta a impressão de que tudo deve ser denunciado, e que alguns são “punidos” e outros não.
Estamos apontando que muitos registros são relativos ao processo educativo e devem ser enfrentados educativamente/pedagogicamente, em um trabalho coletivo de toda equipe escolar. Que o registro e encaminhamento ao sistema de justiça devem ocorrer nos casos que realmente se configuram como desrespeito à lei. Assim, as medidas se tornariam mais coerentes e efetivas, lembrando que o cumprimento da medida passa por outra reflexão, principalmente sobre a existência de políticas públicas mais claras para estes casos.
Observamos, na análise dos processos, certa banalização da medida socioeducativa, quando o judiciário aplica a medida de remissão (arquivamento), por não considerar o fato como crime e, concomitantemente, aplica uma medida socioeducativa como necessidade educativa. Neste caso, o jovem não está obrigado a cumprir, o que, de certa forma, gera sensação de impunidade. Precisamos refletir sobre como temos aplicado a lei e como a sociedade, juntamente com a escola, pouco tem cuidado dos processos educativos. Garantimos a escolarização, mas não necessariamente a educação, enquanto processo de formação pessoal e coletiva de crianças, adolescentes e jovens.
Se a família não consegue educar sozinha, considerando que as crianças vão muito cedo para a escola, e se a escola não compreende esta tarefa de educar como sendo parte de sua função, vivemos um abandono da infância e da juventude em seu processo educativo, mas facilmente queremos responsabilizá-los por seus atos. Não queremos aqui apontar culpados, mas indicar a necessidade de todos os atores (família, escola e sociedade) responsabilizarem-se pelo processo educativo e formação geral de crianças, adolescentes e jovens.
Na etapa atual da pesquisa, ainda em desenvolvimento, já evidenciamos nas entrevistas com os jovens que cumprem medidas socioeducativas que eles têm pouca clareza sobre seu processo judicial e parco entendimento do significado legal da medida ou mesmo sobre a relação da medida como consequência de seus atos no contexto escolar. Os jovens que chegam a cumprir medida socioeducativa por atos cometidos no ambiente escolar apresentam dificuldades em compreender a relação entre o ato cometido e a medida aplicada.
Quando são obrigados a retornar para escola, como parte da medida, também não acatam a esta determinação, tendo em vista que a escola continua a mesma e ele, diferenciado por retornar com o estereótipo de autor de ato infracional. Identificamos na fala desses jovens a necessidade de um acolhimento mais efetivo pela escola, ou seja, uma proposta pedagógica que considere seu contexto, sua história de vida e de reinserção escolar.
Quando perguntado aos jovens sobre os sentidos da escola e da educação, a maioria dos que cumpriram algum tipo de medida socioeducativa afirmam gostar de aprender, entretanto, odeiam a dinâmica de funcionamento da escola, indicando não serem reconhecidos como sujeitos. Apontamos para uma invisibilidade dos sujeitos concretos, tratados genericamente como bons alunos ou alunos problemas, desconsiderando seus históricos de vida e de dificuldades no processo de escolarização. Os jovens afirmam ser a escola um espaço importante de socialização, o que parece ser pouco reconhecido pelas equipes escolares.
Nesse aspecto, apontamos a ausência de momentos pensados/planejados para o encontro e socialização. Na tentativa de ministrar todos os conteúdos previstos, as escolas não permitem a conversa/diálogo livre ou mesmo dirigidos, sendo a sala de aula o lugar do silêncio e o intervalo, o espaço vigiado, na ótica dos estudantes.
As entrevistas em grupo focal com professores e gestores também evidenciaram pouca clareza sobre o que seria indisciplina e violência por parte destes educadores, assim como a definição de critérios para as providências tomadas. No relato dos educadores, o desrespeito aparece como um dos maiores problemas, mas existem diferentes entendimentos sobre o que seria o respeito/desrespeito.
Em nossa análise, os alunos parecem resistir a uma escolarização obrigatória e sem sentido em seu cotidiano. O desafio da escola parece estar na produção de novas significações para seu cotidiano, na perspectiva de construir novas necessidades e interesses aos alunos e equipe escolar como um todo. Em nossas reflexões, consideramos que a construção de espaços planejados para a convivência dos alunos, com possibilidade de diálogos interativos, poderia encontrar sentidos para estar na escola e para aprender.
Entretanto, a escola ainda parece se utilizar dos LOE para controlar seus alunos/jovens e como forma de se proteger de possíveis acusações de familiares e da sociedade. Ao mesmo tempo, alguns alunos são nomeados pela equipe gestora como protagonistas de violência, sem que os atos por eles praticados estejam descritos nos livros ou tipificados como crime ou contravenção penal.
Nessa perspectiva, pode-se considerar que a escola se desqualifica no exercício de transmitir ao aluno condições para que ele possa desenvolver algum grau de identificação com a instituição escolar, fator esse que pode ser apreendido como uma forma de violência da escola perante os alunos, como aponta Bernard Charlot. Acreditamos que os atores escolares têm condições de construir outras formas de fazer, mas que este processo precisa ser coletivo, democrático e participativo.
PARA SABER MAIS
CHARLOT, B. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Porto Alegre: Sociologias, 2002.
CHRISPINO, A; CHRISPINO, R. A judicialização das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores. Ensaio: avaliação de políticas públicas em educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 58, p. 9-30, jan./mar. 2008.
MORO, N. de O. O “livro preto” nas escolas da região dos Campos Gerais. Anais da I Jornada do HISTEDBR. Salvador 9-12 de jun, 2002. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada1/recorte2.html>. Acesso em 29/05/2011.
A AUTORA
Débora Cristina Fonseca é psicóloga e doutora em Psicologia Social pela PUC/SP. Atualmente atua como docente do Departamento de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação, Unesp/IB Rio Claro. E-mail: deboracf@rc.unesp.br.
COMO CITAR ESSE TEXTO
FONSECA, Débora. Identificação e intervenção escolar face aos alunos considerados violentos: limites e possibilidades. Revista Coletiva, Recife, n. 20, set.out.nov.dez. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-violencia-escolar-identificacao-e-intervencao-escolar-face-aos-alunos-considerados-viole>. ISSN 2179-1287.